Fanfic: Coração de Ágata | Tema: Segredos
O sol ainda se escondia atrás das montanhas ao longe, mas a claridade do dia já se espalhava, enchendo tudo de luz. Era manhã pequena. Nas ruas de Tambirema, nenhum movimento, nenhuma pessoa. O único som era o da brisa gelada cantando as folhas das árvores. Tudo estava envolto num frio gostoso, fina nesga de alvura. As pessoas, recolhidas debaixos de seus lençóis, nem pensavam em acordar.
Dali a um momento, um uivo aterrador preencheu o silêncio que se fazia. Vinha do velho cemitério abandonado, de mortos e sepulturas esquecidos, já substituído por outro mais moderno.
"GRRROOOAAAHHHH!!!!!...."
O prefeito, Juca Pereira, era o que morava mais perto do local, e foi quem ouviu primeiro. Levantou-se num pulo, os olhos esbugalhados numa expressão de susto. Sentado na cama, tentando se recompor da agitação. Passou a mão na testa, bocejou, espreguiçou-se. Já mais calmo, lavou o sono do rosto e se levantou, buscando os óculos no criado-mudo.
- Droga de DorsoTorto! - exclamou, olhando o despertador - Ainda nem são seis horas...
O cujo era uma mistura de homem e bicho, que passava a vida a percorrer os túmulos abandonados. Não falava, apenas grunhia e gesticulava coisas por muitas vezes indecifráveis. Bruto, bruto. Se assemelhava bem mais a um macaco do que a uma pessoa. E uma característica era crucial para essa comparação: a corcunda. Tinha a espinha tão oblíqua que seu corpo era inclinado pra frente, envergado numa forma de arco. Os braços caiam moles e balancantes, muitas vezes apoiando-se no chão para lhe dar mais facilidade na locomoção. Daí seu nome. Ninguém era capaz de dizer daonde ele veio, nem como apareceu ali. Já estava misturado ao cotidiano local á muito tempo, virara parte da normalidade.
O ônibus que ligava Tambirema ás demais cidades vizinhas estava se preparando para fazer sua primeira viagem do dia. Partiria dentro de uma hora, a buscar seus passageiros pelas calçadas. O sol brotava fresco, cor de ouro, clarejando tudo em arabescos. A aurora, antes pálida, depois rosada, deu lugar á um alaranjado intenso.
Nos caminhos de terra, passavam os mais madrugadores. Ali, um par de mulheres com trouxas de roupa na cabeça, acolá, um homem de chicote em punho, fazendo trotar o burrico que guiava sua carroça. Escorada num tronco de algarobeira que fazia ás vezes de estaca para uma cerca de arame farpado, estava Camila, malas ao lado, esperando o transporte. Vinha da capital, Recife, para onde partiu a fim de completar os estudos. Agora, já formada em agronomia, regressava cheia de saudades da família e dos amigos, e com o intuito de melhorar a produção das plantações do pai, Zé Finório.
Camila era o que havia de beleza e humildade. Morena como jambo, de dentes alvos e lábios grossos, que sempre armava num sorriso franco. Os olhos eram verdes como esmeraldas - ou como o igarapé que passava em águas ladinas por detrás da cdadezinha. Os cabelos despencavam nos ombros e escorriam pelas costas, em cachos, negros como um breu. Muito jeitosa, de corpo esguio e curvas caprichadas, a moça era um poço de simpatia e ternura. Esperta e loquaz, sabia falar bem e medir as palavras com sagacidade.
Porém, naquele instante, toda aquela pose vívida parecia desmoronar. Sentada no fundo do ônibus vazio, transmitia forte impressão de inquietação e receio. Havia deixado os parentes á alguns anos, e agora como estavam, quais os problemas pelos quais a família passava, o que esperavam dela...
Recebia cartas escassas, que demoravam muito para chegar. A ligação de Tambirema com o resto do mundo era péssima, estava condenada a se olvidar. A última mensagem informava, com grande pesar, o falecimento da mãe. Foi numa tarde nublada, de chuva fina e contínua, que a moça a leu. Ao terminar, desatou a chorar, fechando os olhos com força, como se quisesse acordar de um pesadelo. Desde aquele dia não soube mais nenhuma notícia de ninguém.
Era com pensamentos embaraçados e confusos que olhava pela janela. Céu limpo, turquesado. A velocidade jogava em sua face o fresco vento da alvorada. O caminho, lambido pelos pneus, levantava uma impertinente poeira vermelha, que a obrigou a se afastar para outra cadeira. Assim ficou até o fim do trajeto, ocupando-se em mexer nas quinquilharias da bagagem, como que para esquecer as reflexões inexatas que lhe atormentavam a cabeça.
Quando deu por si, já era o fim da viagem. A porta, ao se abrir, revelou a estrada acidentada de paralelepípedos. Saltou. Foi reconhecendo, aqui e ali, as casas e faces de várias pessoas. Ao dar num barzinho de esquina, esboçou um riso.
- Lá está Afonso! Estou vendo que esse não mudou nada! - meditou, ao ver um homem de trajes esfarrapados entornar meio copo de cerveja na boca. - E começou cedo hoje. Mal deu sete horas... - concluiu.
Autor(a): jorge_terrano
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
Lá longe, no alto da estrada, apontava Zé Finório, carregando, aturdidamente, um maço de papéis. Vez por outra um deles voava para trás, e para pegá-lo, o homem derrubava todos os outros, num hilário descompasso. Ele era alto e magro. Sempre saía vestido com um de seus seis ternos, todos de cores c ...
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