Fanfic: Coração de Ágata | Tema: Segredos
Zé Finório saiu da prefeitura com cara de poucos amigos. Ao descer a larga escadinha de três degraus, tropeçou nos próprios pés e veio abaixo. Como se isso não bastasse, ainda levou junto, na queda, um menino desafortunado que passava por ali junto naquele instante, carregando um tabuleiro de cocadas que vendia. Foi uma cena!
- Olhe aí o que você fez, moleque impertinente!
- Mas eu não fiz nada, senhor. - o coitado mal podia balbuciar, tomado pelo susto repentino. - O senhor foi quem caiu bem ali, eu vi! - continuou, apontando para o degrau espaçado.
- Além de tudo, ainda me chama de mentiroso? Quer dizer que estou inventando uma falsidade? Mas que petulância é essa?
- O senhor vá me descupar, não sou letrado nem nada, mal sei o que signfica essa tal de "petulância"... Mas sou honesto! E sei muito bem o que está tentando fazer. Quer pôr a culpa em mim para não pagar o prejuízo que deu!
Foi a gota d`água. Finório já tinha o pavio curto. Aquela acusação, então, foi como lhe atiçar fogo. Fez um gesto rápido e enérgico de levantar a mão como quem vai dar um bom tabefe. Mas o golpe, já impelido, parou na metade do caminho. A voz de Camila, que chegou despercebidamente por trás e assistiu á tudo, o fez frear.
- Oi, pai.
O homem, em cima de toda a sua cólera, desmoronou. Foi como estar correndo á toda pressa e de repente sentir debaixo de si um abismo. Virou-se, reconheceu-a e amoleceu o braço, até então teso. Da boca, lhe saiu um fio de voz, que escasseou num instante. Só teve tempo de dizer:
- Filhinha...
Sem responder, ela agachou-se e começou a recolher todos os doces que jaziam no chão, amarrotados e envolvidos de terra. Ao terminar o processo, levantou-se espanando as mãos na barra da saia que, de branca, ficou manchada do avermelhado da poeira.
- Quanto custou o prejuízo?
- Agora nem posso calcular mais. A senhorita juntou as cocadas sujas com as que ainda estavam limpas!
- Está bem... - ela coçou a cabeça, reconhecendo o erro. - Então, quanto custavam todas?
- Cada uma, dois "paus". Aí tinham umas vinte... Mais ou menos quarenta "paus".
- Pague a ele, pai. - disse Camila, dirigindo-se a Zé.
- Eu não tenho dinheiro. - respondeu ele, a voz voltando firme e possante.
- Pague, pai!
- Já disse que não tenho dinheiro.
- Pague!
- EU NÃO TENHO DINHEIRO! - não gritou. Não podia. O círculo de pessoas que se formou em redor poderia o recriminar. Apenas ralhou num tom mais forte que o normal.
A jovem não se deixou intimidar. Começou a apalpar os bolsos da calça e do casaco dele, até achar a carteira. Abriu-a e, sem se espantar, viu ali uma nota de cinquenta.
- Tome. - falou, entregando a cédula ao garoto. - Isso cobre tudo?
- Cinquenta? Cobre e sobra! - ele respondeu, já iluminando o rosto até então cabisbaixo.
- O troco é seu. - arrematou, puxando Zé Finório pelo braço. Abriu espaço entre os boquiabertos que acompanharam tudo e rumou para casa.
Ele foi pisando pesado. Não estava acostumado a ser dominado por ninguém. Porém, nada poderia fazer em público. Maquinava o castigo que daria á filha quando estivessem sozinhos.
A casa era das antigas, de estruturas rebuscadas e coloniais, assim como a maioria das construções de Tambirema. A cidade nascia na igrejinha que escoava pela matriz, e dali se desdobrava em ruas de terra ou calçamento cada vez menores, até acabar. Cortada pelo famigerado ribeirão, parecia estar sendo engolida pela mata que crescia em volta. Lá longe, as fazendas.
A cidadezinha não tinha muito do que se orgulhar. Além dos correios e da prefeitura, possuía apenas uma delegacia (que nunca recebia caso nenhum), uma pequena pensão para os visitantes (que nunca vinham), uma farmácia e um posto de saúde (que nunca acolhiam enfermos) além de outros estabelecimentos menores. A grande movimentação acontecia na feira dos domingos, quando a praça se enchia de barracas e vendedores de um tudo. Vez ou outra, uma dupla de violeiros também atraía o povo, numa disputa de versos improvisados tida num palanque armando.
Ao entrar na sala, Zé foi logo correndo os olhos á procura do bordão, que descansava num prego da parede. Camila, porém, pareceu adivinhar-lhe o pensamento, e o desarmou com apenas uma frase. Abrindo os braços, falou:
- Não vai abraçar sua filha, pai?
Raramente aquele homenzarrão chorava. Naquela ocasião, chorou. Estava de ideias quentes e corpo agitado. Só agora se deu conta de que a filha, que saiu para a capital ainda tão pequena e inocente, estava ali, diante de seus olhos, depois de tanto tempo. Mulher já feita, viva, ponderada, dona de seu nariz. Mais ainda assim, escondia em cada detalhe um jeito de menina que lhe enternecia. Deixou rolar uma lágrima grossa, que contornou o riso bobo que se traçava, e a apertou contra o corpo, como se quisesse, com aquela atitude, afogar todas as mágoas contidas pela sua ausência.
Assim se decorreu o resto do dia, entre recordações do passado e promessas para o futuro. Em certo ponto, porém, a moçoila presenciou algo que lhe transtornou profundamente.
- Pai, a sua carteira! Nessa correria toda esqueci de devolver! - falou, tirando a cuja do bolso da saia e depositando-a nas mãos de Finório.
Mas, ao fazer esse gesto, um papel, espesso de tantas dobras, escorreu dela e caiu no assoalho.
- Ah, perdão. Deixe que eu pego.
- NÃO! Me dê aqui! - bradou ele, agarrando, num lance rápido, a folha do chão.
- O que é isso? - ela se espavoriu.
A expressão dele mudou radicalmente. Os lábios se contorceram, inchados. A face corou como pimentão. O olhar assombreou.
- Nunca mexa nisso. - avisou, levantando-se num impulso e subindo os degraus da escadaria de dois em dois, em direção ao seu quarto.
Porém, aquela atitude só deixou Camila mais interessada ainda. Ela não cessaria enquanto não descobrisse o que estava escrito naquele documento.
Autor(a): jorge_terrano
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
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Tambirema, como já dito, possuía dois cemitérios. O primeiro, mais antigo e afastado, perdeu-se no tempo. Os mortos que guardava foram esquecidos por todos. Os retratos esmaltados nos túmulos, com a ação do sol e das chuvas, descascaram e esbranqueceram, apagando eternamente o rosto dos falecidos da memória do mundo. S& ...
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