Fanfic: Coração de Ágata | Tema: Segredos
Tambirema, como já dito, possuía dois cemitérios. O primeiro, mais antigo e afastado, perdeu-se no tempo. Os mortos que guardava foram esquecidos por todos. Os retratos esmaltados nos túmulos, com a ação do sol e das chuvas, descascaram e esbranqueceram, apagando eternamente o rosto dos falecidos da memória do mundo. Só os epitáfios permaneceram, gravados como cicatrizes nas lápides. Abaixo deles, os restos petrificados das velas á muito queimadas, esculturas de parafina que se conservaram como a última lembrança das homenagens de "saudade eterna".
Praticamente tudo fora tomado pelo matagal. Grama forte e viçosa, que brotava da terra numa explosão de verde, única vida naquele lugar mórbido, além de DorsoTorto. Rasteiro e ladino, o mato se esparramava pelas campas, encontrava espaço nas rachaduras do mármore e no entreaberto das gavetas de granito, cobria as sepulturas com um manto úmido de musgo, como quem põe numa mesa uma toalha de festa, para esconder os abafados caboucos de repouso dos ossos.
O ar era seco e parado, de um silêncio aterrador, cortado apenas pelos urros do corcunda. Nenhum zumbido de inseto, nenhum farfalhar de folhas, nenhum pio de pássaro. Árvores, todas secas. Não corriam em seus caules o mais fino filete de seiva. Desabavam os galhos em estardalhaços de quebradiço, na ação das tempestades e ventanias mais fortes.
E como eram medonhas as tempestades no cemitério! As lufadas de ar se assemelhavam mais a sinistros gemidos, que ecoavam entre as cruzes de madeira e as grinaldas de flores secas e esfareladas. A chuva caia em pesados e insistentes pingos, que se infiltravam nas aberturas das covas e alagavam as camas do descanso final, indo dar de beber aos defuntos. O efeito piorava se o aguaceiro caía de noite. Raios, vez ou outra, riscavam o breu que a chona pintara á nanquim.
Na manhã seguinte, quando o céu começava a se alvejar com suas primeiras nesgas de luz, a tormenta diluída parecia ter sido tragada pelo clima débil do ambiente. Só o que restava dela eram gotículas polvilhadas pelos silvados e criptas, e estrias marcadas pelo caminho dos pingos nas paredes das capelas.
Os mausoléus espalhados aqui e ali, estavam condenadas a cair a qualquer momento. Apresentavam enormes fendas, que contornavam as janelas de vidraças quebradas e as portas de dobradiças enferrujadas.
Os caminhos de cascalho á muito se confundiram e se perderam entre as ervas daninhas. E dava de tudo: capim-colchão, grama-bermudas, grama-francesa, beldroega, língua-de-vaca, hera-venenosa, rosa-do-campo, quebra-pedra, planta-dormideira...
A necrópole era cercada por um murinho baixo, branco, muito ordinário, já desabado em um ponto, de tijolos á mostra como fraturas. O portão de entrada era de grossos bastões de ferro, curvados desalinhadamente, numa tentatiava de arabesco. Por eles passou Camila, ramalhete de flores na mão, véu negro sobre a cabeça abaixada. Sua primeira impressão foi de espanto, seguido de raiva pelo descaso do local.
- Como pode? Deixaram tudo assim, ás moscas? Ninguém cuida mais dos pobres finados? - falou para si mesma, aturdida.
Estava vindo visitar a mãe. E, como passou muito tempo fora da cidade, não sabia que aquele cemitério havia sido largado, substítuido pelo outro, novo, onde estavam todos os mortos mais recentes. Inutilmente percorreu as lápides, procurando o nome da mulher. Assim foi adentrando cada vez mais, até, com um novo susto, dar de cara com a figura arqueada de DorsoTorto.
O coitado raramente tinha visto outro vivo. Ninguém jamais se interessou em buscá-lo dali. Ao perceber a moça, parou, duro como uma estátua. Correu os olhos pelo corpo dela, os olhos esmeraldados, os cabelos negros, as curvas bem feitas, os lábios grossos... O jeito que alternava entre o travesso e o ponderado, a simpatia, a simplicidade, tudo isso mexeu muito com ele. Talvez fosse a primeira vez que encontrava alguém do sexo oposto.
A moça deteve-se um bom tempo muda, o coração acelerado no peito, sem saber que reação tomar. Estava diante de um ser horrível. Por ter ficado extremamente isolado, o rapaz jamais cotou o cabelo, fez a barba ou aparou as unhas. Seu rosto praticamente desaparecia debaixo de tantos pelos, e seus dedos pareciam findar em garras enormes e retorcidas. Os dentes eram amarelados, mostrados num sorriso curvo.
Completamente nu. Não havia roupa que lhe coubesse. Quando foi abandonado por lá, ainda criança, tinha uma bata branca, que logo foi se encardindo. Á medida que cresceu, a bata tornou-lhe apertada, e, num gesto de compostura, ele fê-la de tanga. Agora, nem isso. Parecia mesmo um homem das cavernas, saído das gravuras dos livros de história antiga. Banhava-se no igarapé, onde também matava a sede. Comia o que a mata próxima lhe oferecesse: futas, raízes, até mesmo caça - crua.
Sabia falar apenas por gestos, expressões, movimentos dos braços. De sua boca, além dos urros estarrecedores, não saía palavra. Mas, dentre todos esses desfalques de composição, uma característica lhe favorecia. A alma.
Era puro, dócil, ingênuo até não poder mais. Sua única falta, gravíssima, foi ter matado, com as próprias mãos, o antigo padre da região, Haniel. Os moradores ainda sentem calafrios quando contam. Dizem que foi no tempo em que aquele cemitério ainda era usado.
O sacerdote estava discursando em um enterro. Terminadas as cerimônias, decidiu perambular um pouco entre as tumbas. Parou numa edícula, onde estava descansando o aziago. Já se encontrara com ele em algumas oportunidades anteriores. Estava tentando catequizá-lo. Aspergiu-o com um raminho banhado em água benta e pôs a mão em seu ombro para recitar algumas orações.
Dali a alguns momentos, aparecia Zé Finório, vermelho, gritando, os bofes quase a saírem pela boca:
- O padre está morto! Aquele desgraçado enforcou ele!
Foi um alvoroço. O povo não sabia o que fazer. Uns desmaiaram, outros saíram correndo, mais outros gritaram. Uma dúzia de homens foi conferir o fato na edícula. Viram que era verdade: Haniel jazia sem vida, caído no chão sujo. Em seu pescoço, as marcas arrocheadas do aperto que lhe privou a respiração. Ele foi o último morto a ser sepultado ali. Até hoje, os mais corajosos temem transpor os portões de ferro. Contam que a alma do velho costuma aparecer para assombrá-los.
Mas, se DorsoTorto fez isso mesmo, foi inconsientemente. Ninguém poderia culpá-lo, pois era um ser sem raciocínio. Não premeditou o ataque por um prazer sádico, apenas o fez por instinto. Tinha no peito um verdadeiro coração de ágata. Lindo, vivo, cheio de cores e belezas, imaculado. Porém, duro, fechado, intransponível.
Camila não precisou tomar nenhuma atitude. O homem pareceu compreender que estava importunando-a. Virou-se de costas e correu para dentro do matagal, apoiando-se nas mãos, como um macaco, num passo desajeitado dos pés atravessados.
Mas, ao contrário do que se pode imaginar, ela não se sentiu aliviada. Estava fascinada por aquele ente selvagem. Queria conhecê-lo melhor, examiná-lo. Saiu correndo atrás dele, embrenhando-se pelos silvados, gritando-lhe.
Estava num vestido de cetim, que logo se agarrou aos galhos secos, desfiando-se. Foi abrindo espaço entre as ervas, protegendo o rosto dos ramos mais baixos. Não pensava nos perigos que corria: cobras, buracos, aranhas, arranhões... Só queria saber dele. Assim, nessa agitação desenfreada, acabou caindo num espinheiro.
Foi uma dor terrível. Sentiu por todo o seu corpo os espinhos pontiagudos a adentrarem a carne. Estava presa, e quanto mais se mexia, mais se machucava e sangrava. Soluçou fortemente.
De repente, DorsoTorto veio ao seu encontro, e com as próprias garras foi lhe libertando das amarras de acúleo. Depois, levantou-a nas costas e levou-a para um descampado. Deitou-a no chão e ficou a fitá-la, enternecido. Pegou uma folha de uma planta próxima e passou-lhe nas feridas. Parecia saber o que estva fazendo, pois a dor e a ardência cessaram muito.
Ainda fez mais: com a própria boca foi tirando os aguilhões que pendiam da jovem. Findo o processo, olhou-a mais uma vez, e teve intenção de fugir. Camila percebeu e segurou sua perna, impedindo-o. Ele obedeceu. Ela, então, levantou-se, ainda com alguma dificuldade, e pôs as mãos sobre sua cabeça, num gesto de agradecimento.
Autor(a): jorge_terrano
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
- Como você se chama? O rapaz fez uma cara de interrogação. - O seu nome? Ele não podia responder. Não entendia outra língua que não fosse a dos gestos. Percebendo isso, a moça gesticulou a pergunta. - Camila. Ca-mi-la. - repetiu, apontando para si mesma. Ele fez que sim com a cabe& ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo