Continuaram andando no escuro sem nem mesmo ver um ao outro.
– Isso está certo mesmo? – desconfiou Dulce.
– Espero que sim... – respondeu Chris, que não tinha muita certeza de
nada àquela altura.
– Talvez devamos voltaAAAAAAAAAAAHH!!!
Os dois estavam gritando porque estavam caindo. De repente, o chão sumiu debaixo de seus pés e eles estavam em queda livre sabe-se Deus pra onde.
– Abre as asas! Abre as asas!!!! – gritou Dulce.
– Não tem espaço!!!
Estavam caindo em alguma espécie de poço e podiam sentir as paredes quando esticavam as mãos.
E então, de repente, alcançaram o chão. Um chão fofo de relva alta e verdejante. Levantaram-se com o coração acelerado.
– Você está bem? – perguntou Chris.
– Não.
Dulce estava começando a perder o humor para com aquele lugar repleto de surpresas assustadoras. Eles se levantaram e olharam em volta. Estavam num lindo campo onde ventava muito. O vento fazia com que a relva mudasse de cor ao receber sua carícia e havia um frescor no ar. À esquerda deles, um enorme lago do azul mais profundo do que se pode imaginar os recebia.
– Acho que chegamos... – disse Chris, com um sorriso.
Dentes de leão voavam por toda a parte, fazendo uma dança própria, como se estivesse nevando. Um deles passou bem diante do nariz de Dulce
e ela percebeu uma pequena criaturinha presa a ele.
– Há fadas sem asas?
– Há, claro! Asas são ganhas conforme a evolução. É como um prêmio... – ele amparou uma pequenina fadinha sem asas delicadamente na
palma da mão e a mostrou para Dulce. Era perfeita, mas media cerca de meio centímetro. Não usava roupas e tinha longos cabelos castanhos claros.O vento fez o trabalho de levá-la embora em seu dente de leão.
Dulce achou que era onde encontrariam o castelo. Olhou em volta e não viu castelo nenhum.
– E onde está o Castelo de Belinda ?
Chris sorriu para ela.
– Olhe para cima!
A visão era estupenda. Acima do lago, um imenso castelo flutuava, tendo como chão nuvens tão brancas que os olhos chegavam a doer quando
olhávamos para elas. O castelo tinha torres imensas e muitos detalhes em vidro ou cristal, pois ele parecia brilhar como se fosse cravejado de
diamantes. Chris fechou a boca aberta de Dulce que não conseguia parar de olhar aquela maravilha impossível.
– É incrível, não? – disse ele. – É uma das mais fantásticas construções do Reino.
– Como isso fica aí em cima?... – murmurou ela boquiaberta.
– Como tudo aqui, tem a ver com a mente. Aqui mora Belinda , a Rainha do Reino Elemental do Ar. Essa criação é dela.
Olhando em volta, Chris chamou a atenção de Dulce para um fenômeno que acontecia a alguns metros deles. Em uma parte do campo
verdejante, muito perto do lago, a relva ia e vinha, num comportamento errante, como se o vento não se decidisse pra onde deveria soprar.
– O vento está diferente lá! – disse Dulce, verbalizando o óbvio.
– Isso é porque ali é...
E ambos falaram juntos, naquela cumplicidade deliciosa de quando conseguimos acertar alguma coisa.
– Onde o Vento Faz a Curva!
Correram para lá como duas crianças, competindo para ver quem chegava primeiro, abrindo caminho na relva alta com cor de primavera e
indo contra o vento que ali era constante. Os dentes de leão passavam por eles lentamente, flutuando com seus passageiros improváveis que sorriam ao passar pelos dois jovens que corriam e riam em uma alegria genuína e
pura.
Chegaram no local e sentiram, admirados, o vento brincar com seus cabelos. Naquele minuto, eles se olharam, felizes com a conquista. Acharam
que tinham que dizer alguma coisa, mas não disseram. Apenas mergulharam nos olhos um do outro e não desviaram. Era como se
estivessem flutuando... Dulce olhou para o chão e ele estava longe. Assustou-se e agarrouse no rapaz diante dela. Estavam mesmo flutuando. O vento os erguera de maneira tão suave que nem tinham sentido que ele os levava para o castelo.
Enquanto subiam nas asas do vento, podiam ver os arredores. Havia grandes campos verdejantes e, no horizonte, apenas nuvens em infinitas
formas e cores. Apesar de terem aparentemente caído ao passarem pela porta na pedra, estavam num lugar incrivelmente alto.
– É como uma dança! – disse Dulce, maravilhada.
– Sem o perigo de pisarmos no pé um do outro! – respondeu ele, sorrindo, muito perto dela, pois continuava segurando-a.
Foram deixados em um jardim sobre as nuvens. Era, definitivamente, o jardim mais fenomenal que Dulce já tinha visto.
– Os Jardins Suspensos da Babilônia foram inspirados em uma visita aos jardins de Belinda – explicou Chris.
Dulce notou que o jardim tinha várias camadas, como se fossem enormes degraus, e as flores se espalhavam em tantas cores que tinha
certeza que não conhecia algumas delas.
– Percebi que aqui há muitas cores! Em alguns lugares, como este, mais cores do que temos no nosso mundo.
– Quanto mais elevada a dimensão, mais cores ela tem. É uma regra simples. Caminharam calmamente pelos jardins, observando as flores e os
seus habitantes. Em um copo de leite, Dulce viu uma fada adormecida. Em outras flores, borboletas e fadas disputavam o néctar. Era possível ficar
horas olhando tudo aquilo, tal a calma que o lugar passava, tal a beleza estonteante que tudo ali emanava. Chris a puxou gentilmente.
– Não podemos ficar um pouco?
– Não, Dulce, não podemos. Esse lugar pode nos prender aqui por décadas se não ficarmos atentos.
Chegaram a uma grande entrada marcada por dois grifos de mármore, um de cada lado. Dulce os observou de perto. O trabalho era
perfeito. As penas das asas pareciam reais e os detalhes da cabeça de águia eram incrivelmente precisos. Além dos grifos, puderam ver a entrada do
castelo, depois de um caminho cercado por um outro jardim, onde não havia flores, mas apenas grama bem cuidada.
Deram um passo na direção do castelo, mas assim que passaram pelos grifos, perceberam algo estranho. Viraram-se devagar e viram,
abismados, os grifos de pedra se movendo.
– Ai, meu Deus... – murmurou Dulce, começando a dar passos para trás.
Chris a segurou pelo braço.
– Não fuja, não se mexa. Não teremos chance se corrermos.
Os animais haviam perdido a coloração de mármore. As penas de suas asas gigantescas haviam se tornado douradas, enquanto o corpo
opulento de leão assumia uma cor amarela-parda. As cabeças de águia tinham olhos fulminantes e avermelhados e um bico extremamente afiado.
As patas dianteiras eram de águia, com garras curvas capazes de arrancar o coração de alguém em alguns segundos e suas asas tinham uma
envergadura de mais de sete metros. Deviam pesar mais de 500 quilos.Cada. Dulce percebeu porque Chris a segurara. Mesmo que ele levantasse
voo, não haveria como escapar daqueles animais.
Os dois grifos começaram a cercá-los, observando-os.
– Sou um anjo de Rafael e viemos ver Belinda – disse o anjo, não parecendo muito seguro.
Os animais não pareceram escutá-lo. Continuaram observando-os, andando em volta deles.
– Precisamos...
Chris não terminou. Um dos grifos emitiu um guincho agudo e o outro sacudiu as asas.
– Acho que você os irritou! – avisou Dulce.
Chris pensou por um minuto. Se não pensasse rápido, a jornada deles terminaria ali.
– Cante – disse ele.
– Hã?
– Cante!
– Cantar o quê?
– Qualquer coisa calma e afinada. Precisamos comovê-los.
Dulce pensou novamente em Blue Moon. Mas quando Chris disse que precisavam comovê-los, outra úsica lhe veio a mente. Sua mãe costumava cantá-la ao piano que seu pai tocava e chegou a ver algumas visitas enxugarem uma lágrima delatora ao final. Claro que ela pediu para a mãe ensiná-la e era uma das poucas músicas que gostava de cantar para si
mesma quando queria se sentir...comovida.
Não tinha muito tempo e seu repertório era muito básico, então fechou os olhos e respirou fundo.
Sua voz começou bem baixa, insegura, e então ela foi se encontrando na canção que não tinha refrão e mal rimava, mas cuja história que contava sempre a comovia. Começava com um soldado indo bater às portas da rainha, pois queria conversar com ela. Ele lhe disse que não lutaria mais por ela e a rainha o reconheceu de algum lugar. Lentamente ela abriu a
porta e deixou o soldado entrar.
Dulce tinha a voz suave quando cantava e via em sua mente osoldado e a rainha, o castelo e a conversa, e sentia em seu coração afrustração do soldado e a dor da rainha. Decidiu que não abriria os olhospara melhor se concentrar e não esquecer as palavras, como acontecera no encantamento de Eileen. Se aquela canção podia salvar suas vidas, ou se fosse a última que cantaria em sua vidinha pequena, que fosse então uma canção cantada com o coração.
Nos primeiros versos, os grifos pararam de cercá-los e os olharam fixamente. Poderia ser um sinal de que iam atacar ali mesmo ou... Algo muito especial aconteceu naquele momento, algo que nem Chris poderia prever.
Diante deles, diante dos guardiões dos portais de Belinda , tudo o que Dulce cantava se tornava realidade, como um holograma. Dulce, que mantinha os olhos fechados, não podia ver, mas tudo o que ela imaginava se materializava diante deles. Não foi planejado, foi quase
automático, como se sua mente tivesse feito a escolha antes dela mesma.
Havia o castelo no alto da colina, um quarto rico com tapeçarias vermelhas, um jovem soldado e uma bela rainha. Em sua imaginação, que era o que Chris e os grifos viam, Dulce era a rainha e Chris era o soldado. De olhos fechados, ficou feliz disso estar apenas dentro de sua cabeça, pois se sentiria muito constrangida se alguém mais, especialmente Chris, soubesse disso.
O soldado disse então que sempre via o palácio dela na colina mais alta e precisava conhecer a mulher pela qual todos eles estavam matando.
Ele lhe disse também que estava partindo. Não via mais sentido na batalha e ela poderia fazer o que quisesse, mas antes ele precisava saber por quê.
Ele foi guiado por ela por um longo corredor, até os seus aposentos com tapetes vermelhos. Até então, ela nunca tinha tirado a coroa de sua cabeça.
Ela lhe pediu para que se sentasse, mas ele lhe disse: “Eu vejo você agora, e você é tão jovem! Mas eu vi mais batalhas perdidas do que ganhas e tenho essa intuição de que é tudo para a sua diversão. E agora, você poderia medizer por quê?”
Os grifos deitaram-se, olhando atentos. Chris observava a cena se desenrolando diante dele sem saber o que pensar. Dulce poderia ter escolhido qualquer um como soldado. Por que ele?
A jovem rainha o olhou com olhos arrogantes e respondeu: “Você não compreenderia, e é melhor nem tentar.” Mas seu rosto era o de uma criança e ele pensou que ela fosse chorar. E nesse momento, ela se fechou como um leque.
E ela disse que havia engolido uma promessa secreta em chamas, e ela a corta por dentro e frequentemente ela sangra. Ele pegou gentilmente a coroa em sua cabeça e a jogou no chão, como se fosse um peso, como se fosse algo sem importância. E ele disse: “Diga-me: o quão faminta você está, o quão fraca você deve se sentir, vivendo aqui tão sozinha, sem jamais se revelar? Mas nos seus campos de batalha, eu não
vou mais marchar.”
Ele a levou para a janela para ver. E havia o Sol, e ele era dourado, embora o céu estivesse cinzento. Ela o quis mais do que ela jamais poderia dizer, mas ela sabia o quanto isso a assustava e virou as costas para ele. E ela não olharia para seu rosto novamente.
O soldado não desistiu. Disse a ela: “Eu quero viver como um homem honesto, ter tudo o que eu mereço e dar tudo o que eu puder. E amar uma jovem mulher que eu não compreendo. Majestade, seus caminhos são muito estranhos”.
A coroa tinha caído e a rainha achou que ia fraquejar. Ela ficou ali de pé, com vergonha do quanto seu coração doía. Ela o levou até os degraus da porta e lhe pediu para esperar. Ela levaria apenas um momento lá dentro.
E à distância sua ordem foi ouvida.
E o soldado foi morto, ainda esperando pelas palavras dela.
E enquanto a rainha voltava para a solidão que ela preferira, a batalha continuou.
Dulce terminou a canção e respirou profundamente, esperando algum resultado. A cena se diluiu como fumaça. Não ouvindo ou percebendo nada, abriu os olhos lentamente e viu os grifos a olhando, deitados como cachorros esperando comida. Olhou para Chris, esperando
uma direção, mas este ainda tinha os olhos vidrados em algo a sua frente que já não estava ali.
Então, os grifos se levantaram. Chris voltou para o momento e ela se apavorou um pouco.
Talvez só sua mãe conseguisse comover as pessoas com aquela canção. Os animais se aproximaram e os empurraram gentilmente com as cabeças. Dulce começou a fazer carinho em um deles e Chris a seguiu, surpreso daquelas feras permitirem isso.
Dulce sorriu, vitoriosa e procurou o mesmo sorriso de cumplicidade que tinha visto no rosto amigo antes. Ao invés disso, porém, encontrou um olhar diferente, confuso, e que ela não teve muito tempo para identificar, pois ele logo o desviou.