Caminhavam em silêncio pelo jardim impecavelmente cuidado num
longo caminho até as portas do castelo. Dulce estava tão eufórica de
estarem vivos, de sua canção ter dado resultado, que nem notava a
construção esplendorosa que se erguia diante deles.
– Você viu isso?! Eu consegui comover feras assassinas! Talvez até
possa participar do American Idol!
– Você mora no Brasil...
– E daí? Eu poderia viajar! No momento, eu acredito que eu possa
fazer qualquer coisa! Me sinto tão viva!
Dulce estava realmente feliz com essa vitória. Era o primeiro passo
na direção da realização da sua missão e esperava um pouco mais de apoio
do anjo. No entanto, não sentia a menor empolgação em Chris, que
continuava seguindo o caminho sem olhar pra ela.
– Você está bem? – perguntou ela.
– Por que matou o soldado? – perguntou ele, como se tirasse alguma
satisfação.
– Que soldado? – Dulce preocupou-se, imaginando se não teria
pisado ou engolido algumas daquelas fadas e silfos minúsculos.
– O soldado da canção!
– Eu não o matei!
– Mas ele morreu.
– Chris, ele não morreu porque ele não existe! É só uma canção!
Chris parecia chateado e não respondeu.
– Você não está bravo comigo por causa disso, está? – perguntou Dulce, em tom incrédulo.
Ele não respondeu.
– Vocês anjos têm algum código contra matar pessoas em histórias,
filmes e canções? Porque se têm, vocês vão ter muito trabalho – continuou
ela, começando a ficar irritada em não compreender porque ele estava
assim.
– Não é isso!
Ele parou e a olhou nos olhos.
– Só achei a sua escolha cruel e egoísta! Ele lutou por você,
sacrificou-se por você e depois de tudo você o elimina, o dispensa, dá uma
ordem para matá-lo na soleira de sua porta!
Dulce olhou pra ele procurando um sentido naquela conversa
maluca.
– Eu não o matei! Se alguém o matou, foi a rainha! E se vamos falar
de interpretação de texto aqui, podemos supor que a rainha o matou
porque preferiu manter sua independência!
– Ou o poder!
– A rainha era uma covarde, Chris! Ela teve medo de se entregar a uma
coisa que parecia mais forte do que ela!
Aquela conversa estava tão bizarra que Dulce não acreditou que
estivesse mesmo acontecendo. Há uma coisa estranha com os sentimentos.
Nem sempre eles são claros. Muitas vezes, eles usam máscaras e fantasias e
nos confundem por completo. Achamos que amamos, odiamos, desejamos,
mas na maioria das vezes é tudo ilusão. O problema é que quanto mais
confusos ficamos, mais besteiras falamos, tentando entender por que
estamos frustrados, por que o coração está doendo, por que a mente está
embaralhada.
Era óbvio que Chris estava totalmente desorientado depois do
que vira e que não entendia o que estava acontecendo dentro dele. Anjos
não deviam se apaixonar por humanos, embora acontecesse. Era uma
tarefa complicada, já que anjos também deviam amar os humanos. Amar
sem se apaixonar era como entrar na água sem se molhar. E agora ele
estava vendo isso bem de perto.
– Olha, me desculpe! – Dulce desistira de tentar fazer sentido. Uma
coisa sua mãe tinha lhe ensinado.
Quando o outro está irredutível numa discussão que foge à sua compreensão, peça desculpas e deixe o assunto morrer. Com sorte, ele morre mesmo. Se a sorte não for tanta, ele pode ressuscitar no terceiro dia, mas aí as duas cabeças estarão mais frescas para buscar a raiz do problema.
Ele a olhou. Mais uma coisa sobre sentimentos confusos. Como
precisamos saber o que são – e precisamos com um desespero quase
palpável – insistimos na conversa que vira uma discussão em busca de uma
resposta.
Quando a outra pessoa se recusa a continuar, nos sentimos mais
frustrados ainda, quase traídos. Como o outro pode nos deixar à deriva,
sem uma explicação, perdidos em nós mesmos? E por isso é muito difícil
terminar algumas discussões.
Por isso ouvir Dulce desistir sem nem saber
exatamente pelo que o deixou mais frustrado ainda.
– Me desculpe, eu prometo entrar na Internet quando voltar e falar
com a compositora, pedindo-lhe que mude imediatamente esse final
trágico!
Apesar de parecer uma ironia, ela estava mesmo falando sério. Mas
Chris não pareceu se importar e continuou andando.
– Ah, Chris, você não pode estar zangado comigo por causa de uma
música que nem fui eu quem escreveu!
– Chegamos – respondeu ele secamente.
Sem entender, Dulce o acompanhou. As enormes portas do castelo
se abriam e eles seguiram um caminho de mármore amarelado com um
imenso tapete azul marinho no caminho. Havia muitas peças de cristal e
grandes colunas com rosas amarelas.
Mais a frente, alguém num trono cravejado de cristais e pedras preciosas os aguardava. Quatro soldados elfos estavam ao redor da rainha, uma mulher linda, extremamente alta, com longos cabelos cor de prata e olhos azuis como um dia de inverno.
Seus lábios eram finos e esboçavam um sorriso, enquanto ela apoiava o fino rosto sobre a delicada mão que trazia uma pulseira de diamantes que se ligavam a um anel no dedo do meio. Ela tinha dois soldados de cada lado e eles eram mais altos do que ela, com olhos duros e cabelos claros. Suas orelhas ligeiramente pontudas e seus corpos esguios faziam a diferença entre eles e humanos comuns.
Além da altura, claro. Imediatamente ao lado dela, um quinto homem de uniforme mais elaborado parecia aguardar ordens. Dulce imaginou que ele fosse algum tipo de conselheiro, mas suas vestes pareciam as de um militar. Ele tinha o rosto lindo, com orelhas pontudas e tanta altivez que poderia ser um príncipe.
Quando eles entraram, a rainha os observou com seu sorriso
enigmático. A Rainha Belinda virou o rosto discretamente para o elfo ao seu
lado.
– Isso vai ser interessante... – disse ela.
Chris se apoiou em um joelho e fez uma reverência, abrindo suas asas
e assustando Dulce.
– Eu sou Christopher, anjo de Derrick, Príncipe das Virtudes, sexta
categoria na hierarquia angélica, Regente da Cura e dos Ventos e vim ver a
Rainha Belinda.
Sem saber exatamente o que fazer, Dulce fez uma desengonçada
reverência e se apresentou:
– E eu sou Dulce, filha do meu pai e da minha mãe, moradora da
Tijuca e eu vim lá do mundo dos homens pra fazer o mesmo que ele.
A rainha sorriu mais ainda.
– Acabou de ficar ainda mais interessante! – disse ela ao seu
conselheiro.
Então, ela se levantou, mostrando-se uma mulher enorme, de
formas perfeitas. Seu vestido era colante e coberto de pequenas pedras
preciosas, fazendo com que ela brilhasse conforme andava. Ela desceu os
degraus que separavam seus visitantes de seu trono.
– Levante-se, anjo – ordenou ela.
Chris obedeceu e ela caminhou entre eles calmamente, até parar
diante dos dois e fazer uma pergunta inusitada.
– Vocês estão juntos?
– Sim, chegamos juntos, e como o problema é o mesmo, pode dar a
mesma senha que podemos ser atendidos ao mesmo tempo – respondeu
Dulce.
– Não, querida... Quero saber se são enamorados...
Os dois ficaram imediatamente surpresos, ofendidos e
constrangidos, tudo ao mesmo tempo.
– Não, não, não, imagine! Ele é só o meu guia! Não temos nada a ver
um com o outro – respondeu Dulce.
– Não, Majestade, isso é totalmente irregular. Sou apenas um anjo
em sua missão com uma humana muito irritante, só isso.
Dulce se virou para o anjo espantada com a grosseria gratuita.
– AAAH! Eu sou irritante?! Até parece que sou eu quem não aguenta
uma história! É melhor você nunca ver Titanic! Ou Romeu e Julieta! Ou O
Morro dos Ventos Uivantes! O mocinho ou a mocinha ou os dois morrem no
final!!!
Chris pareceu se esquecer de que estava na frente da Rainha do Reino
do Ar.
– Você é uma garota mimada que quer tudo do seu jeito! Ignora
todas as regras e depois fica tentando consertar tudo! E quer saber? Nem
tudo pode ser como você quer! E você nunca vai ser a próxima American
Idol!!!
Belinda se virou novamente para o seu conselheiro.
– Cada vez mais interessante...
Então, ela voltou para o seu trono.
– Bem, suponho então que tenham feito um longo caminho até aqui – disse ela enquanto se sentava graciosamente. – O que desejam?
Chris e Dulce interromperam a discussão e foi Chris quem falou.
– Essa tonta perdeu a amiga dela aqui no Reino. Precisamos do Elixir
de Tir Nan Og para que ela possa voltar para sua família de comercial de
ração de cachorro e nos deixe em paz!
– Ah... Só isso? – perguntou a Rainha, segurando o riso.
– E preciso achar minha amiga, porque esse anjo idiota não veio com
GPS! – disse Dulce. – Se a senhora puder nos mostrar onde Analice foi
parar, resolvemos isso o mais rápido possível e posso voltar pra minha vida
e o anjo aí pode voltar a tocar harpa numa nuvem!
– Ótimo! – disse Chris.
– Ótimo! – retrucou Dulce.
Ficaram em silêncio com suas trombas. A Rainha olhou-os
longamente.
– Isso vai ser divertido... Bem, se você quer o Elixir de Tir Nan Og,
precisa ir pegá-lo. Basta atravessar aquela porta.
Os dois olharam para a porta apontada por Belinda. Era uma imensa
porta de madeira polida em uma das laterais do grande salão.
– Só isso? – perguntou Dulce.
– É o primeiro passo. Se o trouxer, discutiremos o preço.
Dulce e Chris se viraram para a direção da porta e deram alguns
passos, quando ouviram novamente a voz da Rainha.
– Não, anjo... Você não.
Eles se voltaram para ela. Belinda, com um movimento da delicada
mão, o chamou de volta.
– O elixir não é pra ela? – perguntou a rainha, vendo a hesitação do
anjo.
– Sim, mas...
– Então isso é uma coisa que ela deve fazer sozinha. Você fica aqui e
me faz companhia.
Chris olhou para Dulce preocupado. Dulce se manteve no seu salto
alto. Achou que era importante manter a pose. Entregou a ele sua mochila.
– Fique e esfrie essa sua cabeça dura. Eu volto já!
Enquanto Dulce se colocava diante da porta que abria
pesadamente, Chris voltou para perto da Rainha, deixando transparecer que
o coração estava apertado.
– Calma, anjo... – disse a rainha. – Poderemos assistir tudo daqui.
Uma bola de cristal enorme surgiu diante deles mostrando Dulce a
partir do momento em que ela cruzou a porta.
– É sua primeira missão, não é?
– A dela? Ah, sim, ela nunca esteve aqui. É uma idiota, na verdade.
– Não, querido, a sua. É a sua primeira missão, estou certa?
Chris olhou para ela surpreso e um tanto envergonhado. Belinda
sorriu e recostou-se no trono.
– Cuidado, anjo... Sabe que não deve se envolver tanto assim com
humanos... Pode ser o seu fim...
Chris não respondeu. Ao invés disso, voltou a olhar para a grande bola
de cristal que parecia mais uma bolha de sabão gigante, de tão leve e
translúcida.
Dentro da bola, Dulce caminhava por um longo corredor. Ele
sabia que ir buscar o elixir não é simplesmente como ir comprar pão na
padaria.
Cruzou os braços e respirou tenso. Teria que confiar em Dulce. E
isso não era muito tranquilizador.