A situação estava exatamente como aquela cela: fria, úmida e
aparentemente sem saída. As perspectivas eram negras e Chris parecia ter
desistido. Enquanto Dulce tentava pensar em alguma forma de saírem
dali, o anjo de asas recolhidas se mantinha sentado contra a parede, com os
olhos perdidos na derrota.
Depois de quase duas horas investigando a cela, uma espécie de
gruta com uma única saída gradeada, Dulce começava a se dar conta da
realidade. Encostou o rosto na grade fechada com pesadas correntes, vendo
o corredor iluminado pelas tochas sem viva alma, embora ouvisse sons de
risos e comemorações ao fim dele.
Não havia saída. Nem da cela, nem daquele mundo. Essa era sua
conclusão. Mesmo que saísse dali, havia perdido sua mochila. Não teria
comida ou água do seu mundo. Supondo que o presente das asrais fosse
verdadeiro, esse problema estaria resolvido, mas na bolsa também ficara o
Elixir de Tir Nan Og.
Se pisasse em seu mundo sem ele, provavelmente
viraria uma velhinha cega e senil ou simplesmente viraria pó. Estava presa
ali. Para sempre. E, pelo visto, o para sempre duraria muito mais do que
poderia imaginar. Retirou a foto de dentro do bolso de trás do short. Apesar
do péssimo estado dela, já que foi molhada, amassada e arranhada, Bianca
agradeceu por tê-la levado consigo.
Olhou longamente o rosto de seu pai, o
sorriso de sua mãe, o sorriso arreganhado de Cacau e seu próprio rosto
entre eles. Parecia tão feliz ali. Quando foi que tudo ficou complicado,
quando foi que a brincadeira perdeu a graça? “Deveria ter deixado um
bilhete...”, pensou, agora encarando a perspectiva de que provavelmente
não pudesse mais voltar.
Olhou para Chris , perdido em seu próprio fracasso. Teve pena dele,
mas não poderia deixá-lo se afundar em autocomiseração. Se fossem cair,
melhor que fosse de pé. Foi até ele e sentou-se ao seu lado.
– Como eles sabiam que você era um anjo? – perguntou ela, tirandoo
de seu mundo e tentando distraí-lo.
– Seres evoluídos, como Paralda, podem ver que eu sou um anjo.
– Aquele cara não parece evoluído.
– E não é. Mas é um parente. Todos os que forem meus parentes
poderão ver o que sou. E todos com quem convivi poderão ver também o
que eu fui.
– Tsc... Parentes, hein... É como eu já li em algum lugar... “Os parentes
distantes são os melhores. E quanto mais distantes, melhores...”
Chris se virou para ela com um olhar muito sério e a expressão dura.
– Bianca, me prometa uma coisa.
Ela prestou atenção, esperando o que ele ia dizer de tão grave.
– Quando você sair daqui, vai voltar até a Vila e procurar sua bolsa.
Vai encontrar Analice e então vai voltar pra casa, com ou sem ela.
– Não era esse o plano desde o começo? – perguntou ela, feliz com o
otimismo do anjo.
– Prometa!
– Tá bom, eu prometo. Mas você não precisa da minha palavra.
Estará lá pra me guiar até a porta de saída desse circo de horrores. Eu te
contratei pelo serviço completo, lembra?
As correntes do portão se moveram e seu som os fez se levantarem.
Os três goblins os levaram rispidamente, empurrando-os pelo corredor na
direção do burburinho que Dulce tinha ouvido antes. Não amarraram Chris
e Dulce achou que isso era bom.
Agora, era só esperarem uma chance de
estarem com poucos goblins em volta e se rebelarem. Em sua cabeça,
coreografou uma luta digna de filmes de Jack Chan e Jet Li.
Infelizmente, essa chance pareceu ser sumariamente eliminada do
plano das possibilidades quando foram empurrados para uma arena lotada.
Todos os goblins da Corte Unseelil e centenas de outros goblins, espectros e
seres de má índole estavam ali para assistir ao espetáculo. O Rei dos
goblins estava em seu trono de madeira retorcida, com uma caneca cheia
de bebida, rindo com seus dentes horrivelmente afiados e olhos ávidos por
dor e sangue.
Dulce não pôde evitar estremecer. Havia centenas deles, em
arquibancadas de madeira toscamente feitas. Vigas gigantescas seguravam
o teto que era tão alto que Dulce não conseguia ver além da escuridão.
Dois goblins vieram e colocaram uma corrente no pé de Chris e uma no pé de Dulce .
– Que a diversão comece em grande estilo! – gritou o Rei de seu
trono, sendo ovacionado pelos monstros ansiosos.
– Espere!
A voz de Chris chamou a atenção do Rei que, com um gesto de mão,
mandou os outros se calarem. O rapaz se aproximou, arrastando a corrente
atrás de si.
– Eu tenho uma proposta para o Rei! – disse o anjo, em alto e bom
tom.
– Eu sou o Rei, insolente! Nosso pai morreu há muito tempo e só
lamento que ele não esteja aqui para tirar pessoalmente cada uma de suas
penas!
– Pois bem, então, Majestade, ouça minha proposta. Liberte a
humana e eu serei seu prisioneiro.
Uma estrondosa gargalhada ecoou pelo estádio de monstros. O anjo
continuou em sua posição, inabalável. O Rei se inclinou com seu sorriso
sombrio.
– Você nunca foi muito esperto, irmãozinho... Você já é meu
prisioneiro, idiota! Já tenho tudo o que quiser de você, não tem nada a me
oferecer que eu já não possa tomar à força!
– Está enganado, irmão! – respondeu o anjo. – Você pode fazer o que
quiser, mas nunca terá uma coisa:
O Rei esperou interessado, embora tentasse disfarçar.
– Minha cooperação – finalizou o anjo.
Ninguém riu dessa vez. O Rei franziu o cenho, perscrutando o jovem,
analisando a proposta.
– E no que isso me ajuda, anjo? – perguntou o Rei, em tom baixo e
rouco.
– Poderá fazer o que quiser. Eu não lutarei contra você. Não
impedirei. Não tentarei fugir.
– Está me dizendo que vai me obedecer, não importa o que eu faça
ou mande você fazer, se eu soltar a humana?... – perguntou o Rei.
– Você sabe que um anjo é mais do que suficiente para o pagamento
do Dízimo – continuou o anjo. – Deixe ela ir, e serei o pagamento ao inferno,
quando chegar a hora.
O Rei recostou no trono, passando a mão ossuda no queixo,
pensando na proposta.
– Ainda faltam três anos para o próximo Dízimo... Você sabe que até
lá será nossa diversão. Serão três anos de tortura para então uma
eternidade no inferno... E sua nova forma tornará tudo muito mais
interessante... Tem certeza de que não tentará fugir ou lutar se libertarmos
a humana?
O anjo nem piscou.
– Solte-a, e eu serei submisso a você, não importa o que faça.
O Rei continuou em silêncio, enquanto a horda de goblins aguardava
a sua resposta.
– Bem... – disse finalmente o Rei. – Temos um acordo então. Tragam
a garota!
Um goblin foi até Dulce e retirou as correntes dela.
– O que está fazendo, Chris ? – disse ela, enquanto era arrastada pelo
goblin para fora da arena.
Dulce foi levada até o Rei, que mandou-a se sentar ao seu lado.
– Antes de soltá-la, porém, quero ver se você está mesmo falando
sério e vai se esforçar para se manter vivo até o pagamento do Dízimo.
Armas!
Uma espada foi jogada aos pés de Chris , no mesmo momento em que o
rei dava outra ordem.
– Soltem a fera!
Uma porta gigantesca do outro lado foi aberta com ajuda de
correntes e um urro poderoso ecoou pela arena, enquanto passos pesados,
seguidos de correntes, eram ouvidos. Dulce se lembrou imediatamente do
horrível gigante que tinham enfrentado e tentou se levantar, mas o rei a
empurrou de volta.
– E você, fique quieta, antes que eu mude de ideia e a jogue lá com
ele!
Chris pegou a espada e esperou o que ia surgir da escuridão. Uma
enorme pata com garras apareceu primeiro, seguida de uma enorme
cabeça com presas à mostra.
Era um dragão, coisa que Dulce nunca vira
naquele mundo. Ele tinha grandes asas que para Dulce pareceram negras,
mas ao alcançar a luz das tochas, percebeu serem violetas. Era um dragão
violeta escuro, com algumas matizes de lilás. Apesar da bela escolha de
cores, era uma criatura assustadora, medindo cerca de 15 metros de
comprimento, da cabeça ao rabo.
– Você está louco? – perguntou Bianca, dirigindo-se ao Rei. – Ele não
tem chance! Essa fera vai matá-lo!
O Rei abriu os dentes no que seria um sorriso.
– Se isso acontecer, então você vira a diversão. Mas, não se
preocupe. Não pretendo acabar tão cedo com esse brinquedo. Ainda temos
muito tempo para o Dízimo e o Inferno nunca exigiu mercadoria não
violada!Ele gargalhou, sendo seguido pelos outros a sua volta.
Dulce sentiu
algo desagradável e áspero roçar sua perna e viu um pequeno goblin com
pernas finas e bico de corvo agarrado à sua perna.
Chutou-o por instinto,
mas a criaturinha hedionda insistia em voltar. Devia medir cerca de 50 cm
e tinha a pele preta, conseguindo se passar por um pássaro muito feio em
algumas posições. Dulce ignorou a criatura nojenta se esfregando nela e
voltou a olhar para a arena.
Chris encarou a fera e ambos se rodearam, como se estivessem
estudando o inimigo. Ambos arrastavam correntes, Chris em seu pé, a fera
em seu pescoço. A primeira investida foi do dragão, que tentou abocanhar o
jovem. Chris se defendeu com a espada, ferindo a criatura com um corte.
Um
urro foi ouvido e o dragão atacou com as patas. Tentando se desvencilhar, o
anjo abriu suas asas e tentou voar. Não foi muito longe, pois a corrente em
seu pé era exatamente para isso.
No ar, defendeu-se contra as bocadas do dragão, que, não
conseguindo abocanhar sua presta, atacou-o com o rabo. Chris foi jogado
contra a parede com violência, caindo no chão, atordoado. Essa era a
chance que o dragão esperava. Investiu contra o anjo e dessa vez conseguiu
abocanhá-lo. Dulce gritou, vendo Chris ser sacudido na bocarra do Dragão,
enquanto penas voavam por toda a parte.
Mas ele nunca largara a espada e foi com ela que espetou o focinho
do animal. A espada atingiu a narina do dragão que imediatamente jogou
sua presa longe.
Chris caiu e tentou se levantar, mas não conseguiu. As asas
brancas estavam manchadas de vermelho e com a mão no estômago, ele
tentava se erguer. Tudo indicava que os dentes do dragão tinham feito um
estrago. O dragão mostrou as presas, mais irritado do que nunca, e deu-lhe
um golpe com a pata. Chris foi jogado mais uma vez contra a parede e dessa
vez cuspiu sangue.
Dulce estava paralisada, vendo o espetáculo sangrento. Sua mente
tentava encontrar uma saída, mas tudo o que via era Chris lutando pela vida
e se esvaindo em sangue no combate com a fera.
O dragão tentou abocanhá-lo novamente, acreditando que sua presa
estivesse finalmente derrotada, mas o anjo se defendeu ainda no chão com
a espada que não saíra de sua mão.
Por três investidas, a fera não
conseguiu seu intento, pois o anjo continuava se arrastando no chão,
usando a espada para se defender, e tentando se afastar. Até que, numa
patada, o anjo foi novamente jogado longe e, dessa vez, sua espada foi ao
chão.
Dulce esperava que o Rei interrompesse a matança. Mas ele ria, os
olhos injetados de ódio, divertindo-se com a dor e morte do anjo que já fora
seu irmão. Dulce parou de pensar.
Não estava adiantando. Olhou para Chris .
Ele ainda tentava se levantar, coberto de sangue, mas não estava mais
conseguindo. Olhou para a criaturinha nojenta se esfregando em sua perna.
Então, sem pensar, pegou a criatura e enfiou seu bico pontudo no olho do
rei, que deu um urro de dor.
A garota saltou pelas cabeças e passou pela bancada que a separava
da arena. Uma pequena confusão se armou em volta do rei que arrancara o
goblin de si mesmo, arrancando junto seu próprio olho. Irado, estraçalhou
o goblin ali mesmo e se levantou para dar a ordem.
Em seu salto para a arena, Dulce caiu na areia e rolou no chão.
Então correu o máximo que pôde, vendo o dragão se preparar para um
golpe final no anjo indefeso, ao mesmo tempo em que ouvia a ordem do rei.
– MATE! DESTROCE OS DOIS! OS DOIS!!!!
Ela chegou derrapando e se interpôs entre o anjo e o dragão.
– PARE! Pare, por favor, eu imploro! – gritou ela, com os braços
estendidos para a fera.
A cabeça da fera avançou para ela com os dentes arreganhados num
golpe certamente fatal. Dulce não saiu do lugar. Manteve-se em sua
posição e fechou os olhos, esperando o fim inevitável.
Alguns segundos se passaram e ela só ouviu a própria respiração.
Abriu os olhos e se deparou com a cara do dragão a apenas alguns
centímetros dela. Suas pernas tremiam, mas ela não se moveu. O dragão
então se aproximou ainda mais, farejando o cordão que ela trazia consigo,
aquele com a garrafinha misteriosa que o estranho elemental que
encontrara assim que chegara lhe dera.
– Onde conseguiu isso?
Dulce piscou várias vezes, lágrimas descendo pelo rosto sem que
ela sentisse. O dragão estava falando com ela por telepatia.
– E-eu ganhei – respondeu ela, numa voz trêmula.
O dragão então se sentou e ficou olhando para ela.
– O que está esperando, seu lagarto estúpido?! – gritou o rei, com
sangue negro escorrendo pela órbita vazia. – Eu já disse para matar os
dois!!! AGORA!!!
A voz grave do dragão foi então ouvida por todos.
– Ela traz o presente de um velho e caro amigo. Não atacarei um
amigo de meu amigo.
Dulce se virou e se abaixou para ver como Chris estava. Ele estava
consciente,mas bastante ferido.
– Você é maluca? – perguntou ele, num fiapo de voz. Então, ele
apontou para a espada, caída a alguns metros dele.
O Rei emendara uma discussão com o dragão, que continuava
impassível e irredutível. Até que, furioso, o Rei ordenou que matassem o
dragão. Uma horda de goblins armada com espadas e lanças se lançou
contra o dragão, que se defendeu com mordidas, rabadas e patadas. Suas
asas batiam a cada vez que era atingido por uma lança que o feria e o
sangue vertia, mas não conseguia sair do chão por causa da corrente em
seu pescoço.
Dulce correu até a espada e a trouxe para Chris , mas ele não a queria
para ele exatamente.
– Corte isso, rápido! – disse ele, apontando para a corrente em seu
pé.
Dulce ergueu a lâmina e acertou a corrente, fazendo um barulho
metálico, mas não conseguindo rompê-la. Outros goblins estavam vindo em
sua direção e o dragão estava levando uma surra da horda.
– Mais uma vez! Rápido! – gritou Chris , que parecia ficar cada vez mais
alerta, apesar do péssimo estado.
Dulce ergueu a espada de novo e tentou acertar no mesmo lugar.
Dessa vez, a corrente se partiu e ela ajudou Chris a se levantar. Ao menos, foi
o que ela achou. Em segundos, ela estava voando, sendo levada por ele a um
lugar bem alto, onde as vigas de madeira que faziam a sustentação do teto
estavam. Ele a colocou sobre uma delas, oculta pelas sombras.
– Fique aqui!
– E pra onde eu iria?! – respondeu ela para o nada, já que o anjo não
esperara resposta e partira em velocidade para cima do dragão.
Dulce se agarrou na viga, com medo de cair e tentando entender o
que o anjo ia fazer. Viu Chris descer com velocidade e espada em riste na
direção do dragão até acertar em cheio a corrente que o prendia. O dragão
virou-se para ele no exato instante em que se viu livre.
E então, o dragão
abriu suas asas e levantou voo, fazendo uma volta completa na
arquibancada onde centenas de goblins tentavam correr e escapar de suas
garras.
O dragão furioso investiu contra as vigas de sustentação, dando
rabadas poderosas que fizeram toda a estrutura estremecer. O Rei e outros
goblins mais fortes voaram para atacar o dragão, mas retrocederam ao
perceber que ele estava preparando um golpe que não viam há muito
tempo.
Uma baforada de fogo violeta e azul incinerou dezenas de goblins
que tentavam escapar, assim como a madeira da arquibancada. Chris voou
para pegar Dulce, mas no caminho, foi pego por goblins que o jogaram de
volta ao chão. Dulce gritou por seu nome, mas não podia fazer nada
daquela altura.
Foi quando viu o rei sem olho voando diante dela.
– Ao menos, essa alegria eu vou ter – disse ele. – Fazê-lo olhar
enquanto eu destroço você!
Ele avançou para cima dela, mas a moça se assustou e, tentando se
desvencilhar, caiu. Sua queda foi amortecida por algo que ainda se movia. O
dragão salvou sua vida e agora voava em direção ao anjo, que estava tendo
problemas com os goblins que o agrediam.
Com patadas e bocadas, cinco
goblins foram lançados longe, deixando o anjo ferido livre. O dragão
abaixou a cabeça, mandando-o subir, o que ele fez segurando na mão de
Dulce , que o puxou com rapidez. Não podiam perder tempo.
O teto começou a cair, matando goblins que não conseguiram sair,
espalhando ainda mais o pânico que já estava instalado. O dragão voou
baixo, desviando dos grandes pedaços de pedra e terra que caíam, até
entrar em sua prisão, aquilo que tinha sido seu lar pelos últimos 10 anos.
Dentro, o lugar prosseguia em uma espécie de túnel tortuoso.
Voaram na
escuridão, até ver a luz da lua ao final. E então, voaram para a liberdade,
sentindo a brisa fria da noite nas asas violetas do dragão.
– Conseguimos! – disse Bianca, sem acreditar. – Conseguimos, Chris !
O anjo não respondeu.
– Chris ?
Tocou o anjo ao seu lado e ele caiu suavemente. Ela o agarrou antes
que ele caísse do dragão e o puxou de volta. Sua cabeça recostou no ombro
dela. Ela chamou seu nome.
Mas ele não respondeu.