Durante a tensa audiência, o rei, a rainha, o elfo antipático que
descobriram se chamar Manuel e Anahí discutiram sobre a permanência
deles no reino, com prós e contras, até que Chris tonteou e teve que se apoiar
em Dulce para não cair. Então, Anahí bateu o pé.
Dulce já a tinha visto
fazer isso e era sempre uma surpresa quando aquela moça doce e tranquila
simplesmente brigava pelo que achava certo.
Dulce sentiu uma tensão
evidente entre Anahíe Manuel . Por fim, o rei permitiu que ficassem mais
uma noite, já que o anjo não estava em condições de deixar o reino. Os
guardas os escoltaram de volta ao quarto, deixando a família real e o salão
do trono para trás.
Naquela noite, Dulce e Chris dormiram pesadamente. Muriele passou
apenas para verificar o rapaz e não disse muita coisa. Dessa vez, ela usava
um manto com símbolos e penas nos cabelos. Pouco antes de dormirem,
Chris murmurou algo. Dulce, ainda acordada, perguntou o que foi e tentou
prestar atenção.
– Você é inacreditável...
E foi só o que ele disse. Dulce não entendeu se era um elogio, uma
crítica, ou só um comentário solto no ar de alguém muito cansado. Estava
exausta demais para pensar nisso e preferiu deixar pra lá. Dormiram,
esperando que o dia seguinte fosse um pouco melhor.
E foi. Acordaram já com o Sol alto com Anahí lhes trazendo as boas
notícias. O rei tinha permitido que ficassem, desde que o dragão não
atacasse ninguém. Ficaram felizes, embora se sentissem um tanto
desconfortáveis. O motivo era simples. Havia sentimentos contraditórios
no ar.
De um lado, os humanos achavam interessantíssimo ter um anjo e
uma humana juntos, especialmente o anjo, um ser bíblico e sagrado para
algumas culturas. Já os elfos... Estes não estavam muito animados com a
presença de nenhum dos dois, especialmente depois do confronto
desrespeitoso com Manuel , príncipe do reino. Sachti eventualmente
sobrevoava a cidade, só voltando depois de ver Dulce.
Isso fez muitos elfos
ficarem em suas casas e as reclamações nos ouvidos do rei e rainha
aumentarem consideravelmente. Assim, de visitas inconvenientes, expulsas
e enxotadas, Dulce e Chris passaram a personagens curiosos que renderiam
muita fofoca.
Apesar dos problemas que estavam causando, Dulce e Chris não
foram envolvidos por eles. Chris realmente precisava de cuidados e descanso,
ficando quase todo o tempo no quarto. Dulce, quando não estava com ele,
estava com Anahí.
Depois do meio-dia, tomaram uma sopa e Chris dormiu novamente,
garantindo antes à Dulce que estava bem. Pela insistência dele, Dulce
então passou a tarde inteira na companhia de Anahí. A amiga estava
diferente.
Muito diferente. Antes, costumava usar roupas pretas e
maquiagem pesada, parecia ter saído de algum filme do Tim Burton. Agora,
Anahí era uma moça exuberante, sempre com um sorriso. Usava um
belíssimo vestido de seda tão fina que qualquer brisa o fazia dançar
graciosamente. Ela também usava joias e uma delicada coroa de safiras.
Cada qual estava interessada na história da outra, e cada qual queria contar
sua própria história, então as horas foram poucas para tantas novidades.
Anahí contou para Dulce como tinha sido levada para aquele
reino e como tinha se apaixonado pelo príncipe. Felizmente, ele também se
apaixonara por ela.
Dulce contou como seguiu as pistas até descobrir
como entrar no Mundo Encantado, e como conseguira, com a ajuda do anjo,
chegar até ali.
– Aliás, que anjo, hein, Dulce!
Dulce enrubesceu na hora, o que provocou boas risadas na
companheira. Estavam no quarto de Anahí, um aposento enorme, com
uma cama gigantesca, tapetes macios e belos quadros nas paredes.
– Você já o beijou? – perguntou Anahí, empolgada.
– Claro que não! – respondeu Dulce, como se isso jamais tivesse
passado pela sua cabeça. – Ele é um anjo! Além do mais, não se pode beijar
alguém daqui se você deseja voltar.
– Em primeiro lugar, ele não é daqui! – respondeu Anahí. – Em
segundo, quem falou em voltar?
Dulce congelou, olhando a amiga que ainda sorria.
– Você não quer voltar?... – perguntou Dulce.
– Claro que não! – Anahí riu alto. – Eu tenho aqui tudo o que
sempre sonhei! Tenho uma família de novo! Tenho um noivo lindo! Sou
uma verdadeira princesa! Por que eu voltaria?
– Por mim... – murmurou Dulce, de coração partido.
Anahí percebeu onde tinha errado. Parou de sorrir por um
momento, vendo a amiga com os olhos cheios d’água.
– Bianca... Eu amo você. Você é minha melhor amiga. Mas eu estou
muito feliz aqui. Eu não quero voltar.
– Mas eu vim pra buscar você!
– Eu tentei te avisar que estava bem!
Dulce ficou confusa.
– Como?!
– Com o sonho dos balões! Fui eu que mandei aquele sonho pra
você! – explicou Anahí, segurando suas mãos e olhando nos seus olhos. –
Você se lembra?
– Claro que eu me lembro!
– Naquele sonho, eu tentei lhe dizer que tinha realizado o pedido
que eu fiz naquele dia, o pedido no balão! Eu pedi para ter uma família que
me amasse e que eu pudesse amar de volta. Uma família como a sua...
Uma lágrima rolou no rosto de Dulce que não podia esconder a
decepção.
– Achei que eles tinham te raptado... – disse ela.
– Eles realizaram o meu desejo... Desculpe, achei que tivesse
entendido que eu estava feliz.
– Mas, e as outras pistas, Blue Moon, os índios, os mexicanos, a Mãe
Tetéia da Encruza, a pedra na janela, o carro da pamonha?...
– Eu não tenho ideia do que você está falando, Dulce. Só lhe mandei
o sonho. Nada mais.
As amigas se abraçaram.
– Você me perdoa? – perguntou Anahí. – Por eu não querer voltar?
– Perdôo... Se você me perdoar por eu querer...
Anahí a afastou para olhá-la nos olhos.
– Você vai voltar?!
Dulce anuiu com a cabeça.
– Eu tenho pra quem voltar, Anahí...
E dessa vez, foi Anahí quem derramou lágrimas. Abraçaram-se de
novo e ficaram juntas por algum tempo, numa despedida dolorosa.
Quando se separaram, Anahí se levantou e enxugou as lágrimas.
– Há muito para mostrar e muito para contar. Minha festa de
noivado será em alguns dias. Gostaria que você ficasse.
– Eu não sei...
– O anjo...
– Chris – corrigiu Dulce. – O nome dele é Chris . Quer dizer, é Christopher,
mas eu o chamo de Chris .
– Pois bem, Chris precisa se recuperar. São apenas alguns poucos dias.
Você passará o resto da sua vida no mundo dos homens. Pode passar
alguns dias aqui.
Dulce concordou e assim enxugaram as lágrimas e saíram do
quarto, pois Anahí queria lhe mostrar as belezas do castelo e do reino. Ela
lhe mostrou jardins e colinas verdejantes, uma cidade com vendedores e
movimento.
Ao entardecer, ela mostrou à Dulce a Parada Encantada, um
desfile da Corte Seelie. Então ela lhe explicou que a Corte Seelie e seus
imponentes cavalos de pecoço curvado eram descendentes dos Tuatha de
Danann, os filhos de Danna, uma tribo de gigantes e heróis que viveu antes
dos homens.
– Você está distante...
Dulce voltou a si.
– Hum?
– Você não estava aqui. Onde você estava?
– Desculpe. Estou preocupada com Chris , só isso.
– Eu lhe disse que estão cuidando bem dele. Temos feiticeiras e
curandeiros, temos até um médico do mundo dos homens.
– Sinto falta dele.
Anahí sorriu.
– É... Você está de quatro mesmo... Vamos voltar para o castelo. Você
poderá vê-lo, enquanto mandarei providenciar roupas melhores para vocês
dois. Teremos um jantar para recepcioná-los devidamente e nos desculpar
da grosseria de Manuel . Se Chris estiver melhor, claro. Aliás, você está meio
pálida. Deveria ter almoçado! Não entendo como não está com fome. Você
vivia com fome!
Dulce sorriu sem falar nada. Anahí então a observou longamente.
– Você está diferente... – disse.
– Você também.
O vento brincou com os cabelos delas enquanto crianças jogavam
pétalas na Parada Encantada a alguns metros.
– Acho que crescer é isso – finalizou Dulce, antes de voltarem para
o castelo.
Chris estava na janela admirando a despedida do Sol quando Dulce
entrou. Ele sorriu e ela ficou feliz dele parecer bem melhor.
– Você parece bem – disse ela.
– Me sinto melhor – respondeu ele. – indo ao encontro dela. – você é
que parece meio pálida.
Dulce o puxou e sentou-se com ele na cama.
– Anahí não vai voltar.
Chris não pareceu surpreso.
– Você já sabia, né? – disse ela, percebendo pelo rosto dele.
– Não sabia, mas imaginava – respondeu ele. – Seria difícil ela passar
tanto tempo aqui sem ter comido ou bebido algo daqui.
– Então, por que veio? Por que não disse logo que era uma viagem
em vão?– Porque... porque você merecia dizer adeus. E merecia saber o que aconteceu de verdade. Pessoas desaparecem todos os dias. A dor de perder
alguém para a morte é excruciante, mas não se compara a dor de
simplesmente perder alguém e nunca saber o que aconteceu. Você viveria
sob a sombra da dúvida, alimentando uma esperança cruel de que ela
poderia voltar, ou imaginando todas as coisas horríveis que poderiam ter
acontecido. Essa viagem não foi por Anahí. Foi por você.
Dulce estava triste e frustrada. Também estava faminta e sedenta.
Chris a acolheu e ela chorou um pouco em seu ombro. Estava vulnerável
demais para se consolar com a felicidade da amiga.
– Eu sou uma pessoa horrível!... – remoeu-se. – Ela está feliz, dá pra
ver isso estampado na cara dela. E mesmo assim, eu lamento que ela não
queira vir comigo...
– Você não é uma pessoa horrível. Você é uma pessoa, só isso.
Ela recostou a cabeça no ombro dele e respirou profundamente.
– E o que acontece agora?
Ele demorou para responder.
– Depende do que você quiser fazer. Se quiser voltar, iremos até a
Vila das Fadas D’água e procuraremos sua bolsa. E então, você poderá
voltar.
– Anahí quer que fiquemos alguns dias para a festa de noivado
dela.
– Se quiser, podemos ficar.
– Podemos?
– Por que não?
Dulce demorou para responder.
– Não como ou bebo nada desde ontem, Chris . Estou com tanta sede
que nem sinto mais a fome...
O anjo ficou quieto um momento, como se pensasse. Então,
levantou-se da cama e foi até uma cômoda, onde havia uma jarra cristalina
de água. Ele encheu uma taça e levou para ela.
– Vamos confiar nas asrais... – disse ele.
Dulce hesitou, mas não podia mais ficar sem água. Pegou a taça da
mão dele, tocando-o gentilmente, e então bebeu avidamente.
– Se as asrais mentiram...
– Não importa – cortou ele, tentando afastar pensamentos pesados.
– Se elas mentiram, daremos nosso jeito.
Ela sorriu. Confiava nele. Sim, se houvesse algum problema, eles
dariam um jeito.
* Estamos em reta final! =(