No dia seguinte, Chris já conseguira recolher as asas e parecia bem
mais disposto, o que deixou Dulce radiante. Depois de uma noite bem
dormida e tendo finalmente podido comer, o mundo não parecia mais tão
tenebroso. Aceitou que Anahí não iria voltar com ela e que seus planos
para um dia conhecerem juntas Paris nunca se realizariam. Achou que
estaria muito mais deprimida – ou até zangada – com isso. Mas não estava.
O fato é que estava feliz demais por ter Chris ao seu lado. Tê-lo quase perdido
foi um golpe tão forte que mudou muita coisa dentro dela. Anahí tinha
razão. Ambas tinham mudado. E mudado muito.
Como Chris já se sentia melhor, quis sair um pouco do quarto e podia
passear por curtos períodos de tempo com Anahí, Dulce e o mal
humorado elfo de poucas palavras, Manuel. Era um elfo muito garboso e
elegante, mas não falava muito.
Talvez fosse o jeito dele, mas Chris não
simpatizou com Manuel. Achou que o elfo irradiava arrogância e não havia
digerido muito bem as palavras rudes de Dulce. Se o anjo nutria por
Manuel uma leve antipatia, este detestou Chris imediatamente. Basicamente,
por tabela, mas também por alguma coisa mais arraigada que nos faz amar
e odiar sem sabermos exatamente porque, numa causa além do
conhecimento de homens, elfos ou anjos.
Porém, algo podemos dizer em
sua defesa. Ele realmente gostava de Anahí. Por ela, estava tentando
confraternizar com aquela gentalha.
Se havia uma certa tensão entre anjo e elfo, Anahí e Dulce
pareciam não notar ou simplesmente não se importar. Conversavam
animadas e o silêncio era uma preciosidade rara quando estavam por
perto. Anahí quis mostrar a cidade e deram um passeio de carruagem até
o centro dos mercadores, que parecia de fato o centro nervoso do reino,
com barracas de frutas, ervas, flores e lojas de roupas, sapatos e outras
quinquilharias.
Enquanto as meninas viam vestidos, Manuel e Chris aguardaram do
lado de fora.
– Está quente hoje – disse o elfo. – Bebe alguma coisa?
Chris aceitou e foram até uma taberna que ficava ao lado. O elfo pediu
duas canecas de vinho. Assim que Chris tomou o primeiro gole, Manuel
resolveu deixar as coisas claras.
– Não gosto de você.
O anjo continuou com a caneca na boca, sem desviar os olhos do
elfo. Até que engoliu o gole que já tinha tomado e pousou a caneca na mesa
de madeira.
– Devo me preocupar? – perguntou o anjo.
– Depende. Se você e essa garota irritante forem embora sem causar
nenhum transtorno ou atrapalhar meu casamento, não tem com o que se
preocupar.
Chris respirou profundamente. Gostava cada vez menos do elfo.
– Anahí decide se vai ou fica. Quanto a nós, não se preocupe. Não
temos intenção nenhuma de causar um transtorno.
O elfo fixou os olhos verdes no anjo.
– Ótimo. Assim não terei que machucar você.
E tomou seu vinho.
Quando Anahí e Dulce se encontraram com eles, a temperatura
estava mais baixa. Chris se inclinou para Dulce e lhe disse algo em seu
ouvido. Dulce então disse à Anahí que iriam voltar ao castelo e podiam se
encontrar mais tarde. Anahí lamentou, mas Manuel lhe disse que o anjo
precisava descansar de sua última surra, num tom evidentemente
sarcástico. Anahí pareceu não notar. Mas Dulce não era assim tão
distraída.
Voltaram à pé porque Chris preferiu andar. Assim que se afastaram do
burburinho da cidade, Dulce falou do elefante na sala.
– O que aconteceu entre vocês dois?
Chris olhou pra ela, um tanto irritado, pensando se deveria falar ou
não. Os olhos dela se apertaram, do jeito que ela fazia quando tentava ver
mais longe. Era também um sinal de que ela não o deixaria em paz se não
falasse.
– Não sei se devemos ficar para a festa.
– O que houve lá atrás?
– Manuel me ameaçou.
Dulce abriu a boca de espanto.
– Na sua cara?
– No meu nariz! E se eu não fosse um anjo... E não estivesse todo
quebrado, eu arrebentava a cara dele!
Dulce olhou para o chão, pensativa.
– Tudo bem, se você quiser ir, podemos ir – disse finalmente.
– Sério?
Ela concordou com a cabeça.
Quando Anahí chegou no castelo, foi direto ao quarto de Dulce.
Tinha uma surpresa para ela. Tinha comprado um vestido lindo de cor lilás
e uma roupa de festa linda também para Chris. Depois de leves batidas na
porta, viu Dulce e Chris de pé.
Ela não sabia, mas estavam prontos para
partir e só a estavam esperando para que Dulce pudesse dizer adeus.
Antes de dizerem qualquer coisa, porém, Anahí entrou com animação no
quarto.
– Eu trouxe uma surpresa! Fiquei triste de terem ido embora tão
cedo, mas no final, foi até melhor porque eu pude comprar meu presente
para vocês!
– Presente? – Dulce não viu essa vindo. – Puxa, Anahí, eu não
tenho nada pra te dar...
– Você atravessou dimensões e enfrentou monstros pra me achar!
Dulce, ninguém pode dar um presente maior que esse! Vejam! Quero que
os dois experimentem para que eu possa mandar fazer uns acertos!
Anahí tirou de uma bolsa um lindo vestido lavanda com um
corpete de pedrinhas que brilhavam como estrelas.
Os olhos de Dulce
brilharam mais que as pedrinhas. De boca aberta, pegou o vestido que
Anahí lhe estendia e sentiu a textura sedosa do tecido. Era um vestido de
princesa, um como nunca tinha tido antes.
Recostado na parede do quarto, Chris notou o quanto ela ficou
encantada com o vestido. Anahí se encaminhou para ele então e lhe deu
também um belíssimo conjunto de calça azul escura, botas negras
brilhantes e uma camisa de linho com detalhes em dourado. Ele ficou um
tanto sem jeito, mas a alegria de Anahí apagava qualquer traço de
constrangimento ou timidez.
– Eu preparei uma surpresa para vocês na festa de amanhã!
– Mas é a festa do seu noivado! – argumentou Dulce. – É você quem
deve brilhar!
– E eu vou! Mas justamente por ser uma festa para mim, quero que
minha melhor amiga esteja lá.
Anahí pegou nas mãos de Dulce.
– Este será um dos momentos mais importantes da minha vida, não
por ser meu noivado, mas porque talvez seja a única festa em que eu tenha
a pessoa mais importante de minha outra vida presente.
Dulce desmontou. Não sabia como ia dizer que tinham decidido
partir naquele mesmo dia. Olhou para o chão por um momento.
– Anahí... – começou. – Eu preciso lhe dizer uma coisa...
Mas Chris interrompeu.
– Ela quer lhe dizer que estamos muito felizes por você. Será um
prazer estarmos aqui amanhã!
Anahí não pareceu ver a surpresa no rosto de Dulce. Abraçou os
dois e os deixou, avisando que se encontrariam mais tarde, pois ela tinha
que experimentar seu próprio vestido depois do almoço.
Quando ficaram sozinhos, Dulce olhou para Chris.
– Achei que queria ir embora.
– Mudei de ideia. Eu sou um anjo, não posso ficar arrumando briga
por aí à toa. Então, que melhor forma de irritar aquele elfo idiota do que
ficando pra festa dele?
– Ótimo! Vamos comer às custas dele!
Depois do almoço, que foi agradável e divertido, Chris e Dulce foram
até a colina onde Sachti aguardava.
– Ora! – disse o dragão quando os viu chegar. – Que alegria, anjo! Eu
não o matei!
– Não foi por falta de tentativas... – respondeu o anjo, sorrindo.
– Vejo que está melhor – continuou o dragão. – Já recuperou aquele
senso de humor estranho das esferas superiores.
Chris se aproximou dele com um olhar agradecido.
– Eu sei que você era tão prisioneiro quanto nós. E se não fosse por
você, estaríamos todos mortos. Por isso, sem ressentimentos.
– Obrigado. Devo a você minha liberdade. E a você, menina, a
lembrança de quem eu costumava ser. Por isso, agradeço aos dois. Vocês
ficarão bem?
– Sim, estamos entre amigos agora – respondeu o anjo.
– Mas você precisa mesmo ir? – perguntou Dulce, que já se
afeiçoara ao enorme animal.
– Tenho família. E não os vejo há dez anos.
– Nossa... Talvez seu filhote já esteja no segundo-grau – comentou
Dulce.
– Vivemos mais de três mil anos. Ele deve estar igualzinho à última
vez que o vi. Mas dez anos ainda são dez anos, viva você 50 anos ou viva
para sempre.
Dulce beijou o focinho do dragão, bem onde Chris o cortara e onde já
estava cicatrizando. Sachti não estava acostumado a esse tipo de afeição e
não sabia bem o que era um carinho humano. Mas gostou. Eles se
despediram e o grande dragão voou, balançando as árvores e pintando o
céu de violeta, púrpura e lilás.
O dia da festa do noivado de Anahí finalmente chegou. Quando a
noite recebeu as estrelas, estavam todas as pessoas importantes do reino
em suas roupas mais belas no grande salão.
Quando Dulce desceu para o
grande salão de baile, todos a olharam, tanto por ser uma novidade, quanto
por ser uma bela visão. Seu vestido era de sonho, bordado no corpete
apertado e amplo na grande saia rodada. As fadas do castelo também
fizeram um lindo penteado em Dulce, prendendo um pouco o cabelo para
trás com enfeites brilhantes e soltando cachos que emolduravam o rosto.
Do alto da escada, ela viu Chris. Ele estava com uma roupa de festa
também. Uma camisa branca com detalhes em dourado, presa na cintura
por um cinto. A calça azul escura quase negra brilhava, assim como as
botas. Ela olhou tudo isso muito rapidamente, porque assim que encontrou
o olhar dele, não conseguiu mais desviar. Eles se encontraram e ele lhe deu
o braço para que a acompanhasse à cerimônia.
Como melhor amiga da noiva, Dulce teve um lugar de honra, assim
como Chris. Assistiram à bela e simples cerimônia que terminava com as
mãos do casal enlaçadas com uma bela fita azul. Dulce tentou, mas não
conseguiu segurar uma lágrima. A amiga estava mesmo feliz, podia ver pelo
jeito que olhava o noivo. A lágrima, dessa vez, foi de felicidade. O coração
ficou mais leve. Aceitou a perda e deixou que aquele amor voasse para o
lugar onde seria mais feliz.
Houve então uma grande festa, não no salão, mas no pátio do
castelo, onde estrelas e fadas se confundiam em seu brilho. A Lua não
estava mais cheia e era um sorriso no céu. Os casais dançavam e se
divertiam e Dulce queria chamar Chris para dançar, mas tinha vergonha.
Provavelmente, ele diria não. Então, ficaram recostados numa grade que
separava o pátio do jardim, observando os outros bailarem ao redor dos
noivos.
– Você parece bem com isso tudo – disse o anjo.
– É... – disse ela. – Acho que meu amor cresceu. Amadureceu, ficou
maior de idade e foi pra faculdade.
– O amor que dá a liberdade é o amor perfeito.
– Não é este o nome da colina onde está o reino? – lembrou Dulce.
Anahí interrompeu os músicos e chamou a atenção de todos.
Então, disse que tinha um presente para a amiga que atravessou dimensões
por causa dela. Chamou Dulce e Chris até o meio do pátio, que os outros
convidados deixaram livre. Quando estavam bem no meio, Anahí
continuou.
– Dulce e Chris, eu lhes agradeço pelo amor que os trouxe até aqui. A
música une e eleva e o povo daqui sabe muito bem disso. Por isso, como
presente, gostaria de lhes dar uma música, embora eu acredite que ela já
seja de vocês e eu esteja apenas formalizando isso.
Anahí sinalizou para os músicos, um grupo bem vestido de elfos,
humanos e fadas tocando todo tipo de instrumento com alguns anões
começaram a tocar e cantar Blue Moon, música que Anahí sabia pelas
histórias que Dulce contara que tivera uma importante participação na
história dela com Chris.
Dulce olhou para Anahí, e então olhou para a banda, para então
olhar para Chris. Achou que ele ia recusar e ela ia morrer de vergonha, então
resolveu recusar primeiro para não passar vexame.
– Desculpe, eu não sei dançar.
Ela tentou sair, mas ele segurou sua mão e a trouxe de volta,
segurando-a firmemente pela cintura e olhando bem em seus olhos. A
canção os envolveu e eles dançaram sob a luz, com fadas brilhando e
estrelas cintilando, com olhares sobre eles que eles nem sentiram, pois
estavam concentrados um no outro.
Dulce sentiu o coração batendo tão rápido que temeu que ele o
escutasse. Chris fez passos de dança que ela jamais esperava que ele
soubesse fazer. Não tirou os olhos dela e nunca desfez o sorriso. Não foi
difícil para ela mergulhar em seus olhos e aproveitar o momento, sem se
preocupar se ele ia perceber ou não o quanto ela o amava. Entregou-se de
corpo e alma àquela dança nos braços dele e sorriu, deixando transparecer
nos olhos brilhantes os sentimentos que os faziam brilhar.
A música terminou, cedo demais, ela diria, mas outra começou, mais
animada, e todos começaram a dançar. Chris e Dulce, no entanto,
simplesmente paralisaram e assim ficaram por alguns segundos. Ela
sentindo as mãos dele em sua cintura e segurando delicadamente a outra
mão e ele admirando o rosto dela. Ele se inclinou levemente e seus lábios se
aproximaram. Subitamente, ela se assustou e levou as mãos à boca,
segurando um grito.
– O que foi?! – perguntou ele, assustado.
– Sua camisa! – ela disse, começando a entrar em pânico. – Sua
camisa!
Ela se lembrou de Bean-Nighl, a Lavadeira, no riacho perto da Vila
das Fadas D’Água. A lembrança era nítida da roupa ensanguentada que ela
estava lavando, anunciando a morte de alguém. A roupa que ela lavava era
a camisa que Chris usava naquele momento.
– Ela estava lavando essa camisa! Ela estava lavando essa camisa! Eu
me lembro dos detalhes em dourado! Era essa! Era essa!
– Sshh! Calma, Dulce! – pediu Chris. – Quem estava lavando?
– A Lavadeira, a Banshee que lava roupas manchadas de sangue de
pessoas que vão morrer! Ela estava lavando essa camisa! Essa camisa!
Ela tinha começado a chorar e ele a puxou para saírem dali. Então,
com um sorriso tranquilo, procurou acalmá-la.
– Dulce, fique calma! Tem certeza que era essa a camisa que ela
lavava?
– Tenho, tenho, tenho!
– Tem certeza? Não seria mais parecida com aquela ali?
Ele apontou para um elfo usando uma camisa muito parecida.
– Ou aquela?
No meio do salão, um jovem dançava feliz com uma linda elfa,
usando a mesma camisa.
– E que tal aquela?
Dulce percebeu que eram realmente muito parecidas, se não
fossem idênticas de fato.
– Viu? – Chris sorriu. – Esse é um tipo de roupa muito comum aqui.
Não se preocupe com isso, está bem?
Dulce pareceu se acalmar. Limpou as lágrimas, ficando sem graça.
– Desculpe o chilique – disse ela.
– Eu sei o que pode te animar! – ele se inclinou para ela e sussurrou
um segredo. – Estão servindo doces no salão!
Ela sorriu e eles correram até lá, rindo e brincando enquanto
passavam pelos casais que dançavam sob as estrelas que brilhavam e a Lua
que sorria.
Quando o dia raiou, a festa estava no seu fim e Chris e Dulce estavam
prontos para se despedirem. Anahí fez questão que ficassem com as belas
roupas que usavam e Dulce não se opôs. Os sapatos eram confortáveis e a
roupa também. Além do mais, gostava de se sentir uma princesa (e todas as
mulheres são princesas, embora algumas já tenham se esquecido). No mais,
era uma viagem rápida. Havia um círculo de fadas nos jardins do palácio.
Este círculo podia levá-los a qualquer outro círculo de fadas do Reino
Encantado. Também poderia levá-los para casa. Dulce e Chris, no entanto,
não podiam voltar ainda. Precisavam fazer uma última visita à Vila das
Fadas D’Água e procurar a mochila perdida com seu conteúdo precioso.
Anahí abraçou Dulce longamente.
– Nunca esquecerei você... – disse ela.
– É bom mesmo! – respondeu Dulce.
Olharam-se longamente. Os olhos das duas se encheram d’água
porque sabiam, lá no fundo, embora não parecesse, que era a última vez
que estavam se vendo. Era hora de dar adeus.
Os dois entraram no círculo e Anahí, do outro lado, ficou
embaçada. Uma brisa ergueu os cabelos deles e seus pés saíram do solo por
alguns centímetros. Então, quando tocaram novamente o solo, estavam no
bosque da Vila das Fadas D’Água.
– Nossa! – disse Dulce. – Isso é incrível! Melhor que Metrô!
– Vamos! Será bom também termos notícias de como a Vila ficou
depois do ataque. Espero que ninguém tenha morrido ou se machucado
gravemente.
Um pequeno ser voou diante do nariz deles, pregando-lhes um
susto. Dulce quase caiu pra trás porque achou que era um insetão, mas
quando percebeu as cores, olhou melhor.
Chris estendeu a mão e sorriu ao ver um pequeno dragão das fadas
pousar graciosamente em seus dedos.
– O que é isso? – perguntou Dulce, sorrindo.
– É um dragão das fadas! É incrivelmente raro!
Dulce e Chris viram a pequena criatura que media cerca de 15 cm,
com olhos grandes e focinho comprido, batendo delicadamente as asas
furta-cor de uma libélula.
– Ele é uma gracinha!
A criaturinha voou para as árvores, deixando os dois jovens
encantados.
– Sabe o que isso quer dizer? – perguntou Chris, que nunca tinha visto
um daqueles antes. – Que deve haver um portal para o Reino dos Dragões
por aqui. Talvez Sachti já o tenha encontrado e já esteja em casa agora!
– Tomara que ele não tenha comido ninguém na Vila.
– É, tomara... – disse o anjo. – Mas, por via das dúvidas, vamos
perguntar primeiro se não tiveram problemas com um dragão roxo antes
de dizermos que conhecemos Sachti, OK?