"E assim é o destino... doce e cruel"
Assim que chegaram na vila, sinos tocaram anunciando visitantes.
Christian e Maite logo surgiram e correram ao seu encontro. Eileen correu e
saltou no colo de Chris que a rodou no ar. Todos os receberam felizes e
avisavam para os outros que Dulce e Chris estavam vivos.
A notícia se
espalhou com rapidez. Chris e Dulce receberam os abraços de Christian e
Maite, que os julgavam mortos, o que deixou todos inconsoláveis até
aquele momento.
– Como estão as coisas? – perguntou Chris, preocupado com possíveis
perdas no ataque.
– Graças a vocês, não tivemos nenhuma baixa – respondeu Christian.
– E os nossos grifos? – perguntou Dulce.
– Quais? Aqueles?
E dois grifos pousaram bem ao lado deles, fazendo algo parecido
com uma festinha, empurrando suas cabeças contra eles pedindo carinho, o
que prontamente receberam. Foram até a casa de Christian, onde se sentaram à mesa.
– Vocês estão com fome? Sede?
Eles pediram um pouco de água e Maite e Christian perceberam que
Dulce estava bebendo também.
– Parece que resolveram aceitar o presente das asrais – disse
Maite.
– Não foi bem uma opção... – respondeu Chris.
– Bem, talvez queira conferir se elas estavam lhes pregando uma
peça ou não.
– Como?
– Se a comida na sua mochila continuar se renovando, é porque elas
disseram a verdade.
Chris e Dulce se olharam.
– Bom, sobre isso... – disse ele. – Perdemos a bolsa...
– Qual? Essa aqui?
E Maite ergueu a boa e velha mochilinha-cabe-tudo de Dulce, que
imediatamente pulou da cadeira e correu até ela aos saltos.
– Eu não acredito! Vocês acharam! Vocês acharam!!!
Christian e Maite lhes contaram como ficaram desesperados quando
viram a Corte levá-los. Os grifos lutaram bravamente contra os goblins que
os atacaram, matando todos, mas não conseguiram alcançar a Corte antes
que ela desaparecesse em seu covil, que ninguém sabe onde fica e ninguém
também quer descobrir. Chris e Dulce contaram, resumidamente, como
conseguiram fugir e como a Corte Unseelil provavelmente não seria vista
novamente tão cedo.
Dulce omitiu a complicada história da família
disfuncional de Chris, embora não tivesse conseguido omitir que ele era um
anjo, coisa que já tinha dito à Maite. Ninguém ali pareceu surpreso.
Disseram que Chris era um anjo escondido com a asa de fora.
Então, chegou a hora da verdade. Dulce retirou da mochila o
sanduíche eterno de queijo e entregou para Chris. Enfiou a mão de novo e
lentamente puxou... outro sanduíche de queijo! Ela e Chris comemoraram e
pularam juntos.
– Nunca fiquei tão feliz com um sanduíche de queijo! – disse ele.
Eileen entrou correndo e pulou em Dulce.
– Eu tenho uma coisa pra mostrar! – disse a menina.
Então ela saltou no meio da sala e levantou os cabelos. Como estava
usando um vestidinho de costas nuas, puderam ver pequenas asas de fada
nascendo. Chris não acreditou e precisou ver de perto. Eileen se virou para
Chris.
– Você disse que se eu me divertisse bastante, e risse bastante, e
fosse muito feliz, minhas asas iam nascer de novo! Viu? Nasceram! – e ela
deu um beijo nele. – Obrigada!
Dulce não sabia que Chris tinha dito isso para a fadinha. Ficou feliz ao
ver os olhos dele se encherem d’água com a notícia. Chegou perto dele e
sussurrou:
– A redenção é assim mesmo... Começa com asas pequenas que vão
crescendo...
Claro que a Vila queria fazer uma festa para eles. Havia uma coisa no
Mundo Encantado. Todos queriam fazer festa o tempo inteiro. Parecia o
Brasil. Mas, dessa vez, Dulce e Chris se desculparam e se limitaram a ficar
para o almoço. Foi uma grande mesa, com muitos amigos e risos, e Dulce
quis gravar aquilo em sua memória e nunca mais esquecer.
À tarde, despediram-se com abraços de seus anfitriões. Eileen
correu e saltou no colo de Dulce.
– Fica! – pediu ela.
– Ah, meu bem... – Dulce nunca foi dada a instintos maternos, mas
aquela menininha tinha algo que fazia seu sino tocar. – Eu não posso...
Eileen fez a carinha mais triste que pôde e então abraçou-a
fortemente. As crianças levaram-lhes flores enquanto cantavam para eles.
Foi uma despedida bela e Dulce não queria, mas seu coração estava se
entristecendo em dar adeus a tantas pessoas queridas no mesmo dia.
Quando já estavam longe, Eileen correu até eles e puxou Dulce de novo.
Ela achou que era para um abraço final, mas a menina queria dizer-lhe algo
no ouvido, como se fosse um segredo. Quando terminou, correu de volta
para Maite e Christian, que, junto com os outros, lhes acenavam adeus.
– O que ela disse? – perguntou Chris.
– Uma coisa engraçada... – disse Dulce, rindo. – Disse que gostaria
de ser nossa filha.
Eles sorriram, olhando-se longamente, cada qual imaginando como
poderiam ser as coisas se não houvessem tantas coisas entre eles.
E assim, a Vila das Fadas D’Água ficou para trás. Entraram no
bosque e caminharam em silêncio por algum tempo.
– Está acabando... – disse ela.
– Sim, está...
– Eu não queria que acabasse...
– Sua história não acabou. Vai continuar, só que em outro mundo.
Veja, chegamos...
Dulce não acreditou que já tinham chegado. Na verdade, tinha
torcido para algo acontecer, caírem num buraco, irem parar na Caverna do
Dragão ou qualquer coisa que atrasasse o fim. Queria voltar pra casa. Mas
não queria deixar Chris. E lá estava o círculo de fadas, um círculo de pedras
brancas na relva marcada.
– E o que acontece com você? – perguntou ela.
– Eu volto para o meu mundo, para uma próxima missão.
Dulce olhou-o longamente, tentando lembrar de todos os detalhes
de seu rosto.
– Vai me esquecer? – perguntou ela.
– Isso será muito difícil! – respondeu ele com um grande sorriso. –
Afinal, você foi minha primeira missão.
Dulce desfez o sorriso. Não era bem isso que esperava ouvir. Então,
ela achou que não devia mais prolongar o sofrimento.
– Tome... – ela lhe entregou a foto em que ela sorria com sua família.
– Pra que você não se esqueça de mim.
Ela olhou-o longamente.
– Porque eu nunca vou me esquecer de você... – finalizou ela.
Deu-lhe um abraço apertado, os olhos cheios d’água, sentindo pela
última vez o cheiro de maçã. Então, ela se virou e entrou no círculo das
fadas, sem olhar para ele de novo, porque não queria que ele a visse
chorando.
Um inesperado puxão em seu braço a trouxe de volta para ele, que
lhe deu um longo e inesperado beijo. Suas asas se abriram e se iluminaram.
O beijo dele era doce e suave e ela não queria que terminasse nunca mais.
Soube, naquele momento, que quantas vezes ele a beijasse, seria para ela
como a primeira vez.
Sentiu as mãos dele em sua cintura e em seus cabelos,
e puxou-o para si, sentindo os pés saírem do chão. Estavam voando, acima
das árvores, no céu azul da tarde. Quando seus lábios se separaram
finalmente, ele a olhou com olhos brilhantes.
– Eu lhe disse que ainda iríamos voar de novo...
Desceram suavemente e ele a empurrou levemente para o círculo,
embora não quisesse soltá-la.
– Eu posso ficar! – disse ela.
– Você tem para quem voltar...
– Você pode vir! – respondeu ela.
– Talvez um dia, quando eu merecer ter suas asas...
E então ela entrou de costas no círculo, enquanto suas mãos ainda
estavam unidas. Ela sentiu-se flutuar levemente e seus dedos finalmente
deixaram de se tocar.
Uma sombra escura bateu nele com violência, jogando-o no chão.
– Não!
Dulce se jogou para fora do círculo e caiu, pois já estava meio metro
acima do solo. Cinco goblins com marcas de queimaduras atacavam o anjo
caído no chão. Dulce correu para ele, mas o anjo gritou:
– Vá embora, Dulce! Não chegue perto deles!
Ela não obedeceu e um sexto goblin a pegou por trás, impedindo-a
de chegar no anjo. Dulce virou-se, tentando chutar quem a segurava, mas
congelou ao ver a carranca de órbita vazia encarando-a com ar de vitória.
Os goblins seguraram o anjo, imobilizando-o.
– Você... – rosnou o rei sem reinado para o anjo de joelhos no chão. –
Você destruiu tudo o que eu tinha! Agora... Eu vou destruir tudo o que você
tem!
Ele mostrou a garota para o anjo, que se agitou, mas não conseguiu
se soltar dos cinco monstros que o seguravam.
– Não se preocupe, irmãozinho... Você não a verá morrer, porque
esse privilégio eu não vou lhe dar. Bem, vamos ver... Por onde começo a
destruir aquele que me tirou tudo? Pelo óbvio! ARRANQUEM ESSAS ASAS!!!
Dulce gritou ensandecida, sem conseguir se soltar do monstro.
Horrorizada, ela viu Chris se debater enquanto dois goblins o seguravam e os
outros três o atacavam com mordidas e garras, arranhando e mutilando
suas asas.
O anjo gritou de dor e pássaros voaram quando sua asa direita
foi covardemente arrancada, esguichando sangue nas feras que
gargalhavam com a cena dantesca. Dulce gritava e implorava para
pararem, prometeu qualquer coisa, mas o monstro apenas a olhou
friamente.
– A época das negociações acabou – respondeu ele friamente.
A segunda asa foi arrancada, e mais sangue jorrou. Os goblins
erguiam as asas ensanguentadas como se fossem troféus enquanto o anjo
gritava de dor e as lágrimas desciam pelo seu rosto.
Os goblins que o
seguraram o soltaram, deixando que ele caísse com o rosto no chão. Dulce
parou de se debater. Procurou algo que pudesse fazer, qualquer coisa. A
única coisa que lhe ocorreu foi o encanto que Eileen lhe ensinara e que ela
nunca usou. Engoliu os soluços e gritou o encantamento.
– Ventos dos Ventos, bons ventos que ventam,
Apóiem as asas que voam nessa hora,
Que a praga assole os que me atormentam,
E asas...
Precisava lembrar! Precisava lembrar!
– Arranquem-lhe a língua agora! Esses gritos me incomodam! E
depois, depois vamos arrancar os olhos! – gritou o monstro que a segurava.
Ergueram o anjo do chão e puxaram seu rosto, forçando-o a abrir a
boca.
– E ASAS EM MEU SOCORRO VENHAM AGORA! – gritou ela.
Os monstros pararam ao ouvir o grito, percebendo que era um
encanto. Então, começaram a rir.
– O que você acha que esse encanto de crianças pode fazer, sua
garota estúpida? O que você acha que vai acontecer agora? Borboletas e
joaninhas virão nos atacar?
Eles gargalharam enquanto o sangue tingia o chão de vermelho.
Voltaram a tentar pegar a língua do anjo, quando ouviram um som.
Pararam, esperando alguma coisa, mas era apenas um monte de besouros e
borboletas, tal como o rei sem reinado tinha previsto. Eles voltaram a rir.
Quando iam pegar a língua de Chris de novo, um vulto enorme passou e levou
um goblin para longe.
Antes que pudessem compreender o que estava acontecendo,
dragões passaram por eles e os agarraram com dentes e garras,
arrancando-os do chão e levando-os para o ar, onde eram divididos em
duas ou mais partes, dependendo da disposição do dragão. Foi tudo muito
rápido. Quatro dos cinco goblins foram levados e destruídos em segundos.
O quinto tentou correr, mas logo foi pego também e levado. O anjo,
enfraquecido e se esvaindo em sangue, caiu por terra. O rei virou Dulce
para si mesmo com o rosto contorcido de ódio e apertou seu pescoço.
– Você! Você nunca mais vai...
E ele não terminou a frase, pois um último dragão passou e o levou,
mastigando-o no ar e cuspindo os restos. Dulce caiu no chão com a mão no
pescoço, tossindo para recuperar o ar. Então se arrastou rapidamente para
onde estava Chris. O belo vestido lavanda manchou-se de vermelho quando
ela segurou o rapaz nos braços. Retirou a mochila das costas e pegou a
garrafa prateada.
– Calma, Chris! Você vai ficar bom! Nós vamos consertar isso!
Ela derramou uma parte de seu conteúdo em suas costas que
sangravam. Onde antes haviam asas, a água prateada-dourada
imediatamente lavou o sangue, cicatrizando os ferimentos. Chris se agitou e
tentou se virar. Dulce o virou e ele ficou no seu colo. Ela tentou lhe dar a
água, mas ele a afastou.
– Não... – disse ele com esforço. – Você precisa disso!
– Não, eu preciso de você! Beba isso! Depois conseguimos mais!
Ele segurou as mãos dela com a garrafa no meio. Naquele momento,
já não passavam dragões, besouros ou borboletas. Havia apenas silêncio e
algo quase concreto que Dulce pôde sentir.
Há um momento, um momento fugidio e eterno, que dura um
segundo e uma vida inteira, em que você finalmente vê a verdade. Nesse
momento, você percebe que não há mais nada que possa fazer para mudar
o rumo das coisas.
O que está feito, está feito e “passo dado não se volta
atrás”. Não se pode voltar para a porta anterior, não se pode desfazer, não
se pode desdizer, não se pode desaprender, não se pode des-saber... Não se
pode... não se pode fazer nada. Algumas pessoas lutam contra esse
momento e acabam perdendo a chance de dizer adeus. Dulce viu esse
momento. Viu nos olhos dele, viu no sangue a sua volta, viu nas asas
partidas, viu no silêncio ensurdecedor que os envolveu naquela tarde de
céu azul.
Ele olhou para ela, as lágrimas banhando o rosto. Era um olhar de
despedida e naquele momento ela soube que não havia nada a fazer. Suas
lágrimas caíram sobre ele.
– Não se engane nem por um minuto... – disse ele com dificuldade,
tocando o rosto dela. – Eu faria tudo de novo...
E então, seus olhos azuis perderam o brilho e se cerraram
lentamente. Dulce continuou segurando-o, de joelhos num grande círculo
vermelho, com asas partidas ao seu redor. Seu choro virou grito e então,
lentamente, enquanto ela ainda o abraçava, não conseguiu mais segurá-lo.
Seu corpo virou luz e simplesmente partiu, deixando-a sozinha com sua
dor, enquanto seu pranto ecoava pela floresta silenciosa.
"Que suas lágrimas consigam consolar seu coração..."