Não sabe quanto tempo ficou ali. Mas ficou até o pranto lhe dar uma
chance de respirar de novo. Estava de joelhos no sangue de Chris que a terra
tomava para si, paralisada, destroçada, sem rumo. Não se movia, apenas
olhava para o vermelho que manchava seu vestido. Então, o vento levou
uma foto amassada até ela. A foto pousou na terra carmesim. Lentamente,
ela pegou e viu sua família.
Segurou a foto por algum tempo. Então, devagar, se levantou. Pegou
a garrafa numa mão e a foto na outra. Pegou a bolsa e não olhou para trás.
Entrou no círculo das fadas e partiu.
Não pôde dizer que sentiu seus pés saírem do chão. Não estava mais
sentindo nada. Estava fazendo o que tinha que fazer. Chris não podia ter
morrido por nada.
Iria até o fim. Bebeu o restante do líquido da garrafa
enquanto ainda flutuava, pensando no jardim de sua casa do qual sua mãe
cuidara tão bem. Quando pisou em terra firme de novo, imaginou onde
poderia estar. Olhou em volta e não reconheceu.
Deu alguns passos e tropeçou numa pequena estátua grega de Vênus
partida coberta de musgo. Abaixou-se e se lembrou daquela estátua.
Tinham comprado numa viagem e ela costumava enfeitar o jardim. Mas só
se lembrava dela nova.
O coração se acelerou. Virou-se novamente para o lugar e
reconheceu o jardim, agora um terreno cheio de mato, sem nenhum tipo de
cuidado. Olhou pra frente e reconheceu sua casa, mas sem pintura e com
algumas vidraças quebradas. Caminhou com seu vestido manchado até a
entrada dos fundos. Estava aberta.
Entrou e encontrou sua casa em estado lastimável. Estava tão
abandonada que se perguntava se era habitada. Olhou-se num espelho
quebrado e percebeu que ainda estava jovem. Não virara pó, mas
certamente aquele não era o seu tempo. Subiu as escadas, chamando por
Cacau, que não fora recebê-la.
Entrou em seu quarto, aparentemente
intocado desde que partira, embora coberto de poeira. Tudo estava igual,
com exceção do mural onde costumava colar fotos de seus ídolos juvenis.
Ao invés deles, havia recortes de notícias de jornal, misturados a fotos suas,
de sua mãe, de Cacau, de seu tio e da família unida.
Passou os olhos pelas notícias, tentando seguir a ordem pelas datas.
Havia a notícia do desaparecimento de Anahí em um jornal que ela lera e
ela mesma recortara e colara ali.
Então, havia notícias do desaparecimento
dela mesma. Seguiam-se vários recortes, cada vez menores, falando das
buscas. Até que uma notícia mostrava um carro destruído. Dois meses
depois que ela desaparecera, houve um acidente de carro. Sua mãe estava
dirigindo, seguindo uma pista do paradeiro da filha. Tio Marcos estava no
carro. Morreram ambos no local.
Dulce começou a andar para trás, o vestido lilás manchado de
sangue a fazendo parecer a personagem de uma história triste, se afastando
das notícias que apunhalavam seu coração. Virou-se, sentindo tudo rodar e
o ar faltar. Correu pela casa, descendo as escadas, procurando seu pai. Foi
até a entrada da casa, onde podia ver a rua silenciosa. Chamou por seu pai,
mas ninguém respondeu.
No chão, um jornal ainda enrolado num saco
plástico não tinha sido recolhido. Pegou-o lentamente e olhou a data. Trinta
anos haviam se passado. Voltou para dentro de casa, procurando pelo pai,
até que encontrou um velho sentado diante da janela. Caminhou até ele e
pousou as mãos em seu braço. O velho tinha os olhos de seu pai. E era só o
que ela poderia reconhecer nele. E não era pela idade. Era a tristeza que o
envelhecera.
– Pai?
Ele olhou para ela e simplesmente não a reconheceu.
– Minha filha desapareceu... – murmurou ele, voltando a olhar para a
janela. – Como a cachorrinha dela no Natal. Nunca achei nenhuma das
duas... Mas ela vai voltar... Eu sei que vai...
Ela não controlou as lágrimas e elas vieram abundantes. Beijou a
face do pai e voltou para o jardim, no ponto onde tinha chegado. Deixou-se
cair, chorando alto. Eram muitas perdas para um coração só. Estava em
pedaços, estava destruída. Não restara nada...
Encolheu-se em si mesma e, nesse movimento, algo pendulou.
Segurou a garrafinha que Urisk lhe dera. O verde dentro dela continuava
fosforescente. Segurou o vidrinho nas mãos e se concentrou. Pensou em
sua mãe, em seu pai, em Cacau, em seu tio, na vida com eles que nunca
viveu e, principalmente, pensou em Chris.
Então, abriu a diminuta rolha e bebeu todo o conteúdo. Fechou os
olhos, esperando algo acontecer. Quando os abriu, nada havia mudado.
Com olhos tristes, levantou-se e caminhou para a casa. Só lhe restara cuidar
de seu pai. Era o que faria. Ela não viu, mas enquanto entrava em casa, o
matagal atrás dela se transformava em um bem cuidado jardim.
Entrou e foi para a cozinha. Precisava de um pouco de água. Abriu a
geladeira, pegou a garrafa, bebeu no copo, e devolveu a garrafa para a
geladeira. Apoiou-se na bancada da pia por alguns instantes. Precisava que
a dor lhe desse um tempo, alguns segundos que fosse, para que voltasse a
pensar. Foi quando algo lhe pareceu fora do lugar. Voltou à geladeira.
Havia um bolo lá dentro. Um bolo do qual se lembrava, porque era o
bolo gelado trufado que sua mãe costumava fazer. Lembrou que a última
vez que o comera foi justamente com Analice.
Ouviu vozes na casa. Seguiu-as com cuidado. Vinham da sala do
piano com porta para o jardim. Conforme ia seguindo os corredores,
percebeu que a casa parecia mais nova do que da primeira vez que entrou,
lembrando muito mais a casa que conhecera. Escondeu-se atrás da parede
e prestou atenção nas vozes. Deu uma espiadinha e voltou rápido, sem
acreditar no que via.
– Há alguém presente?
– Não fuja! Não se esqueça de que não podemos deixar o portal
aberto, ou seres podem vir aqui e não voltar para o lugar deles!!!
Dulce não acreditava. Estava a alguns metros dela mesma, minutos
antes de Anahí desaparecer.
Então, era isso? Essa era a segunda chance? E o que faria com ela?
Deveria interromper a sessão e impedir o desaparecimento de Analice?
Com certeza, tudo se resolveria!
– Como é aí?
– B-O-N-I-T-O.
Sua mente ficou subitamente clara. Lembrou-se de Anahísorrindo,
em como ela estava feliz no mundo das fadas. Lembrou-se de Chris, que ela
nunca conheceria. Lembrou-se de Eileen, de Christian, de Maite, de Sachti...
Lembrou-se das pessoas que eles salvaram da Corte Unseelil. Nada daquilo
jamais aconteceria.
– Você pode ver o futuro?
– “SIM”.
– Pode nos dizer algumas coisas?
– “TALVEZ”.
Se nada daquilo acontecesse, Chris estaria vivo. Jamais teriam se
conhecido, mas ele estaria vivo...
“Não se engane nem por um minuto... Eu faria tudo de novo...”
– Cuidado? Cuidado com o quê?
Então, ela segurou a garrafinha pendurada no pescoço, agora vazia,
recostada na parede, e fechou os olhos. As lágrimas voltaram a banhar o
rosto. A cada vez que dizia para si mesma “Ele estaria vivo”, ouvia a voz de
Chris em suas últimas palavras.
“Não se engane nem por um minuto... Eu faria tudo de novo...”
E quando a ventania irrompeu, nada impediu que Anahí
desaparecesse.