Thomas aceitou o desafio. Era um anjo paciente e amoroso. Você
pode achar que essa é a descrição de todos os anjos, mas eles são tão diferentes entre si quanto nós, humanos, uns dos outros.
Acreditar que todos os anjos são iguais é como pensar que todo brasileiro sabe sambar, todo italiano gosta de macarrão e todo japonês se veste de samurai. Thomas tinha os cabelos castanhos na altura do pescoço e um olhar sempre tranquilo.
Mesmo os anjos mais estressados sempre se sentiam melhor quando conversavam com Thomas. Sua estrada era longa, mas com alguns percalços. Ele sabia que isso seria levado em conta quando se encontrasse com o Conselho.
Então, deixou o grande templo celeste, onde milhares de anjos trabalhavam dia e noite sem parar, para pensar um pouco.
Deixou Charlie, um anjo novato, mas muito responsável, em seu lugar e se ausentou por algumas horas. Abriu suas enormes asas prateadas e subiu. Thomas era um anjo com asas. Pode parecer loucura pra você, mas muitos anjos ainda não possuem asas.
Ganhar asas é um grande passo, uma prova de que o ser alcançou grande valor. Mas não ter asas não fazia tanta diferença assim quanto nós poderíamos pensar aqui embaixo.
Afinal, com asas ou sem asas, todos no Grande Templo podiam voar quando bem entendessem. Mas Thomas já era anjo há muito, muito tempo e já tinha ganho suas grandes asas há eras. Com elas, ergueu-se acima do tempo, acima do céu, no meio do Universo, entre buracos negros e supernovas. E então, o anjo meditou.
C fizera muitas coisas ruins no mundo das fadas. Muitas mesmo! A criaturinha tinha sido uma peste. Destruíra fadas, torturara humanos, roubara e causara muito estrago, tanto em seu próprio mundo quanto no mundo dos homens. É muito difícil imaginar que uma criatura dessas seja algo mais do que um monstro.
É preciso ter visão. E visão era uma coisa que Thomas tinha. Ele viu que C, antes de ser um goblin, era uma centelha divina. Uma centelha que se apagou por muito tempo e reacendeu quando ele decidiu ajudar o humano capturado, Nate.
Aquela centelha que todos possuíam permitiu que ele fosse resgatado. De outra forma, o anjo nem mesmo o encontraria, pois a centelha age também como um farol. Por isso às vezes é tão difícil resgatar certas criaturas ou pessoas. Não é por falta de vontade dos anjos. Apenas é muito difícil para eles encontrar algo sem luz em escuridão tão profunda.
E fora por pouco que Thomas chegara até ele. Antes de Thomas chegar até C, era preciso que o pedido de Nate chegasse até Thomas. E tínhamos aí um longo caminho burocrático e, por causa dele, a petição quase não chegou às mãos de Thomas. Das milhares de orações recebidas por hora no departamento mais movimentado do Grande Templo, esta não pareceu importante para Marziel.
Mas não acuse Marziel cedo demais. Compreenda que, em certas épocas, há mais pedidos de ajuda do que anjos para atender, mesmo havendo milhares de milhares deles. A prioridade dos anjos era os humanos e isso sempre ficou claro.
Então, assim que um atarefado e sobrecarregado Marziel recebeu um pedido humano para ajudar um elemental, ainda mais um goblin, criaturas desprezíveis e muito burras para entender o quanto atrasam sua própria existência, colocou o pedido na seção de “rejeitados”.
Nesse tempo, os pedidos chegavam em várias formas. Pedidos feitos por magia chegavam por imagens e os anjos responsáveis por isso tinham instrumentos especiais para decifrá-las, podendo interagir com o humano em questão. Esse era um dos departamentos mais invejados no Grande Templo. Você pode imaginar que anjos não sentem inveja ou ciúme e são feitos apenas de virtudes.
Os mais evoluídos são assim, mas, como disse, há milhares e milhares de anjos no universo e muitos deles ainda são muito jovens e carecem de certas lições que terminarão por polir seu caráter. A diferença entre nós e eles é que eles, os anjos, possuem uma boa vontade muito maior do que a nossa para esse polimento.
O fato é que Marziel não fazia parte desse setor admirável com equipamentos modernos e recursos que ele não tinha. O que ele tinha eram papéis. Papéis com orações que não paravam de chegar. E ele, como os outros de seu setor, não tinha autonomia para ir lá e resolver, mesmo o caso mais simples. Ele precisava selecionar, separar, catalogar e levar cada lote para um anjo mais elevado. E isso deixa qualquer anjo estressado.
Felizmente para C, o Universo é um grande conspirador, seja no mundo dos homens, das fadas ou dos anjos. Syl, uma elemental que ajudava os anjos na organização do setor de Marziel, passou por sua mesa e levou a caixa com os rejeitados. Syl era uma fada muito aplicada, de cabelos castanhos e curtinhos cortados à la chanel.
Syl também gostava do mundo dos homens e sempre estava espiando por lá, usando roupas e penteados de acordo com a moda. Syl, no entanto, tinha o sonho de ser mais do que uma fada e um dia trabalhar mais diretamente com os humanos. Então, depois que terminava seu serviço, ela ia para o jardim, num recanto de flores coloridas onde ninguém a encontrava. Ali, ela revia todos os pedidos negados.
Então, por conta própria, tentava ajudar os casos mais simples, sem que ninguém soubesse.
Quando pegou a petição de Nate sobre o goblin que o ajudara a fugir da Corte Unseelil, Syl gelou.
Ela mesma conhecera a Corte Unseelil e compreendeu melhor que Marziel os extremos daquele pedido. Em primeiro lugar, nenhum goblin da Corte Unseelil ajudaria um humano capturado. Em segundo lugar, nenhum humano que tivesse passado pelas atrocidades que a Corte Unseelil impinge aos seus prisioneiros pediria por qualquer um deles. Em terceiro lugar, ninguém conseguiria resgatar esse pobre goblin, a não ser um anjo de alto escalão.
Syl pensou longamente sobre o pedido de Nate. Até que, enfim, tomou uma decisão.