Também no Grande Templo amanhecia e escurecia. Na Cidade das
Estrelas, o nome do lugar onde ficava o Grande Templo, havia muito mais a
fazer do que simplesmente trabalhar. Não havia horários. Anjos
trabalhavam o quanto queriam, porque queriam. Geralmente, elementais
podem ser preguiçosos se o serviço não for interessante e facilmente
dispersam e perdem sua atenção.
Thomas acreditou que um pouco da
natureza elemental de Christopher provocaria um abandono de emprego em
poucos dias, pois dia após dia, a mesa do anjo novato permanecia apagada e
sem novidades, enquanto todos a sua volta se moviam alegremente em
missões cada vez mais interessantes.
Mas o anjo não abandonou o trabalho. Continuou indo, dia após dia,
chegando cedo e ficando até tarde, esperando ansiosamente que a luz verde
acendesse. Até que numa noite, finalmente, ela acendeu.
A grande sala estava vazia. Todos tinham seus afazeres em campo e
só restava um anjo debruçado sobre uma mesa. Christopher estava quase
cochilando quando a luz e o som leve de um sino agudo o acordaram.
Confundiu-se e por alguns segundos não soube o que fazer. Tocou a tela de
cristal diante dele e uma imagem apareceu. Viu uma jovenzinha de cabelos
castanhos de pé num quarto, diante de velas. Christopher esfregou as mãos
animado. Estava prestes a ganhar sua passagem para um passeio no Mundo
dos Homens para ajudar essa moça a conseguir sei lá o quê. Respirou fundo
e aguardou que ela dissesse o pedido.
A moça ficou parada, olhando em volta, esperando algo acontecer.
Christopher então tomou a iniciativa.
– Foi você quem chamou?
A menina não respondeu de pronto. Parecia confusa em ouvir a voz
do anjo em sua cabeça. Christopher não compreendeu o motivo da confusão.
Afinal, se ela chamou, por que a surpresa de alguém atender? Lembrou que
Thomas havia lhe explicado que nem todos que fazem um pedido através
da magia são verdadeiros magos, bruxas ou feiticeiras. Algumas são
pessoas que seguem as instruções como quem segue um livro de receitas.
Christopher insistiu.
– Foi você?
– F-foi... – gaguejou a moça.
– Bom... O que posso fazer para ajudá-la?
– Você é Derrick? – perguntou ela.
– Não, ele está muito ocupado no momento. Mas vim em nome dele,
pode dizer o que você quer.
A garota pensou. Christopher não tirava os olhos da tela, empolgado
com sua primeira missão. Com certeza, seria algo relacionado ao amor,
curar um coração partido ou unir um casal. Como era um anjo de Derrick,
talvez ela o tivesse chamado para um trabalho de cura, ou para espalhar
uma notícia. Eram tantas as possibilidades que a mente dele não parava de
funcionar, como quem imagina os prêmios que pode ganhar ainda com o
bilhete na mão.
– Minha amiga Anahí desapareceu domingo passado. Eu acho que
ela está no Reino das Fadas. Pode me ajudar a encontrá-la?
Christopher não respondeu. O rosto desmontou e a empolgação
evaporou. Recostou-se na cadeira, enquanto imagens há muito esquecidas
voltavam como punhaladas no coração. Coisas que ele fizera, coisas que
fizeram com ele, coisas que só queria esquecer.
– Alô? – disse a menina.
– Estou aqui – respondeu ele, suando frio. – Estou apenas
verificando seu pedido. Aguarde um momento, por favor.
Então, com um movimento de mãos, disse:
– Tempus suspensus.
Talvez não precisasse pegar aquela missão. Christopher precisava
averiguar a menina no Arquivo Akáshico. A tela lhe deu o nome dela. Então,
esqueceu-se completamente de que podia verificar isso na tela ao lado,
saltou da cadeira e saiu correndo, levantando alguns papéis com sua
correria. Atravessou corredores, esbarrou em outros anjos, entrou
estabanadamente na imensa biblioteca e pediu informações. Infelizmente,
ali não era o Arquivo Akáshico.
Era a Biblioteca Universal, com todos os
livros de todos os autores de todos os tempos, incluindo uma seção com
livros nunca escritos em vida, mas sonhados ou escritos em outros planos
por autores depois de sua morte. Aquele, aos olhos de muitos, era o lugar
mais interessante do mundo, mas Christopher não ficou nele nem por três
segundos. Correu na direção oposta e voltou a esbarrar em mais meia dúzia
de anjos ocupados, mas distraídos. Entrou finalmente na imensa biblioteca
de cristal. Parou na anja que atendia.
– Preciso achar uma pessoa!
– Ah, querido! Todos precisamos! O amor é uma necessidade em
qualquer esfera de existência!
– Não, sou um anjo de Derrick e estou com um pedido na linha.
Preciso saber se a pessoa tem dívidas pendentes com o Karma.
– Ah, sim! Você prefere o método tradicional ou o atlante?
– O mais rápido!
– Bom, depende de você. No método antigo, temos livros. No método
atlante, temos cristais em pequenos discos que...
– Os livros! Os livros!
A moça apontou uma direção e deu instruções que Christopher mal
ouviu. Correu escorregando pelos enormes corredores com prateleiras que
subiam a mais de cinco metros. Procurou pelo nome e achou uma direção.
Seguiu atarantado até encontrar a estante certa.
Voou graciosamente,
quase flutuando, para pegar o último livro da última prateleira com as
informações que queria. Folheou o livro rapidamente, para terminar com
um grunhido de desagrado. A maldita não tinha restrições kármicas para
aquele pedido. Recolocou o livro no lugar e voou de volta.
Pousou assim que identificou anjos conhecidos no pátio. Estavam
conversando tranquilamente quando o anjo intrometeu-se entre eles,
perguntando quem gostaria de pegar um pedido de magia para ir ao Mundo
das Fadas. Infelizmente, a oferta não parecia tão boa e Christopher nunca fora
bom vendedor. Depois de várias tentativas, seu tempo acabou e ele voltou
para a sala vazia onde apenas sua mesa tinha imagens na tela.
Sentou-se na mesa e viu a garota esperando na tela de cristal
flutuante. Respirou fundo e tirou o cabelo do rosto.
– Você conhece os perigos do Mundo das Fadas? – perguntou
finalmente o anjo.
– Conheço... – Dulce não parecia muito segura.
– Então sabe que ao ir para lá, pode nunca mais voltar?
A menina não respondeu.
– Sabe que ao tentar recuperar o que perdeu, pode perder tudo o
que tem?
– Não procuro tesouros! – respondeu ela de repente, sentindo-se por
certo ameaçada por algum castigo divino por querer ir mais longe. – Não
quero ir porque estou curiosa, embora esteja mesmo. Não quero ir para ver
uma fada de verdade. Quero ir porque minha melhor amiga foi levada para lá
e pode estar sozinha ou em apuros agora! Sou a única amiga de verdade dela, ela só tem a mim para ir até lá. Se você fosse arrastado para um outro
mundo, e estivesse em perigo, ou sofrendo, não gostaria que alguém que o
amasse o bastante fosse até lá resgatá-lo?
Christopher gelou. O rosto estava branco e o silêncio que se fez pareceu
esmagá-lo.
– Você aceita os riscos, então? – perguntou o anjo, finalmente.
Dulce respirou fundo.
– Aceito.
Christopher fechou os olhos em desalento. Teria que voltar para o
último lugar que gostaria de ir, correndo o risco de se deparar com antigos
e fatais inimigos. Pior que isso, teria que se deparar com quem ele mesmo
foi e suas ações vergonhosas. Sentiu o coração apertar e desejou que a luz
na sua mesa não tivesse se acendido.
Talvez ela desistisse. Muitas dessas
bruxas de primeira viagem desistem no meio do caminho. Porém, se ela
fosse mesmo, ia fazer a coisa certa. Levaria a mocinha até a amiga dela, em
segurança, e a traria de volta ao seu mundo, em segurança. Esperava que
ela desistisse, mas se não... Essa seria a sua primeira missão. E ele teria que
cumpri-la.
– Muito bem... – disse o anjo – Você deverá escolher o momento
certo, do dia certo, no lugar certo e fazer o que tem que fazer. Não deverá
levar consigo nenhum aparelho eletrônico. Mas deve levar o seguinte:
A garota ficou parada prestando atenção.
– Anote! Ou você pode esquecer! – ordenou o anjo.
Ela pegou estabanadamente um bloco e uma caneta e começou a
anotar.
– Você deve levar frutas, doces e coisas que você coma, além de uma
garrafa de água. Não precisa ser em grande quantidade, apenas o bastante
para uma refeição. Não leve carne de nenhum tipo.
Christopher ouviu o pensamento da guria: “Puxa, que pena, não poderei
levar 20 kg de costela pra fazer um churrasco...”. Que ousadia! Ainda era
sarcástica! Essa tal de Dulce era mesmo muito abusada!
– Você pode não levar costela, mas bem que ia gostar de levar um
frango assado com farofa, sua farofeira! – retrucou o anjo.
– Você pode ouvir o que eu penso???
– Posso ouvir e posso ver. Então é melhor tomar cuidado com seus
pensamentos.
– E lá se foi minha privacidade... – murmurou a contragosto. – Muito
bem, não levar carne, e o que mais?
– Você não deve comer nenhum tipo de carne a partir de agora. Nem
tomar bebidas alcoólicas. Você deve levar, e isso é muito importante, uma
coisa que a lembre de quem você é e de onde você veio. Você deve levar
algumas joias, não precisam ser verdadeiras, mas precisam ser brilhantes e
bonitas. Não vá de preto. Nos encontraremos lá!
– Peraí! Lá onde?
– Você não estava prestando atenção? No lugar certo, no momento
certo do dia certo!
Christopher já estava desligando e finalizando o contato, quando ouviu
uma última pergunta.
– Espere! Qual o seu nome?
Espantou-se. Quase nunca perguntaram seu nome, nem no Mundo
das Fadas, nem no Mundo dos Anjos. Não esperava esse tipo de pergunta.
Então, antes da imagem se apagar completamente, respondeu:
– Christopher.