Fanfics Brasil - Capítulo 1 - O Passado Que Nos Molda O Medo de Olhar Para Trás

Fanfic: O Medo de Olhar Para Trás | Tema: Romance,


Capítulo: Capítulo 1 - O Passado Que Nos Molda

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   As pessoas supervalorizam a ideia de amar. Muita gente abre mão de viver, apenas correndo atrás de um grande amor, uma história de filme de romance, onde o casal finalmente fica junto na cena final, quando depois de muito drama e trilhas sonoras que te fazem debulhar-se em lágrimas, eles se encontram no meio de uma estação de trem, ou em uma cena fantástica no meio do campo debaixo de uma chuva e se beijam apaixonadamente, sem se preocupar com o mundo á sua volta, ou com as pessoas que os cercam. Comigo foi diferente. O meu verdadeiro amor foi a realização de meu maior pesadelo e a superação de meu maior medo.


   Minha mãe passou a vida dentro de escolas, ensinando para crianças e cuidando de bebês. Ela fora uma das mulheres mais incríveis que já conheci. Inteligente, linda, com o sorriso mais lindo que já vi na vida. Meu pai passou mais da metade de sua vida como vendedor. Havia trabalhado em lojas de departamento, concessionárias de veículos e por fim terminou como representante de vendas de uma editora de livros. Mas, apesar de sempre trabalhadores, nossa família nunca teve uma boa condição financeira.


   Quando eu tinha quatro anos de idade, prestes a completar cinco, nasceu Isadora, minha irmã. Uma criança linda, sorridente como nossa mãe e com os olhos de um azul místico de nosso pai. Mas foi nessa mesma época que nossa vida se transformou em um verdadeiro inferno. Meu pai, cansado de viver contando moedas, decidiu entrar em um bar e apostar todo o salário que recebera em pôquer. Obviamente, voltou para casa sem nenhum centavo. Nunca havia visto minha mãe tão irritada, e até Isadora deve ter sentido, porque ela não parava de chorar nem um minuto sequer, e, enquanto meus pais brigavam na cozinha, aos berros, eu cuidava de Isadora, trancados no quarto dela.


   Meu pai se fechou o resto do mês, em um estado de depressão avançado. Até hoje não sei se ele ficou deprimido com o fato de ter falhado com a família ou perdido a aposta. Mas no mês seguinte, quando recebeu o novo salário, ele voltou a jogar.


   Minha mãe não podia acreditar no que estava acontecendo. Aos poucos seu semblante mudou, de preocupação para tristeza, de tristeza para desespero. E ela desistiu. Quando meu pai chegou naquela noite, anunciando a vitória dele, e entregando na mão dela um bolo com o equivalente a cinco meses de salário, minha mãe pediu o divórcio. Meu pai afundou no sofá, chorando. Minha mãe, foi até o quarto e começou a organizar algumas de suas roupas dentro de uma enorme bolsa, e algumas de minhas roupas e de Isadora, dentro de uma bolsa menor. Apenas o essencial para que pudéssemos passar um tempo na casa de minha avó.


   Eu estava sentado no chão da sala, brincando com Isadora, quando meu pai parou de chorar, se levantou do sofá, pegou Isadora no colo e me puxou pela mão até o quarto do bebê. Eu não entendia nada do que estava acontecendo, mas no fundo eu sabia que não deveria perguntar. Não sei o porquê, mas eu tive a sensação de que algo muito ruim estava para acontecer. Papai nos trancou no quarto, pelo lado de fora, e menos de cinco minutos depois, em meios aos gritos e confusões, pude ouvir coisas se quebrando e minha mãe gritando por socorro.


   Na manhã seguinte, acordei ainda com as mãos sobre os ouvidos e o travesseiro encharcado pelas lágrimas. Tentei abrir a porta, mas ainda continuava trancada. Fiquei apenas sentado a um canto do quarto de Isadora, que a essa altura chorava alucinadamente, com fome. Não havia nada que eu pudesse fazer por ela, e além do mais, eu tinha acabado de fazer cinco anos. Era apenas uma criança. Algumas horas depois, ouvi a chave virando na porta e minha mãe apareceu na soleira. Ela tinha um belo sorriso no rosto, assim como uma enorme mancha negra sobre um dos olhos e pontos malfeitos em um corte que ia do supercilio ao queixo, cortando toda a bochecha dela. Ela amamentou Isadora, e eu sentei ao seu lado, apenas observando sua expressão imutável. E eu soube que nós não íamos mais embora dali.


   Isso se transformou em rotina. Meu pai começou a chegar em casa bêbado, e alguns anos mais tardes, descobri que ele também cheirava cocaína. Minha mãe se tornou uma mulher submissa, com medo. E então, o medo a dominou.


   Cerca de dez anos depois, minha mãe começou a se tornar uma pessoa estranha. Passou a deixar comidas simples queimar, esquecia qual era o controle remoto da televisão, e por vezes chegou até a tentar abrir a porta da geladeira pelo lado oposto, como se fosse a primeira vez que fazia isso. Eu, com meus quinze anos, então, comecei a assumir algumas responsabilidades da casa, como o de fazer comida e ajudava ela na limpeza. Recomendei que ela fosse a um médico para saber o que estava acontecendo, mas ela nunca foi, alegando ser apenas estresse, apesar de, no fundo, eu saber que ela tinha medo de que precisasse explicar a origem dos hematomas e cicatrizes.


   Até que finalmente ela foi diagnosticada com demência frontotemporal. A DFT se desenvolveu rapidamente, e em menos de dois anos ela já falava com muita dificuldade e por vezes era praticamente incompreensível, e aos poucos seus movimentos começaram a se tornar inábeis e difíceis.


   Ela morreu no terceiro ano da doença. Agora eramos só eu, Isadora e meu pai.


   Quando fiz dezoito anos, eu trabalhava em uma oficina de carros próximo a onde morava. O dinheiro era o suficiente para cuidar de Isadora e de mim. Meu pai se afundou ainda mais em seu vício e se tornou ainda mais inútil do que era. Eu assumi a responsabilidade da casa e de Isadora.


   Por muitas vezes meu pai sumia de casa e só voltava na noite seguinte. Em uma dessas vezes, decidi ir atrás dele. Deixei Isadora na casa da senhora Muller, uma senhorinha que vivia do outro lado da rua, e fui ao bar que ele costumava frequentar para saber onde ele poderia ter ido. Perguntei ao dono, que estava atrás do balcão, se ele sabia onde meu pai estava. Todos sabiam quem ele era. O bêbado da cidade, o viciado em cocaína. Acontece que ele estava em um dos quartos de cima, no motel que o dono do bar administrava paralelamente, com uma prostituta barata que provavelmente roubaria toda a cocaína e o dinheiro dele. Ele havia chegado no fundo do poço. E eu não tinha a menor intenção de ajuda-lo a sair de lá.


   Voltei para o bar naquela noite e pedi um copo de uísque. Antes mesmo de beber o primeiro gole, alguém sentou-se ao meu lado:


   — Tão jovem e já cheio de mágoas para afogar no fundo do copo?


   Era uma voz feminina, forte, poderosa, mas nem sequer olhei para a dona, temendo que fosse alguém que me conhecesse e que pudesse soltar mais daquelas piadinhas que por tanto tempo ouvi, me comparando ao lixo do meu pai, e que geralmente amaldiçoavam meu futuro, dizendo que eu seria como ele.


   — “Bebia para afogar as mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar.


   — Há! Frida Kahlo. Temos um filósofo aqui, pessoal!


   Olhei para o lado e vi uma garota linda. Cabelos ruivos e selvagens, rosto quadrado, forte e uma aparência quase viking. Sabia que não era nenhuma conhecida. Ninguém que eu conhecia saberia quem é Frida Kahlo, muito menos identificar uma menção a ela. A garota sorria para mim, com o qual passou a ser o sorriso mais lindo que eu já vira na vida. Sorri de volta e estendi a mão para cumprimenta-la.


   — Erick Jones.


   Ela sorriu, como se tivesse ganho na loteria, e começou a cantar:


   — “Mr Jones and me, tell each other fairy tales...


   — Há! Counting Crows. Temos alguém com excelente gosto musical aqui, pessoal!


   Rimos alto e ela se apresentou.


   — Meu nome é Vanessa Hall.


   Foi muito rápido. Em 2 dias eu e Vanessa já estávamos nos apresentando como um casal, indo ao cinema juntos e nossa primeira vez foi naquela mesma noite. No final do primeiro mês de namoro, ela já havia se mudado para minha casa e ajudava a cuidar de Isadora. Foi a época mais feliz de minha vida. Tudo acontecia rápido demais, como um filme com velocidade aumentada, em que as cenas passavam de forma engraçada. Portanto, não foi nenhuma surpresa quando Vanessa disse que estava grávida em nosso aniversário de seis meses de namoro.


   Nessa época, eu consegui esquecer que meu pai ainda estava por ali, rondando minha vida como um inseto de luz ronda a lâmpada, jogando sombras disformes sob as paredes. A gravidez de Vanessa me mudou para melhor, e eu fui o homem mais feliz do mundo pelos nove meses seguintes.


   Eu levava Vanessa semanalmente ao obstetra para acompanhar o crescimento de nosso filho. Com cinco meses de gravidez e tudo correndo maravilhosamente bem, descobrimos que a criança seria um menino. Choramos juntos naquela noite, e quando Isadora veio perguntar porque estávamos tristes, dissemos que não estávamos e que ela ia ser tia de um lindo menino. Ela chorou junto conosco.


   Isadora estava virando uma moça rapidamente, e então, isso foi oficializado. Um dia, chegando da escola, Isadora correu direto para o banheiro e se trancou. Ela chorava compulsivamente e eu fiquei preocupado com o que poderia ter causado tamanho desespero em minha irmã. Tentei abrir a porta, mas estava trancada.


   — Sai daqui, Erick! — Ela gritou lá de dentro, entre soluços.


   — O que está acontecendo? — Vanessa chegou próximo á porta e me perguntou.


   — Não sei — Respondi — Ela não quer me dizer.


   Vanessa me empurrou gentilmente para o lado e chegou o rosto próximo a porta. Deu um toque com o punho cerrado, levemente, e disse com a voz doce que sempre tivera.


   — Isa, meu anjo, quer conversar? De mulher pra mulher?


   Então minha ficha caiu. Claro! Havia chegado o dia que Isadora deveria ter tido sua primeira menstruação. Ainda bem que Vanessa estava ali, porque se dependesse de mim, eu não saberia nem por onde começar a explicar o que estava acontecendo. Naquele momento, senti tanta falta de minha mãe, e amei Vanessa mais do que nunca. Isadora abriu a porta do banheiro lentamente e deixou que Vanessa entrasse. Me olhou em seguida, e disse:


   — Desculpe, Erick, mas é coisa de menina.


   Sorri e deixei as duas se entenderem sozinhas lá dentro. Alguns vinte minutos mais tarde, as duas saíram do banheiro, sorrindo e felizes e tudo parecia mais uma vez ter se resolvido bem.


   Pela primeira na vida, fechei meus olhos e agradeci a Deus pelo que ele havia me proporcionado ali. Um pouco de paz na vida, uma calmaria no meio a tantos anos de tempestades. Um anjo de guarda para proteger a mim e a minha família.


   Alguns meses depois desse evento, eu trabalhava no escapamento de gás de um Honda na oficina quando meu chefe me chamou em seu escritório. Estava acontecendo. Disparei para casa e quando cheguei Vanessa estava sentada no sofá, as contrações se tornando cada vez mais constantes. Ajudei ela a entrar no carro, e fomos correndo para o hospital. Eu andava de um lado para o outro, enquanto o parto era feito. Demorou mais do que eu esperava e minha ansiedade se tornou cada vez mais frequente. Passada mais de 2 horas e sem nenhuma noticia dos médicos, minha ansiedade começou a se transformar em frustração e eu fui procurar a recepcionista para que ela pudesse chamar alguém para me dar noticias. Cerca de dez minutos depois veio o doutor responsável pelo parto de Vanessa.


   — Senhor Jones. Acho que o senhor vai querer se sentar.


   Minha garganta se fechou instantaneamente.


   — O que está acontecendo, doutor? Porque essa demora toda para o parto?


   — Senhor Jones, temo que carrego algumas notícias desagradáveis.


   Eu senti um arrepio correr pela minha nuca e se estender por todos os pelos do meu braço e pela minha espinha. Um calafrio me dominou e meu corpo se contorceu internamente.


   — Onde está meu filho? O que aconteceu com meu filho?


   — Seu filho está bem, senhor Jones. — Disse o médico, com expressão séria, profissional — um lindo menino de 49 centímetros e 2 quilos e novecentos. O senhor poderá vê-lo assim que as enfermeiras terminarem de limpá-lo.


   — Então o que está acontecendo?


   — Temo que o problema seja com sua mulher, a senhorita Vanessa.


   Eu instintivamente agarrei o jaleco dele, desesperado, lágrimas se formando nos olhos já marejados.


   — Senhor Jones, tivemos algumas complicações médicas durante o parto. A criança não estava em posição propícia, mas as contrações já a empurravam para fora. Não tivemos tempo de preparar uma cesariana e, portanto, a criança nasceu de parto normal. Porém sua esposa teve uma hemorragia interna forte, que foi impossível de controlar. — Eu já sentia minhas pernas falharem naquele momento. Os joelhos doíam com o peso de meu corpo, e os tornozelos não mais me sustentavam — Senhor Jones, sua esposa faleceu.


   Eu desabei ali mesmo. Meu grito ecoou por todos os cômodos e corredores do hospital e eu simplesmente não conseguia controlar meu desespero. Caí no chão de joelhos em estado de choque e precisou de dois seguranças ajudarem o médico a me colocar em uma cadeira de rodas. Eles me deram água e o médico me deu um calmante. Aos poucos eu recobrei o controle de meu corpo e olhei de volta para o médico.


   — Eu quero vê-la.


   O médico me levou até o local onde o corpo de Vanessa estava. Uma sala fria do necrotério. Ela estava com um pano branco cobrindo seu rosto.


   — Ela não sentia mais nenhuma dor quando se foi, senhor Jones. Ela deu a luz ao menino com muita coragem para enfrentar a dor que sentia na hora do parto, mas depois a dor cessou instantaneamente. Ela ainda teve tempo de segurar o menino no colo antes de ir embora.


   Eu senti uma lágrima nos meus olhos, ao ouvir o que ele disse. Quando ele tirou o pano, eu pude ver. Ela tinha o sorriso dela em seu rosto, o sorriso que provavelmente fora a última coisa que fizera quando olhara para o nosso filho, o sorriso que me dera no bar e que me fez ficar apaixonado por ela no instante em que a vi. Ela morreu feliz. Sorrindo. E pelo menos conheceu o filho que tanto quis, que tanto esperou e que tanto amou. Agora era minha missão continuar adiante com a vida dele.


   O médico me levou em seguida para o berçário. Lá estava ele. Lindo, com um tufo de cabelos ralos sobre a cabeça redonda e ainda disforme pela moleira.


   — Você já sabe o nome, senhor Jones?


   — Tyler. — Foi o nome que ela escolhera alguns meses antes, quando descobriram que seria um menino. — O nome dele será Tyler.


   Voltei com Tyler para casa naquela noite. Somente quando cheguei na porta de casa é que lembrei que teria que explicar para Isadora o porque de Vanessa não voltar para casa conosco. A menina reagiu muito mal, como era esperado. Meu pai nem sequer acordou para ver o neto recém-nascido. Eu me sentei com Tyler no sofá de casa, olhando para aquele rostinho rosado e ainda inchado e refleti sobre tudo o que me acontecera até ali.


   Como eu tomei as rédeas da minha vida cedo, e acabei por cuidar de Isadora. Tomei tanta responsabilidade pra mim, que não me lembrava de quando me senti criança pela última vez. Acho que nunca soube como era ser uma criança, como era ser feliz, inocente. Isadora tampouco sabia. Ela aparentava ser uma menina doce, mas no fundo vivia com seus medos. Isso a fez crescer sozinha, mesmo que eu tivesse estado do lado dela esse tempo todo. Nós dois aprendemos que a qualquer momento poderíamos não mais contar com ninguém, seja porque as pessoas que nós contávamos ou poderiam nos decepcionar ou nos deixar. Então tivemos que aprender a nos virar sozinhos.


   Mas eu não queria que isso acontecesse com Tyler. Eu queria dar uma boa oportunidade para meu filho. Queria que ele pudesse ser genuinamente feliz. Queria poder ensinar ele a andar de bicicleta, fingir empurrar e deixar ele perceber sozinho que ele estava andando sem ninguém segurando havia muito tempo, mas que caso ele caísse eu estaria lá por ele, sempre que precisasse de mim. Queria poder ver ele tomar sorvete no jantar sem ficar com medo de ouvir o pai gritar com ele. Queria não ter que escondê-lo debaixo da cama do quarto para que ele não escutasse as brigas dentro de casa. Então, decidido, olhei para Tyler, suas mãos miúdas segurando meu dedo, involuntariamente, e disse:


   — Prometo ser o melhor pai do mundo, Ty.


   O efeito do calmante que tomei no hospital fez efeito e dormi com Tyler no colo. Ele não chorou a noite toda, como se soubesse que precisava me deixar descansar. No início da manhã porém, ele precisou se alimentar e eu acordei. Planejei durante todo o dia. E naquela noite, com duas bolsas no banco de trás do carro, deixei Isadora com a senhora Muller, meu pai sozinho no sofá, dormindo e fui embora, recomeçar do zero em outro lugar bem longe dali.



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Autor(a): raphaelaguiar91

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