Fanfic: Hurts Like Satan | Tema: Vondy
11.
Look at the red changes in the sky.
Dulce abriu os olhos lentamente, depois de dormir nos braços de sua mãe. Diferente do local onde adormecera, o céu não era azul turquesa e não havia um mar infinito tocando a beira de seus dedos dos pés.
Ela estava embalada como um bebê por um edredom grosso e caramelo, dos pés até as orelhas. Os pulsos ardiam como nunca, palpitando sempre que ela pensava em se mover. Sua cabeça doía como se houvesse um aparelho de tortura comprimindo suas extremidades para esmagá-lo como um inseto.
Dulce franziu o cenho, sentindo um cheiro e um vento estranho no nariz. Olhando para o lado, viu botões; para o outro, uma janela com persianas brancas fechadas. Uma poltrona de veludo azul claro. Uma janela de observação grande o bastante como se aquele lugar onde se encontrava agora fosse uma jaula em um show de horrores.
— Mãe? — ela sussurrou com a voz rouca e grossa pela falta de uso.
Ela não sabia por quanto tempo tinha dormido. Talvez sua mãe tenha uma casa naquela praia paradisíaca pela qual caminharam pela maior parte do dia anterior; Maya acordara mais cedo que a filha, então a levou nos braços até uma cabana, ou uma casa, ou um aposento...
— Você acordou — falou uma voz estranhamente conhecida. Dulce virou suavemente a cabeça para encarar aquela pessoa e quase soltou um grito agudo quando viu os negros olhos de Ucker.
Que porra aconteceu?, uma voz gritou na cabeça de Dulce.
Ela estava em um hospital. Naquele mesmo hospital que estava internada dias antes, por causa daquela briga na Burlesque onde...
— Você é um monstro — disse Dulce, começando a sentir vontade de chorar. Ela engoliu toda a dor que sentia nos pulsos e se colocou sentada, empurrando os edredons para fora do corpo.
Encarou todos os diversos curativos onde, antes, continha um alto relevo com um traço ensanguentado no meio. Seus olhos estavam arregalados quando puxou os pulsos para a altura da vista.
Estavam costurados. As extremidades das veias estavam juntas novamente.
Dulce começou a chorar, empurrando a unha por dentro daquela costura. Puxou a pele, rasgando o curativo, vendo o sangue sair e pingar no lençol branco. Quando guiou o dedo indicador da mão esquerda para o pulso direito, soluçando de tanto chorar de ódio, Ucker a segurou, sentando-se ao seu lado.
Ela tentou se esquivar, mas ele era muito mais forte que ela.
— Por que você fez isso? — ela gemeu entre os soluços, com os olhos encolhidos, a visão completamente marejada. O rosto estava vermelho e ela se sentia quente, com calor e muita raiva.
Ucker afrouxou suavemente as mãos dos pulsos ensanguentados de Dulce, tocando o canto do lábio.
Ela deu um pulo para trás, quase caindo da cama. O suporte para soro balançou e vacilou cair.
— Não toca em mim — ela o amaldiçoou, molhando os lábios. Tentou se colocar de pé para se afastar dele, mas sentia-se debilmente fraca. — Enfermeira! — ela tentou gritar, mas sua voz era rouca como se tivesse passado uma noite inteira em uma competição de quem gritava mais alto.
— Suas memórias são incríveis — disse Ucker, estranhamente sereno, mal se incomodando com o pavor de Dulce. — Obrigado por compartilhar comigo.
— Eu não compartilhei nada com você, porra! No inferno não te ensinaram a ler? — ela se lembrou do ataque de Richard e seu corpo inteiro estremeceu. Instintivamente, encolheu as pernas, balançando a cabeça para afastar aqueles pensamentos. — Eu pedi que não me salvassem!
— Eu não podia te deixar morrer — ele praticamente franziu as sobrancelhas. Era premeditada sua falsidade. Dulce sentiu medo dele. Sentiu pavor. Seu coração bateu mais forte e o aparelho acusou aquilo. Ucker desviou seus olhos cristalinos dos dela para o aparelho, então abriu um sorriso debochado pelo canto dos lábios.
— O que você quer de mim? O que você está fazendo aqui? — ela chorou um pouco mais, apertando os pulsos doloridos. Assim que se visse sozinha novamente, arrumaria um jeito de se matar. Injetaria insulina na veia, cortaria a artéria do pescoço com um bisturi, se eletrocutaria. Oportunidades não faltariam.
— Só queria saber se você ia sobreviver — respondeu com um quê de sinceridade na voz. — Agora que sei que está bem, vou embora. Tenho assuntos mal resolvidos por aí, com umas pessoas.
Ela não queria que aquela conversa se prolongasse, por isso virou o rosto e esperou que ele fosse embora. Assim que escutou seus passos se perderem no silêncio daquela madrugada, Dulce puxou a agulha de soro de sua veia e empurrou os edredons para o chão. Levantou-se ainda meio cambaleante e, pelo canto do quarto, com os dedos arrastando na parede, caminhou para o corredor, indo para o lado contrário que Ucker seguira.
Olhava para trás de segundo em segundo, para ter certeza que não a seguiam, caminhando na ponta dos pés.
O corredor era largo e de porcelanato branco, impecavelmente limpo; as paredes eram azuis e o ar condicionado deixava tudo muito frio. No final do corredor, havia uma parede feita de vidro — na falta de cortinas, o brilho da noite adentrava o hospital e iluminava parte do chão, deixando tudo com um aspecto assustador.
Ela seguiu até o final, olhando para aquele labirinto: de um lado, mais quartos; do outro, uma escadaria e um elevador.
Ela optou pela escada. Subiu um degrau de cada vez, olhando pela janela o chão se afastar gradativamente. Girou quatro ou cinco andares, até que a escadaria acabasse no último andar. Ali, com o chão de cimento queimado, havia uma porta vermelha de incêndio e, do outro lado, um corredor onde passos podiam facilmente ser ouvidos.
Dulce empurrou a barra branca da porta vermelha e sentiu o vento gelado da noite empurrar seus cabelos para trás. O metal bateu atrás de seu corpo, trancando-se por dentro.
O céu estava em um tom arroxeado, sem nuvens, e a lua cheia brilhava intensamente. Adiante da floresta, uma alta montanha contornava sua silhueta negra no céu como se fosse uma pintura. Dulce caminhou pelo chão frio com as mãos soltas ao lado do corpo, olhando diretamente para o céu. O furo que havia feito em seu pulso com a unha logo pararia de sangrar, sendo apenas uma mancha vermelha que escorria por sua camisola branca.
Ela se aproximou da beirada do teto, onde havia uma estúpida proteção — parecia mais um degrau que convidava Dulce a subir, analisando a altura antes de se jogar em um salto perfeito.
Ela não hesitou. Subiu um pé, depois o outro. O vento chicoteou mais forte, fazendo-a fechar os olhos e respirar fundo, jogando a cabeça para trás.
Não iria dar a chance de ser salva novamente. Esticou um pé para frente e deu um passo em falso, começando a cair.
Caiu como uma pedra, em uma rapidez incrível. Apertou os olhos quando pressentiu o chão, mas ele parecia chegar.
Ao invés disso, mãos quentes seguraram na parte traseira de seus joelhos e a lateral de seu pescoço, espalmada na mandíbula e na bochecha. O vento continuava chocando-se com força em seu corpo, mas agora a chicoteava de frente, não de baixo. Ela abriu os olhos e enxergou as árvores se transformarem em borrões pretos no ar. Olhou para cima e viu o rosto contraído de Ucker. Dulce gritou e começou a se debater, movendo as pernas e os braços, socando o peitoral.
Ucker rosnou, largando-a no chão, continuando a correr floresta adentro.
Dulce respirava descompassadamente, abaixando os olhos para as pernas e braços sujos de terra úmida. As árvores cobriam o céu, tornando aquele local escuro e assustador.
Ela ouviu passos rápidos que logo se tornaram uma corrida. O uivo de um lobo e o canto de uma coruja.
Dulce chorou, mordendo os lábios, se colocando de pé, mancando para o vão entre duas árvores, onde havia uma pequena fresta de luz. Ali havia uma pedra pontiaguda suja de sangue seco — o cheiro de carne podre fazia seu nariz pinicar e sua garganta fechar. Ela encolheu os olhos, franzindo as sobrancelhas em medo. Virou-se quando ouviu os passos próximos, então notou olhos amarelados brilhando no escuro.
Sua mente, já completamente apavorada, a fez lembrar-se de um filme de exorcismo onde o demônio tinha olhos que brilhavam no escuro.
Ela gemeu, dando alguns passos para trás. Seu calcanhar arranhou na pedra acinzentada, que, sob a luz da lua, parecia azul.
O animal/demônio/assassino se aproximou, mostrando-se na luz.
Era um lobo; um lobo gigantesco, talvez o maior que ela já tivesse visto em toda a sua vida.
Não era ridiculamente enorme, como os de ficção, mas tinha quase um metro e meio de altura, o pelo negro como a escuridão e garras tão afiadas e amarelas quanto unhas de mortos.
O lobo rosnou, mostrando seus dentes afiados e brancos. Atrás dele, outros nove apareceram, tão gigantescos e irritados quanto o que se mostrava na frente. E todos estavam em posição de ataque.
Dulce pensou em sua mãe. Previu a dor que sentiria nos próximos segundos, morrendo da mesma forma que ela — mastigada, servindo de alimento para um animal momentaneamente mais forte —, mas tentou se tranquilizar quando se lembrou de que era aquilo que queria: morrer.
Com os dedos gélidos trêmulos, pegou uma pedra no chão e jogou na direção dos caninos.
Aquele fora o tiro para que eles atacassem.
Eles correram todos de uma vez para cima de Dulce, que se encolheu e fechou os olhos. A primeira mordida fora na perna, depois sentiu as patas e unhas de um deles em seu braço, pulando para alcançar seu pescoço.
Eles rosnavam, então de repente começaram a chorar como filhotes.
Um urro mais alto cortou as árvores, fazendo Dulce estremecer e tombar no chão. Sua perna palpitava e seus olhos ainda estavam fechados. De repente, uma lufada de ar empurrou seus cabelos para frente. Ouviu-se algo ser brutalmente jogado contra uma árvore, fazendo-a estremecer e o animal chorar.
Outro urro, um rosnado, uma abocanhada — o som fora tão alto que ela pensou ter sido bem ao lado de seu tímpano.
Dulce gemeu de medo, encolhendo-se ainda mais. Sentia-se completamente despida, com as roupas rasgadas e o corpo encolhido, mostrando mais do que queria, mas não se importava com a quase nudez. Realmente não se importava.
Segundos depois, ouviu os mesmos passos se afastando. Quando nada além de duas respirações descompassadas tomavam aquele ar, ela permitiu que seus olhos abrissem lentamente, encarando seu próprio sangue na pedra.
— VOCÊ É IMBECIL? — Ucker gritou parado à sua frente. Ela se encolheu novamente. — Qual é a desgraça do seu problema, Dulce?!
— VOCÊ É! — ela também gritou, com toda a força que ainda lhe restava, e postou-se de pé, ainda trêmula. Quando o encarou, seu corpo ficou gelado e toda sua coragem escorregou por suas entranhas.
Ele estava com seus chifres expostos, os caninos afiados, os olhos vermelhos, as veias exaltadas, as asas abertas e o corpo machucado, sangrando preto. Ele tinha o rosto contorcido em pura raiva e ódio e o cenho tão franzido que parecia machucar.
O fôlego de Dulce escapou por sua boca e ela tentou dar um passo para trás.
— O que... — ela tentou, tremendo, gaguejando. — O que você...
— O que parece, Dulce? — ele falou alto. Sua voz estava mais grossa e quando ele gritava, ecoava na floresta. — Você não é burra. Não é burra — seus chifres encolheram lentamente, escondendo-se na testa.
Dulce estremeceu em agonia.
Os olhos dele lentamente tornaram com o tom natural e os dentes encolheram, ficando pouco maiores que o natural de um humano. As asas bateram e ele não se deu ao trabalho de guardá-las.
Dulce se perdeu em suas brilhantes e, aparentemente, aveludadas penas negras por mais de um segundo. Era uma envergadura de quase quatro metros e meio. Subiam dois metros para cima, além de seus mais de 1,83.
Quando as asas se moveram, ela tornou a olhar para o rosto daquele que a salvara mais de duas vezes em apenas cinco horas.
— O que você quer de mim? — ela disse de uma vez, com a voz baixa como um miado. Ucker a rodeou, fazendo-a morder os lábios e contrair as coxas completamente nuas.
A camisola do hospital tinha uma pequena fenda na lateral de seu corpo, que estava rasgada até metade do seio direito, deixando-o quase à mostra. A barra estava acidentalmente dobrada e amassada, deixando-a com as coxas completamente expostas. Os cabelos bagunçados, o pulso ensanguentado, o olhar amedrontado e os lábios trêmulos.
Dulce estava patética e Ucker riu disso. Riu de seu medo.
— É ofensivo que sinta medo de mim — disse ele, em seu tom normal. Ainda era estrondosamente alto para o silêncio da floresta. — Eu salvei a sua vida.
— Por quê? — ela miou.
— Porque eu preciso do seu sangue — ele finalmente disse, parando de andar quando ficou atrás de Dulce. Ela sentiu um arrepio na espinha. — Preciso de você viva.
— Quem é você?
— Ucker Giansanti.
— Quem realmente é você? — ela corrigiu, adquirindo um tom raivoso. Ucker abriu um sorriso sarcástico.
— Sou da prole de Lúcifer e Lilith, o único herdeiro do inferno — ela fechou os olhos, sentindo os dedos tremerem. — Sou o anticristo — ele praticamente esbanjou o prazer que sentia a proferir aquilo.
— Por que precisa do meu sangue?
— Porque ele é amaldiçoado — ela franziu o cenho, virando o rosto para ele. Teve medo de olhar em seus olhos. — Ele é especial para minha espécie.
— Sua... espécie?
— Você sabe que eu não sou o único — ele rolou os olhos. O canto inferior direito de sua asa se moveu e os olhos de Dulce se prenderam ali. — Você não é burra — repetiu ele.
— Richard... — deveria ser uma afirmação, mas soou como uma pergunta.
— E muitos outros — ele parecia entediado. — Demônios correm soltos pela Terra e vocês, humanos, mal nos percebem — ela tremeu novamente com aquela palavra. — Por que você está com tanto medo? — ele perguntou sério, parando de frente para ela com os braços cruzados. Dulce percebeu que o ferimento em seu peitoral havia sumido. — Você acredita em Deus, não acredita?
Ela não respondeu; mal respirou. Não sabia mais no que acreditava.
— Então por que não acredita em demônios? — ele praticamente contorceu o rosto em uma confusão sarcástica. Dulce mordeu os lábios e respirou fundo, tentando se controlar. — Se existe um Paraíso, por que não existe um inferno? E um Diabo? Se existe um...
— Tá — ela disse alto, abrindo subitamente os olhos. — Eu já entendi — ele sorriu novamente. — Richard queria me matar — lembrou-se ela, controlando o tremor —, por que você não quer?
— Porque eu sou mais esperto que ele — disse rápido, de forma óbvia. — Minha mãe me ensinou que precisamos guardar seu sangue como se fosse uma preciosidade, tomando de pouco em pouco.
Ela não sabia como reagir. Ucker percebeu que ela prendia o ar, então soltou uma gargalhada que mostrou seus dentes um pouco afiados.
— Dulce... — ele cantarolou, se aproximando dela. — Você fica tão adorável com medo... — ele esticou os dedos sujos de sangue para tocar o rosto dela; Dulce acompanhou apenas com os olhos enquanto ele se aproximava, sentindo o calor do toque entre suas peles.
— O que tem de errado com o meu sangue? — perguntou, desviando o rosto para que ele parasse de tocá-la. Ucker continuou com a mão parada, olhando fixamente para os olhos perdidos dela.
— Nada de errado — ele disse, abaixando a mão. As asas balançaram. — Ele é especial. É melhor, mais forte. Se existirem dez como você no mundo, é muito — ele se virou.
Dulce passou os olhos pelos músculos de suas costas, acompanhando o trajeto que suas asas faziam. Iam desde as omoplatas até os rins em um V de cabeça para baixo.
Ele se virou. Ela desviou o olhar.
— Por que você precisa dele?
— Porque me deixa mais forte — ele sorriu. Seus olhos adquiriram um brilho insano. — Por ser o herdeiro, já tenho privilégio sob os outros demônios, mas, com o seu sangue, eu me torno quase invencível.
— Você quer dominar o mundo? — havia um quê de riso em sua voz. Ucker apreciou; ela estava voltando a ser a Dulce que ele conhecia e gostava.
Ele negou com a cabeça.
— Não importa o motivo — ele molhou os lábios, vendo os músculos das coxas de Dulce ficarem menos rígidos conforme ela ficava menos tensa. — Você está se lembrando de quem eu sou.
— Um demônio maníaco que quer meu sangue — ela assentiu. Quando falou em voz alta, sentiu uma pontada de medo.
— Sou aquele cara que te deixa louca — ele sorriu. O medo de Dulce deu espaço para uma pontada de calor.
— Você disse que os que têm o meu sangue são poucos — desconversou ela. — Por quê?
— Maldições não são como pragas — ele se virou, encarando a escuridão. — Os amaldiçoados são especiais e só se é especial caso seja raro.
O lobo de pelos negros tornou a aparecer. Dulce deu um passo para trás, alarmada.
Ucker deu um passo para frente e Dulce trouxe as mãos para o rosto, cobrindo os olhos. Não queria ver um animal ser esquartejado, por mais que aquele mesmo animal tivesse a atacado minutos antes.
Ela não conseguiu. Abriu um vão entre o dedo indicador e o médio, espiando.
Ucker estava ajoelhado no chão, acariciando o lobo.
Dulce franziu o cenho.
— Criaturas noturnas nunca deveriam brigar — disse ele, mais para o lobo que para Dulce. — Mas existem limites de sanidade — ele se colocou de pé novamente. O lobo se sentou como se fosse um cachorro. Ucker a olhou. — Eu sou filho de Lúcifer — disse sem emoção —, o primeiro anjo expulso do céu. Primeiramente, ele ficou na Terra. Ficou vagando, procriando com humanas, instigando-os a pecarem mais — havia um quê de nojo em sua voz —, criando metade-humanos metade-demônios que contaminaram esses solos. Eles, sim, cresceram como se fossem uma praga — Ucker a encarou no fundo dos olhos, lendo sua alma. — Destruíam tudo em seu caminho, se alimentavam dos humanos e pouco a pouco conquistaram territórios. Foram enviados anjos guardiões para proteger a criação de Deus — agora seu tom era realmente entediado e ele se recostou ao tronco de uma árvore — e a Terra se tornou um campo de batalha entre anjos e demônios. Poucos meses se passaram e praticamente tudo estava destruído; a Terra era uma bola de rocha que ocupava espaço no universo, sendo habitado por criaturas que não raciocinavam. Isso tudo era um deserto — ela olhou à sua volta. Era difícil imaginar que aquele planeta todo era uma bola de terra amarela, um deserto gigantesco. — Os humanos eram poucos, e, os que sobreviveram, morriam de doenças, de fome, de sede, de delírio. Mesmo mortos por três, quatro semanas, ainda eram um banquete para qualquer demônio esfomeado — o estômago dela embrulhou e Ucker abriu um sorriso sombrio. — Toda a América do Norte estava deserta. A Europa e a África estavam à beira da extinção. As populações que sobravam se protegiam com a ajuda dos anjos, mas não era grande coisa — deu de ombros com desdém. — Então um anjo chamado Tadeu teve a brilhante ideia — aquilo transbordava ironia — de pedir ajuda para outro tipo de criatura. Uma criatura que não é nem noturna, nem divina — ele se calou, como um professor, esperando que Dulce respondesse. Quando seus olhos se encontraram, por menos de um segundo, ela os notou extremamente escuros. Estavam tão negros que ela não conseguia diferenciar o que era íris e o que era pupila.
— O quê? — ele riu.
— Bruxas — ela quase gemeu um “ahhh” e subiu as sobrancelhas. — Tadeu pediu ajuda às bruxas. Disse que os demônios estavam devastando a natureza, queimando florestas, matando animais, consumindo sangue sem necessidade. O mundo estava em desequilíbrio e era obrigação delas devolver sua ordem.
— O que isso tem a ver com o meu sangue? — o lobo rosnou e Ucker gargalhou novamente. — Ele age como um cachorro — pensou alto, fazendo uma careta.
— Eugine McGully — ele disse, atraindo a atenção dela de volta para seu rosto.
— Quê?
— Esse era o nome da virgem que precisou ser sacrificada para que a maldição das bruxas se concretizasse — o sangue de Dulce ficou frio e os pelos de sua nuca se eriçaram. — Elas a amarraram em uma mesa de granito preto, nua, na primeira sexta feira de lua cheia do ano. As pernas e os braços estavam amarrados nas extremidades; fizeram um feitiço para que ela não pudesse reagir. A garota ficou lá, parada, olhando para o céu, chorando, enquanto aquelas velhas malucas sussurravam em latim e queimavam folhas de eucalipto por cima do peito dela.
Dulce tentou se imaginar no lugar de Eugine. Seu corpo inteiro ficou arrepiado e uma brisa fria cortou sua pele, fazendo-a estremecer. Ucker não se importou; estava deliciado com aquelas lembranças.
— Elas pegaram um pedaço de madeira, afiaram e cortaram o peito de um demônio capturado e devidamente alimentado com sangue de uma criatura noturna, como um lobo — ele acariciou a cabeça do canino. — Ele gritou, girou a cabeça, as amaldiçoou. Como se fosse ajudar em alguma coisa quando o assunto é bruxas — ele rolou os olhos, com pena da ignorância daquela criatura desesperada. — Depois, pegaram a mesma madeira e cortaram todas as veias principais do corpo da virgem — ele a olhou. — Os pulsos, o quadril, a virilha, o pescoço. Cortaram o peito dela até o final do umbigo, quebrando as costelas, fazendo uma tigela — ele sorriu com malícia, depois riu. — Despejaram parte do sangue do demônio dentro da virgem e deixaram-na aberta, com sangue escorrendo, quando a lua estava em seu pico máximo. Disseram que os olhos da virgem viraram completamente enquanto um som horrível saía da boca dela — ele sorriu mais — e, mesmo com o feitiço, ela se debateu; o sangue escorreu um pouco para o chão e começou, de baixo para cima, a ficar uma tonalidade muito mais clara que o sangue de uma pessoa normal. O cheiro era doce e foi exalado para a atmosfera como a doença do vento... —aspirando o ar com os olhos fechados, Ucker jogou a cabeça para trás. O lobo o olhou, depois olhou para Dulce; ficou de pé. — Todos os demônios sentiram aquele cheiro diferente e quiseram saber o que era. Quando chegaram ao local do sacrifício, só havia o pequeno litro que caíra no chão. Eles se jogaram no chão — ele começou a rir — como um bando de animais e ficaram lambendo aquela rocha como se não houvesse mais alimento no universo, só aquele resquício de sangue modificado por bruxas — o som se tornou mais alto, mais psicótico. Dulce deu um passo para trás. Em um segundo, Ucker estava por trás dela, segurando-a nos cotovelos, com a boca bem próxima de seu ouvido. — Eles nunca provaram algo igual — ele a beijou suavemente, roçando os dentes no lóbulo de sua orelha. Dulce se odiou por ter gostado daquilo. A dor em sua perna, agora, era quase imperceptível — Perderam noites e dias caçando, sem descansar, até que foram ficando fracos e completamente vulneráveis para os anjos — ele sussurrava; os joelhos dela tremeram. — Até que, na lua cheia seguinte, Eugine foi posta para o sacrifício novamente. As bruxas deixaram que a garota mostrasse o que estava sentindo, porque o medo enobrece qualquer ato de um demônio, o alimenta de uma energia quase tão saborosa quanto o gosto de um sangue podre — ele riu contra o ouvido dela, afastando-se subitamente.
Dulce cambaleou um pouco zonza, sentindo o aveludado toque da asa de Ucker em sua coxa nua. A mordida do lobo sangrou mais, palpitando e ardendo.
Ucker mal se importou com aquele ferimento.
— Levaram-na para um ponto alto, no meio do deserto consumido em fogo e morte que os demônios criaram — ele tornou a dizer, agora, na frente dela. Suas asas envolviam seus corpos como se fosse uma cúpula, tocando a parte traseira do corpo de Dulce. — Deixaram-na usando um vestido branco, símbolo de virgindade, e soltaram um sinal nos céus para que todos os demônios ainda existentes se reunissem como um exército, exalando o cheiro dela em uma fumaça vermelha. No total eram mais de dois milhões — ele sussurrou deleitoso, afastando-se novamente, tornando a ficar recostado na árvore, acariciando as costas do lobo de pelos negros, sentado ereto. — Todos eles pareciam zumbis enlouquecidos. Estavam imundos, fediam, não saíam de sua forma original nem por um segundo e estavam completamente esfomeados por aquele sangue novo, que fazia os outros parecerem esgoto. Boatos bons correm depressa — ele piscou, abrindo um sorriso lateral enquanto levantava suave e sugestivamente a sobrancelha direita. — Tadeu pegou uma adaga de prata e a refletiu no sol, rasgou o pescoço da virgem e deixou que a cabeça dela rolasse pelo penhasco. Os demônios atacaram como se fosse a única comida que existia — ele molhou os lábios, lambendo-os. — Quando um deles enfim reconheceu que aquela era a humana dotada de tal portentoso sangue, voou para cima de Tadeu e arrancou a menina de seus braços. Subiu para os céus e todos os outros o seguiram, como um bando de gaivotas que lutam por um único alimento. Não sobrou nem os ossos dela. Um demônio se machucou; foi mordido por acidente. O que o mordeu, percebeu que o gosto era semelhante, o gosto da menina estava dentro do sistema dele; o sangue dela circulava por dentro dele por mais ou menos duas horas. Todos que se alimentaram dela foram devorados, e assim, sobrou menos de mil. Aqueles ficaram loucos, procurando mais sangues amaldiçoados, mas as bruxas não haviam preparado tantos assim.
— Mas isso faria com que eles matassem todos os humanos restantes em busca dos que tinham sangue amaldiçoado — disse Dulce, com os braços cruzados de frio. Ucker assentiu.
— Mas meu pai abriu as portas do inferno — lembrou-se. — Minha mãe estava ao seu lado e eu estava começando a ser planejado a existir...
— Espera — ela o cortou, esticando o indicador. — Quantos anos você tem?
Ucker sorriu.
— Isso é nojento — ela se arrepiou e fez uma careta. — Muito nojento.
Ele gargalhou alto.
— Com os portões do inferno abertos, todos os demônios foram sugados. Os que mataram humanos foram severamente castigados por meu pai. Ele os matou como moscas. Arrancou primeiro as asas, pena por pena, depois as unhas, os dedos, os pés, as panturrilhas, as coxas, rasgou o corpo ao meio, os antebraços, os bíceps... — ele ia enumerando nos dedos. — E deixava a cabeça lá por alguns dias, junto ao que restava do corpo.
— Isso é cruel — disse sem pensar.
— Depois de quase quatro dias, meu pai próprio ia à torre onde ele os mantinha prisioneiros, e os arrancava as cabeças.
— Mas por que ele quer que a humanidade exista? — ela franziu o cenho.
— Ele quer dominar os três mundos.
— Os três mundos? — Dulce franziu o cenho.
— Já disse demais — ele molhou os lábios e desencostou da árvore, caminhando até ela. — Melhor te levar de volta para o hospital para eles cuidarem dessa mordida — ele olhou para a panturrilha trêmula de Dulce, e só então ela pareceu se recordar que o frio fazia a dor aumentar, palpitando, queimando e ardendo muito mais que normalmente seria.
Dulce assentiu, mas só porque seus dentes começaram a bater de tanto frio. Ela deixou que ele se aproximasse o bastante para tocar suas mãos em sua cintura, pegando-a no colo como se fosse uma boneca de pano. Então, de uma só vez, suas asas começaram a se movimentar e ele avançou pelo céu negro em uma velocidade incrível.
Dulce fechou seus olhos, com medo e muito frio. O corpo de Ucker era extremamente quente e ela se sentia acolhida em seus braços, mas se castigava por saber quem ele realmente era e o que ele queria dela.
Não se aproximou com intenções naturais; ele, sempre, só desejou seu sangue. E ele era um demônio. Que tipo de pessoa se sente segura nos braços de umdemônio?
Tão rápido quanto começou, terminou. Ucker pousou no telhado lateral do hospital, em uma penumbra tão escura que mal era possível enxergar suas asas — o que, por um lado, era um alívio.
Dulce, se não soubesse do que se tratava, não ia gostar de ver um cara forte e seminu de quase um metro e noventa com asas sobrenaturais gigantescas coladas nas costas.
— E, ah — ele disse, antes de se virar de costas para ela, abrindo a janela do quarto onde ela deveria estar. Ninguém notara sua falta.
Hospital de merda, ela pensou.
— Não tente se matar novamente — ele a encarou pelo canto dos olhos. — Eu vou acabar sabendo.
— Romântico — disse ela, com ironia. — Tenho um anjo da guarda — Ucker riu, virando-se de costas enquanto batia as asas e sumia na escuridão.
Dulce olhou para baixo — era uma altura considerável. Olhou para os pulsos, depois para a lua. Pensou em Eugine, em seu sacrifício. Em sua mãe...
Caminhou até a beirada do telhado e viu a ponta dos pés balançando no ar.
Dulce sorriu em deboche, dando um passo para trás enquanto negava com a cabeça e se encolhia para passar pelos batentes da janela, mancando para baixo do edredom.
Ucker chegou em casa pouco antes do sol nascer. Ainda estava escuro e, graças à chuva, o dia seria frio e assombroso. Ele soltou um suspiro e olhou, pelo canto dos olhos, para o corredor.
Havia outra pessoa ali. Ele sentia seu cheiro. Era outro demônio.
Ele expulsou os dentes, as garras e os chifres. Dando apenas um pulo, batendo as asas, deixando-as direcionadas para frente como os pelos eriçados de um gato preste a atacar, ele fincou as unhas na parede, quase tocando o teto, quase ficando de cabeça para baixo. Caminhou, assim, silenciosamente pelas paredes até onde o cheiro era mais forte: em seu quarto, no segundo andar. Seguiu pelo corredor com os olhos e ouvidos atentos, com os dentes expostos e as penas afiadas como adagas — bastava um golpe certo no pescoço que aquele demônio morreria.
Ucker odiava intrometidos.
Quando chegou próximo o bastante do batente da porta, conseguiu escutar que o demônio revirava suas coisas.
Seu cheiro não era ruim; era doce como flores de cerejeiras. Ele ficou curioso e, antes mesmo de pensar, botou a cabeça por dentro do quarto, encarando uma fêmea virada de costas.
Seus cabelos eram compridos e ondulados, em um tom cobre vivo, forte e brilhante. A luz que adentrava aquele cômodo pelas janelas foscas era suficiente para iluminar o vestido de seda rosada que aquela mulher usava. Sua pele era branca como porcelana e, conforme ela revirava a gaveta de Ucker, ele conseguia notar que não era manchada por nenhuma única pinta.
Quando a mulher parou e ergueu a cabeça, virando-se suavemente de perfil, Ucker pôde ver alguns detalhes de seu rosto: cílios longos e expressos, negros como a noite, tal como seus olhos; um nariz pequeno e arrebitado; lábios finos e bem delineados, contornados em formato de coração.
A mulher ficou de pé quando Ucker permitiu que seu corpo ficasse postado na porta. Os dentes expelidos, os chifres palpitando, os olhos ardendo pela claridade, o cenho extremamente franzido e a boca entreaberta, por onde o ar entrava e saía.
A mulher se virou, mostrando-se completamente curvilínea e atraente. O quadril tinha uma leve curva que se acentuava com aquele vestido reto e fora ali que os olhos de Ucker se vidraram no momento que ela se pôs de frente. Subiu, lentamente, pela barriga reta e os seios voluptuosos, até chegar ao rosto.
Os olhos eram negros e adquiriram um brilho carmim quando ela abriu um delicado sorriso quase angelical.
Ucker perdeu o fôlego e se colocou de joelhos, reverenciando-a.
A mulher caminhou, lentamente, descalça, com as mãos unidas na altura do estômago, a barra do vestido comprido bailando em seus tornozelos finos. Ela, lentamente, esticou a mão na direção dos cabelos bagunçados e molhados de Ucker e, conforme sua mão se aproximava, ela se ajoelhava; tocou suavemente o rosto de Ucker, dando permissão que ele a olhasse nos olhos.
E ele o fez.
Estava petrificado.
A mulher sorriu.
— Tu estás lindo, meu filho.
Autor(a): Anna Uckermann
Este autor(a) escreve mais 26 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
Cap Especial pra Plopes 12.I was born of the womb of a poisonous man, beaten and broken and chased from the land. Lilith estava sentada com as pernas cruzadas no sofá, lendo seu diário. Estava perdida em pensamentos, aparentemente concentrada apenas naquelas linhas de sua própria letra, mas urcker a pressentia por perto, tentando ler seus pensam ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo
Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 3
Para comentar, você deve estar logado no site.
-
Plopes Postado em 17/12/2015 - 19:18:03
G-zuis que fic maravilhosaaaaaaa continuaaa
-
Raíssa Victória Postado em 29/10/2015 - 17:19:34
Oi,tudo bem???Sei que demorei muuuuito pra vir,mas vou ler os caps e depois,quando eu fizer a critica eu te aviso,ok?! :*
-
Raíssa Victória Postado em 18/10/2015 - 14:20:39
m.fanfics.com.br/fanfic/50104/criticando-fanfics-critica (Quer que eu critique [Fale o que acho] a sua fanfic?Se quiser,vai lá nesse link.Só quero te ajudar! :)