Fanfic: Hurts Like Satan | Tema: Vondy
03.
So tired for defending her life, she could have died, fighting for the life of her child.
Quando passou pela lateral de sua casa para tornar a subir pelo mesmo local horas antes, Dulce percebeu que a gritaria que vinha da janela da cozinha era perturbadoramente mais alta. A luz estava acesa, a silhueta descontrolada de seus pais era preta quando vista de fora. Ela parou subitamente, franzindo o cenho, respirando com dificuldade pela longa caminhada que tivera naquele final de madrugada.
— VOCÊ FODEU COM A MINHA VIDA! — era a voz de sua mãe, a sombra menor, com cabelos ondulados compridos e mãos que voavam no ar, expressando sua raiva. — EU TE ODEIO TANTO QUE PODERIA TE MATAR, GEORGE, EU JURO QUE PODERIA!
— ENTÃO FAÇA! CUMPRA A SUA PALAVRA PELO MENOS UMA VEZ NESSA VIDA, MAYA, PELO MENOS UMA VEZ FAÇA O QUE DIZ!
Dulce sentiu um arrepio peculiar na nuca quando viu a mãe se virar de costas e passar as mãos nos cabelos. O pai tornou a gritar coisas que ela não se dava ao trabalho de tentar entender, e conforme o tempo passava era previsto que eles não terminariam aquela briga tão cedo.
Não tinha motivos para se grudar em um galho grosso de árvore e fazer força com as pernas e braços cansados. Se ela adentrasse pela porta da frente, era bem capaz de nenhum dos dois sequer virar seu rosto para encará-la.
Ela caminhou pela escuridão, parando afrente do tapete de boas-vindas e sorriu com ironia ao ler aquela frase clichê. Ninguém era feliz naquela casa. Dulce se agachou, arqueando a extremidade superior direita do tapete, pegando a chave reserva, virando-a na maçaneta, escutando a porta destrancar.
Os gritos ali dentro eram ainda mais altos.
— EU ODEIO VOCÊ, EU ODEIO VOCÊ! — sua mãe gritou, atiçando os olhos para encará-la descontrolada.
O que viu a fez perder parte do ar. George segurava os pulsos de Maya de forma que ela não podia se mover, com ambos na altura de seu rosto avermelhado; ele a apertava com tanta força que era possível ver a ponta branca de seus dedos grossos, e a escura cor do sangue que começava a acumular nas mãos curvadas de sua mãe. Ela tinha os olhos arregalados, a respiração descompassada, e encarava diretamente os olhos de seu marido, que, em um piscar de olhos, a jogou para o lado, fazendo-a cair de lado no chão.
— Agora você vai me bater? — ela soltou uma risada debochada, mas, no fundo, Dulce percebeu-a trêmula. — Seu covarde de merda! Que diabos eu fiz para te merecer, porra? Que pecado eu cometi para te ter na minha vida? Você nunca ligou para mim, George, e ainda acha que está no direito de me bater? — ela berrava de forma que as veias de seu pescoço se sobressaíssem em sua pele rosada. Maya tinha o queixo arqueado e as mãos espalmadas no chão. — Você acha que eu sou IMBECIL? Acha que eu nunca percebi que você me traía com aquelas suas PUTAS das suas alunas? DESDE O COMEÇO EU SABIA, GEORGE, DESDE O COMEÇO! E por isso — ela abriu um sorriso, fazendo as lágrimas de seus olhos brilharem com a amarelada luz da cozinha — eu nunca hesitei em te trair também, seu velho broxante — proferiu as palavras com nojo, com ódio em cada mínima sílaba. — E quer saber? — ela soltou outra risada debochada. — Você nunca me deu prazer. Eu nunca senti nada, além de nojo, com você. Você só me dá asco, George, nada além de asco. Tudo que eu senti de bom nessa vida foi com gente qualquer. Qualquer um é melhor na cama que você. Você-é-broxante.
Então tudo aconteceu rápido demais.
Primeiro George moveu a perna de forma que o bico preto de seu sapato tocasse o alto do quadril de Maya, fazendo-a escorregar sob a madeira, chocando-se com os balcões que suportavam a pia. Ela gritou de dor, então ele se ajoelhou, virou-a de frente para ele e a socou o alto do supercílio.
Dulce não piscou uma segunda vez antes de ver seu pai matar sua mãe. O ódio em seu olhar era tão assustador quanto os olhos da besta que assombrava seus sonhos.
Ela correu até onde eles estavam, vendo-o apertar os polegares na garganta de sua mãe. Dulce o empurrou com força, fazendo-o tombar para o lado; quando não sentiu mais as mãos de George em seu pescoço, Maya tossiu e tentou ficar de pé.
— Não se meta nisso, Dulce ! — ele gritou, virando-se para ela, tornando a se pôr ajoelhado no chão. — Por que você não volta para a porra do seu quarto e se tranca lá como sempre fez quando nos ouve gritar? Esse assunto não é para crianças! — ele a empurrou, tirando-a da frente de Maya, que ainda tossia e tentava recuperar o ar roubado.
— EU VOU CHAMAR A POLÍCIA, SEU PSICOPATA FILHO DA PUTA! EU NÃO TE QUERO MAIS NA MINHA CASA, EU NÃO TE QUERO MAIS NA MINHA VIDA, EU NÃO QUERO MAIS TER QUE OLHAR PRA PORRA DA SUA CARA! SAI DAQUI, GEORGE, SAI DAQUI! — Maya se colocou de pé enquanto gritava, apontando com o indicador para a porta da frente que ainda estava berta.
George riu — o som mais pavoroso daquela noite, para os ouvidos perturbados de Dulce . Ela ainda se encontrava no chão, perto dos joelhos da mãe, chocada e assustada demais para sequer tentar falar alguma coisa.
— ESSA CASA É TANTO MINHA QUANTO SUA!
Maya começou a rir alto e debochada, fazendo-o se calar e trancar os pulsos; o sangue subiu para seus olhos, fazendo as órbitas quererem saltar. O negro de sua íris ficava assombroso.
— VOCÊ GASTA TODO O SEU DINHEIRO BEBENDO, SEU PEDAÇO DE BOSTA! VOCÊ NÃO TEM DIREITO NENHUM SOB ESSE TETO! EU TE QUERO FORA DA MINHA VIDA!
Quando percebeu que George caminhava novamente para bater em Maya, Dulce esticou as pernas e chutou os joelhos do pai, vendo-o vacilar e cair no chão, em cima dela. Ele a encarou com tanto ódio que ela previu sua morte, apertando seus próprios olhos na esperança de não sentir o tato forte de seu soco contra sua pele.
E quando veio, fora bruto o bastante para fazê-la ficar sem ar. Fora apenas um soco no meio de seu pescoço, fazendo-a virar-se encolhida, tossindo e puxando o ar como um doente, com dificuldade.
Maya gritou, empurrando e chutando os ombros de George. Quando ele ficou de barriga para cima, ela se encaixou em seu tronco e pressionou os joelhos perto de seus braços, estapeando-o e unhando-o o rosto.
— COMO VOCÊ OUSA TOCAR NA MINHA FILHA, SEU DESGRAÇADO? COMO VOCÊ OUSA? — ela o arranhou as bochechas e o pescoço, pressionando as unhas sob sua pele com mais força a cada palavra que proferia.
George desvencilhou os braços dos joelhos de Maya e segurou-a com força os pulsos, novamente, e a empurrou para o lado, fazendo-a bater a cabeça na madeira do balcão.
Dulce não conseguia mais se mover, com extrema dificuldade em respirar. Ela queria poder colocar-se de pé e empurrar o pai, puxar alguma tesoura ou faca daquelas gavetas e perfurá-lo o olho, mas simplesmente não conseguia.
Aquele soco despertou um nó que há tempos ela não sentia, encurralando as paredes de sua garganta, impedindo-a de respirar. Quando puxava o oxigênio, ele entalava naquele nó e não passava nem se ela fizesse força, de forma que nem arfar surgisse efeito. Ela tossia com os olhos direcionados para o chão, puxando o ar com força.
— Você é uma PUTA, Maya, uma puta VELHA e DESPREZÍVEL. Eu não entendo o motivo de termos passado tanto tempo juntos, porque eu simplesmente TE ODEIO. Eu ODEIO você, eu SEMPRE odiei. Se EU sou broxante, você, então, é O QUÊ? Você é VELHA, Maya, você é horrível. Você NUNCA vai chegar aos pés das garotas que eu comia, das garotas que GRITAVAM meu nome e DELIRAVAM em prazer quando me sentiam dentro delas...
Maya gargalhou, se colocando de pé. Esticou a mão por cima do mármore branco e sentiu a ponta fria de uma faca. Dulce se sentiu enojada com as palavras de seu pai.
— Se elas gritavam, meu amor, não era de prazer, pode ter certeza. Você é nojento e se não sair da minha casa AGORA eu JURO que chamo a polícia — ela virou o rosto quando ouviu Dulce arfar com força, ajoelhando-se ao lado da filha, tocando-a com delicadeza, com medo de machucá-la ainda mais. — Meu anjinho... — ela sentiu as lágrimas escaparem de seu rosto, as que estavam presas desde o começo daquela interminável discussão. — Meu amor... O que esse desgraçado fez com você, meu anjo? Eu vou... — ela soluçou, tateando com pressa e força o bolso da calça jeans — Eu vou chamar uma ambulância. Você não está respirando, não está conseguindo. Eu devia ter feito isso antes — ela chorava e tremia, encontrando imensa dificuldade em conseguir acertar os botões. — SE ALGO ACONTECER COM A MINHA FILHA, SEU PUTO, EU JURO QUE...
Mas sua frase se perdeu no ar quando ela virou o pescoço em sua direção e o viu com a faca recém-afiada apontada em sua direção. Os olhos negros estavam perturbados e a pele avermelhada o deixava idêntico ao Diabo.
— Você nunca mais vai precisar olhar para a minha cara, mesmo, sua puta velha, porque eu vou te matar. Você e essa bastarda imunda — ele apontou para Dulce , que começava a perder a lucidez, puxando o ar com força, movendo as costelas magras com extrema rapidez.
— NÃO ENCOSTA MAIS NELA! — ela gritou, se colocando de pé, com o telefone grudado a orelha. — Eu vou chamar a polícia, George... — ela chorou mais, começando a se desesperar quando o encarava nos olhos. — Você vai passar o resto da vida na cadeia e nunca mais vai me ferir, nunca mais vai encostar na minha filha... Ela nunca fez nada a você — ela chorou, escutando a atendente do outro lado da linha. — Por favor, não o meu pequeno anjo... Não faça nada a ela, eu imploro... — ela abaixou a cabeça, soltando o celular no chão.
George, da mesma forma que se descontrolou, tornou a cair na realidade. Viu suas mãos apertadas contra o plástico protetor daquela faca apontada na direção de sua filha, desacordada no chão por algo que ele fez a ela. Por ter batido nela. Por tê-la tirado o ar com a força de um golpe só. E sua mulher, aquela com quem já viveu momentos tão bons, estava chorando, debulhando-se em lágrimas sem conseguir se controlar ou ao menos arrumar espaços de tempo para respirar, arfando, soluçando, fungando enquanto praticamente se contorcia em direção a ele. Mas ele não sentia mínima compaixão, apenas culpa. Culpa por ter perdido o controle, deixando que seus demônios se sobressaíssem.
Ele largou a faca, soando como um estrondo no chão e no silêncio do choro de Maya, na falta de sentidos de Dulce .
— Qual é sua emergência? Alô? Senhora, está me ouvindo?
George se virou, caminhando com pressa para fora de casa, fugindo para a escuridão.
E tão rápido como começou, terminou. Maya estava lá, ajoelhada sobre o corpo desmaiado de sua filha, sem poder acreditar que o culpado de tudo aquilo era o homem que ela escolheu para passar o resto de sua vida. Mas não. Ela nunca mais aceitaria ele em sua vida de novo, nunca mais.
Maya desligara o telefone há pouco e esperava impacientemente pela ambulância. Ela procurava em sua cabeça algo que poderia fazer para ajudar, então, com certa dificuldade, tentou carregar a filha até a porta que fora deixada aberta. A dor de seu rosto inchado e quente era palpitante, ela mal conseguira andar com sua coxa tão dolorida — conseguia sentir seus batimentos pulsando no local onde havia sido abusada.
Mas mesmo assim, isso não a impediu. Ela foi até a geladeira e pegou uma forma de gelo, colocando os pequenos cubos em uma sacola, embalando-a com um pano de prato, amarrando-a. Maya havia se arrastado e arrastado a filha até a varanda, para os médicos não perderem tempo levando a maca até dentro de casa. Maya deitou parte do corpo de Dulce no seu, deixando-a entre as pernas e segurando o saco de gelo em seu pescoço incrivelmente inchado.
Em minutos — que pareceram horas entre os soluços de uma mãe aos prantos —, luzes vermelhas e sirenes puderam ser ouvidas no final da rua, fazendo o coração aflito de Maya acelerar.
Logo, a ambulância estava parada à frente a casa dos Burwell, médicos apressados tiravam uma maca de dentro do local, corriam em direção à mãe com a filha no braço e pediam licença, checando a pulsação e fazendo os procedimentos necessários de primeiros socorros.
— A senhora também precisará de ajuda médica — um deles falou.
— Também precisará depor — um policial, segurando o seu cinto, comentou.
— Eu não posso fazer isso depois? — Maya segurava a mão da filha, e a outra mantida em seu próprio coração. Ela já não chorava mais.
— Claro, conversaremos com os vizinhos e estaremos no hospital assim que pudermos — ele respondeu e, sem esperar por uma resposta, já caminhava para o gramado do vizinho.
Maya acompanhou a maca onde o corpo débil de Dulce estava até dentro da ambulância. Assim que entrou, as portas se fecharam e estavam correndo ao caminho do hospital, observando Dulce ser medicada, medirem a pressão dela, colocarem um aparelho de respiração, tudo que os paramédicos julgaram necessário, mas sem tirar sua mão da de Dulce momento algum.
— Vá o mais rápido possível, ela está com falta de ar — uma enfermeira disse ao motorista.
— Por quê? Ela vai morrer? — Maya perguntava desesperada, apertando a mão da filha mais forte a cada segundo.
— Ela está desacordada, pode me dizer o que fez com que seu pescoço inchasse deste jeito? — a enfermeira um tanto serena conversava com Maya sem parar o seu serviço.
— O pai dela a socou — a voz de Maya vacilou, fazendo-a engolir o choro por relembrar o fim daquela noite tão horrível.
— Bom, a garganta dela inchou muito, impedindo que o ar passasse por ela. Faremos alguns exames, não temos como dizer exatamente o que é agora. Você só terá algo intacto no hospital — ela disse rapidamente. — Nós a encaminharemos para cuidar dos seus machucados também.
Maya agradeceu, sentindo a ambulância parar aos poucos. Finalmente haviam chegado. Finalmente salvariam sua filha.
Ela foi direcionada para uma sala pequena onde uma enfermeira simpática cuidou de todos os seus machucados; teve que tirar suas roupas completamente sujas e substituí-las por uma camisola do hospital. Maya não se importava consigo, ela só queria saber onde estava sua filha.
— Com licença — um médico grisalho bateu na porta onde ela descansava e tomava um café.
— Olá, você sabe algo sobre a minha filha? — Maya perguntou de prontidão.
— Sou o doutor Cornelius e estou cuidando de Dulce — ele sorriu um pouco simpático, mostrando-a suas rugas nas bochechas e olhos, adentrando o quarto e se aproximando da cama onde se encontrava aquela mãe aflita. — A sua filha sofreu uma grave lesão na garganta, como os paramédicos já lhe informaram, que a fez sufocar. Nós já cuidamos do inchaço e ela já respira com mais facilidade, mas queríamos deixá-la por observação durante a noite, aqui, no hospital — ele molhou os lábios, encarando-a diretamente nos olhos.
— Mas se ela está bem, qual o motivo de deixá-la aqui? — indagou Maya, tentando sorrir, tentando sentir alívio, mas ainda estava nervosa, angustiada. — Doutor... — ela sentiu aquele incômodo ardor em seu nariz.
— Dulce teve uma convulsão — disse suavemente. — Mas nós a controlamos — assegurou, dizendo rápido. Maya começou a chorar. — Fizemos uma R.M. de emergência e não encontramos nada de diferente no...
— R.M.? — ela o encarou com os olhos inchados e a boca trêmula.
— Ressonância Magnética — explicou, desculpando-se com o olhar. — Nós não encontramos nenhuma causa para aquela convulsão até eu olhar o exame de sangue dela — ele parou subitamente e Maya ficou ainda mais angustiada.
— O quê há, doutor? — ela quase gritou. — O que minha filha tem?
— Ela teve uma overdose — disse.
— Mas a minha filha... — ela perdeu as palavras no ar, sentindo dor ao respirar.
— Eu sei que é um choque quando os pais descobrem que seus filhos são dependentes de drogas. Temos psicólogos aqui, podemos chamar algum para conversar com a senhora, tentar acalmá-la.
— Minha filha não é dependente — disse Maya, olhando-o com certa raiva. — Ela nem sai de casa, ela...
— Senhora, temos o resultado do exame de sangue dela. Encontramos cocaína, cetamina, maconha, altos níveis de álcool...
— Ela vai ficar bem? — indagou novamente, colocando a mão na boca.
— Podemos colocá-la num programa de reabilitação e já fizemos lavagem estomacal, mas nada disso vai causar efeito caso ela não queira ser curad...
— Ela vai ficar bem, doutor? — sua voz se tornou áspera.
Ele suspirou, assentindo.
— Vai.
Maya, completamente impaciente, andava de um lado para o outro onde fora medicada e seus machucados foram devidamente cuidados. Ela não conseguia entender o porquê de tudo aquilo ter acontecido, se olhava no espelho e observava os machucados cobertos por gazes e se perguntava o porquê de ter se casado com aquele homem; não se lembrava de mais nada.
Mas ela não se arrependia. Gostava de ter tido a filha com ele, porque, se não fosse com ele, não teria sido sua Dulce .
Então, finalmente, conseguiu encontrar um lado bom desde que se casou: sua filha.
Que... Usava drogas?
Maya também não conseguia imaginar a sua pequena grande garota naquele mundo podre.
Era aquele pai, aquela casa — que havia se tornado um inferno —, aquela escola que sua filha tanto odiava, aquela cidade... Tudo que Dulce odiava e Maya sabia disso. Então ela se perguntava por que mantinha sua filha em um lugar onde ela não queria. E tudo se voltou novamente a George. Ele prendia as duas naquela cidade, naquela casa, na merda daquela cidade. Se não fosse por ele, Dulce não estaria se drogando. Se não fosse por ele, elas não estariam tendo a pior noite de suas vidas.
Maya se achou burra quando a solução veio à sua cabeça; como ela não havia pensado naquilo antes?
Essa era a solução mais óbvia de todas.
— A senhora já pode visitar a sua filha — uma enfermeira jovem comunicou com a porta entreaberta.
O coração de Maya disparou.
Finalmente.
Ela pegou sua bolsa esparramada no banco e correu para a porta, seguindo a jovem que a levaria até o quarto de Dulce . Paredes beges desbotadas e portas cor de caramelo passaram por ela, até que a enfermeira parou de frente a uma em especial. Ela não disse nada, só olhou para Maya, permitindo-a a entrar sozinha e ter privacidade com sua filha.
Maya girou a maçaneta com cuidado, sem querer fazer muito barulho. Abriu uma pequena fresta e deixou que somente sua cabeça entrasse no quarto completamente branco, observando o corpo de Dulce pousado sobre aquela cama larga.
Entre o suporte para soro e a parede de botões para arrumar a cama e chamar uma enfermeira, lá estava o rosto fino e cansado de sua filha, com as pálpebras entreabertas.
Ao avistar a mãe, a ponta de seus lábios secos subiu quase que imperceptivelmente, enquanto Maya alargava cada vez mais o seu próprio sorriso. Deixou que o seu corpo inteiro entrasse no quarto, e sorrateiramente, sem querer fazer nenhum barulho, sentou-se em uma pequena poltrona banca de veludo posta ao lado da cama, beijando a testa fria de Dulce enquanto segurava sua mão.
— Como você se sente? — Maya indagou, franzindo o cenho e com um sorriso medroso nos lábios, com medo da resposta.
— Um pouco cansada — a voz fraca e rouca de Dulce respondeu, tentando ao máximo forçar um sorriso torto. Virou sua cabeça levemente para poder olhar a mãe.
— Dulce ... — começou, murchando seu sorriso e uma face preocupada e séria tomou conta de seu rosto. — Eu preciso falar com você... Sei que não é a hora e que você está cansada, mas isso não pode ser adiado.
Maya suspirou. Dulce ficou em silêncio.
— George voltará, tenho certeza disso. Ele jamais entregaria a casa tão facilmente para nós — ela odiava ter que entrar naquele assunto, mas era preciso. Apertou cada vez mais a mão de sua filha. — Então eu decidi fazer o que deveria ter feito há muito tempo... — suspirou mais uma vez. — Vamos nos mudar, Dulce , vamos deixar o seu pai e esta cidade de vez.
— Ótimo — Dulce abriu um sorriso alegre entre seus lábios trincados. Ela realmente estava feliz, não só por ela, mas por sua mãe, que finalmente poderia viver. As duas juntas. — Eu não quero ficar perto dele... Quero ir para longe, muito longe.
— Estive procurando alguns lugares enquanto você estava dormindo... Manhattan é um dos lugares com maior chance de sermos felizes — sorriu novamente, mais feliz ainda por sua filha ter aceitado a ideia tão facilmente. — Vamos nos mudar o mais rápido possível. Enquanto você fica por aqui, eu arrumo algumas coisas nossas, o suficiente para alguns poucos meses. Lá teremos oportunidades realmente ótimas, meu pequeno anjo, e poderemos ter uma vida completamente diferente.
— Você vai fazer tudo isso sozinha? — Dulce se sentia inútil por não poder ajudá-la.
— Eu peço ajuda a alguns amigos — Maya sorriu, assentindo, dando um longo e quente beijo na testa da filha.
Dulce não parou de pensar no quanto sua vida melhoraria daquele momento em diante. Para toda melhora, existe um sacrifício. Se para se livrar daquela vida ela teve que passar por aquela noite horrível, valia à pena.
Ela passaria por aquela noite quantas vezes fossem preciso, se fosse para uma melhora.
Dulce teria que passar mais uma noite no hospital, apenas para que os médicos tivessem a certeza que estava tudo certo com seu organismo, com sua cabeça.
Poucos segundos depois que fechou seus olhos, escutou o estalido dos saltos da mesma enfermeira, que injetava em suas veias seu remédio para dormir.
Entorpecida, não durou um segundo para que um sonho a consumisse.
Ele abriu a grande janela do segundo andar daquele hospital, onde o cheiro doce de Dulce era mais forte. Adentrou aquele quarto frio como uma raposa e, passando os olhos pelo local, acompanhou a figura adormecida de uma mulher mais velha — em torno de seus quarenta e poucos anos —, repousada no sofá, com a aparência cansada e o casaco amassado. Quando virou suavemente o rosto para sua esquerda, a encontrou. Ela estava deitada, com os olhos fechados, a pele branca iluminada pelas frestas da persiana branca posta nas duas extremidades daquele quarto desconfortável, os cabelos escuros estirados para a direita de seu corpo como um leque negro que reluzia brilho.
Urcker caminhou lentamente, mal escutando seus passos, até ficar próximo o bastante dela. Dulce estava adormecida, completamente dopada, com o antebraço esticado para cima — onde, com extrema perfeição e facilidade, encontrou os caminhos azulados de suas veias; escutou sua pulsação correndo, indo e vindo naquele curvilíneo corpo que sonhava —, onde uma agulha de soro a mantinha daquela forma.
Ele esticou o indicador para tocar o aveludado de sua pele, contornando-a até o alto do antebraço, seguindo o caminho de uma veia.
Mesmo adormecida, ela se arrepiava com o toque dele.
Vê-la com os pelos eriçados fez um pequeno sorriso aparecer nos lábios vermelhos de Urcker.
Continuando seu trajeto, sem ao menos pensar, ele tocou seu rosto, sua bochecha, contornando seus lábios. Sentiu o leve inchaço que seus próprios dentes causaram naquela parte tão sensível daquela adorável garota, lembrando-se subitamente do motivo de estar ali.
Ele trouxe a outra mão para o alto da lombar, descendo-a até encontrar o bolso traseiro de sua calça jeans; ali, adentando dois dedos no tecido grosso, puxou um cordão de prata onde o pingente era um frasco redondo, achatado, com uma tampa minúscula de madeira.
Urcker achara aquele colar nos pertences de algum familiar, guardando-o quando descobriu o segredo dos amaldiçoados, sabendo que um dia iria usá-lo.
Alguns demônios não percebem o sangue de um amaldiçoado da primeira vez que o experimenta; como o gosto lhe agrada, sugam seu maravilhoso líquido de uma vez só, matando-o em frações de segundos. A força que se sente quando se prova o sangue de um mortal amaldiçoado é tamanha que o demônio se torna invencível por alguns meses, enquanto aquele veneno ainda corre por dentro de seu corpo.
O demônio que se alimentou do sangue amaldiçoado não consegue se alimentar de outro para adquirir a mesma força, por mais que sugue todas as pessoas vivas no planeta. É um sangue raro de se encontrar e ninguém sabe ao certo como achá-lo.
Você simplesmente... Acha.
A pessoa amaldiçoada não brilha, não é irresistivelmente atraente, não tem nenhum poder especial e também não atrai demônio nenhum.
É uma pessoa qualquer, de aparência qualquer, de qualquer lugar, mas com o sangue diferente para as criaturas noturnas.
Urcker encarou o pingente balançando de um lado para o outro quando o puxou para próximo do rosto. Encarou novamente a garota adormecida, se perdendo por um segundo ou mais no contorno de seu rosto, na serenidade de sua respiração, na pulsação tranquila que passeava por seu corpo, mantendo-o quente, com aquele cheiro tão singular que ela exalava.
Ele puxou seu pulso para próximo da boca, encarando as linhas horizontais e verticais das cicatrizes de seus cortes. Ele afiou os caninos, roçando-os suavemente por cima de sua pele, arranhando-a até que a partisse em um vão.
Uma gota escarlate brilhou sob a luz da lua.
Quando tornou a encarar Dulce , ela tinha o cenho levemente franzido e gemeu baixo, entorpecida demais para abrir os olhos.
Ele abriu a pequena tampa do pingente de diamante, encaixando-o sob a pele dela, encarando as gotas caírem tão lentamente.
Enquanto o frasco não se enchia, ele tornou a observá-la. Passou os olhos por aqueles lábios tão saborosos, tão doces, e se perguntou quando os provaria novamente. Desceu por seu pescoço, acompanhando sua pulsação, encarando seu busto descoberto pela camisola frouxa; encarou o volume de seus seios e conseguiu encará-los por baixo daquele tecido grosso que tampava suas pernas, lembrando-os excitados e avermelhados.
Ele sorriu, lembrando-se dela, de como ela se movia, de como ela falava, de como ela respirava, de como ela gemia. Lembrou-se do grau máximo de seu êxtase, de como ela se arrepiou com o que ele fez nela, de como ela adorava o que o fazia excitar.
O frasco estava cheio. Ele soltou delicadamente o pulso dela por cima da cama, deixando-o virado para cima, acompanhando o risco vermelho ficar gordo de sangue uma segunda vez. Tampou o pingente e colocou o cordão em volta do pescoço, sentindo-o próximo do coração, escondendo-o com o suéter preto.
Urcker tornou a pegar o pulso de Dulce , passando seus lábios pelo sangue que ainda aparecia lentamente, lambendo-o e sugando-o, sentindo-o preencher os milímetros de sua boca, arrepiando seus pelos e entorpecendo seus sentidos.
Quando o sangue parou de correr, ele sentiu vontade de afiar os dentes novamente e sugar mais. Quis poder encaixar o quadril em cima do dela e beijar seu pescoço, encontrando o calor de sua artéria, mordendo-a e sugando-a como se fosse um carrapato. Queria poder vê-la acordada, encarar o tom anil de seus olhos grandes e redondos, e poder repetir o que fizera antes enquanto chupa seu sangue. Queria ter os dois prazeres ali, agora, com ela.
Mas o estalido de saltos o fez despertar.
Ele não seria fraco a ponto de chupá-la por inteiro. Agora que tinha seu sangue e conhecia o mortal amaldiçoado, não seria fraco o bastante para deixá-lo escapar, livre para outros demônios.
Não.
Dulce , agora, pertencia a ele.
Urcker escondeu o pulso cortado de Dulce em baixo do edredom, virando-se enquanto limpava o canto da boca, encarando uma magra enfermeira adentrando o quarto com uma seringa e um medicamente líquido.
— O senhor não pode estar aqui — sussurrou, vendo que Maya ainda dormia. — Como conseguiu entrar? Não estamos no horário de visitas e por enquanto só estamos recebendo familiares.
— Eu sou da família — disse, também sussurrando. — Sou o namorado dela — ele encarou aquela ruiva parada à sua frente com a intensidade nos olhos. E, por sua experiência, ela não acreditara nas palavras dele.
— Qual é o seu nome, meu jovem? — ela adentrou o quarto e fechou a porta, arrumando o edredom nos pés de Dulce enquanto se direcionava para o soro dela, aplicando uma quantidade razoável de um líquido amarelado. Dulce suspirou.
Ele a amaldiçoou por chamá-lo de jovem, desgostando, sabendo que era milênios mais velho que ela. Mais velho que aquela cidade inteira junta.
— Urcker... — respondeu, coçando a nuca.
— Mesmo assim, Urcker, me desculpe, mas você não pode estar aqui.
— Desculpa — ele assentiu, dando um passo para a saída. — Eu já estava de saída, de qualquer forma. Obrigado — ele sorriu, saindo pela porta, correndo pelos corredores vazios daquele lugar que fedia a sangue e morte.
Autor(a): Anna Uckermann
Este autor(a) escreve mais 26 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
04.Oh mother, don`t look back `cause he`ll never hurt us again. Ele caminhou com as pupilas dilatadas pelo frio cortante daquela noite em Bristol. A lua cheia cobria o céu com sua brilhante luz, deixando as árvores com uma penumbra agradável para os olhos humanos dos moradores daquela deplorável cidadezinha da Inglaterra. Ele atravessou os b ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo
Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 3
Para comentar, você deve estar logado no site.
-
Plopes Postado em 17/12/2015 - 19:18:03
G-zuis que fic maravilhosaaaaaaa continuaaa
-
Raíssa Victória Postado em 29/10/2015 - 17:19:34
Oi,tudo bem???Sei que demorei muuuuito pra vir,mas vou ler os caps e depois,quando eu fizer a critica eu te aviso,ok?! :*
-
Raíssa Victória Postado em 18/10/2015 - 14:20:39
m.fanfics.com.br/fanfic/50104/criticando-fanfics-critica (Quer que eu critique [Fale o que acho] a sua fanfic?Se quiser,vai lá nesse link.Só quero te ajudar! :)