Fanfic: Hurts Like Satan | Tema: Vondy
04.
Oh mother, don`t look back `cause he`ll never hurt us again.
Ele caminhou com as pupilas dilatadas pelo frio cortante daquela noite em Bristol. A lua cheia cobria o céu com sua brilhante luz, deixando as árvores com uma penumbra agradável para os olhos humanos dos moradores daquela deplorável cidadezinha da Inglaterra.
Ele atravessou os bordos, apoiando a palma de sua mão no tronco grosso daquelas árvores, encarando mais além, avistando o bairro mais aparentemente pacato — uma paisagem patética das famílias inglesas que fingiam sua felicidade, com um exemplo perfeito dos Burwell — da noite. As luzes das casas estavam quase todas apagadas, as trancas fechadas e as janelas cobertas por cortinas.
Ele, então, parou de andar. O silêncio da madrugada era tão forte que sua respiração pareciam sopros de furacões.
Sentiu o peso do sangue da garota em seu pescoço, sentindo seu cheiro entorpecendo suas narinas. Lembrou-se de seu gosto agridoce, a coloração perfeita de um sangue que sofria, que era exposto ao mundo deprimente onde o corpo que o protegia estava submetido a viver.
Suas gengivas doeram quando os caninos quiseram se expor. Sentiu sua pupila maior ainda, contornando suas íris azuis com o preto felino da noite. Seus pelos se eriçaram e, quando percebeu, suas mãos estavam em forma de garra.
Ele estava com fome.
Como um raio, Ucker partiu pela floresta, correndo em direção ao bairro onde Dulce morava.
A voz que soprava em sua cabeça dizia: como ela foi gerada por duas pessoas diferentes, parte de seu sangue pertence a essas pessoas; então, provavelmente, o gosto seria semelhante, a força que ele o dá seria, no mínimo, parecida.
Ele esperava que sim.
Sua garganta tremia, ansiosa pelo líquido escarlate que desceria por ali, repondo as energias que somente a carne humana o oferecia.
Quando gerado, o Deus do submundo optou por deixá-lo sentir os pecados de um ser humano qualquer; o deixou com o corpo semelhante, mas com a aparência de um anjo caído, de forma que atrair suas presas é muito mais fácil do que caçá-las. É uma tarefa simples, afinal, ser um demônio. Caçar almas e rechear o inferno com pessoas que não valem tanto à pena enquanto se alimenta da carne doce daquele ser infeliz.
Quando chegou à rua, parou subitamente e ergueu as costas, esticando o pescoço para trás com os olhos fechados. Sentiu o brilho da lua em seu rosto pálido, iluminando-o, enquanto respirava fundo, caçando o cheiro do sangue dos Burwell. Tornando a abrir seus olhos, encolheu as pupilas novamente, deixando-os tomados em seu tom natural mais claro graças ao brilho do céu.
Ele encontrou.
Estava parcialmente próximo, para o leste. O cheiro do sangue que farejou não era tão forte e nem de longe tão saboroso quanto o de Dulce, mas poderia ser parecido. Se proporcionasse o que o sangue dela proporcionou, ele caçaria todos os familiares de Dulce até não sobrar nenhum vivo.
Então, ajustando a postura, encolhendo — com certa dificuldade e dor — os caninos e esticando os dedos, caminhou pela rua até outra próxima, como se fosse uma pequena cidade em um condomínio, com um pequeno mercado de frutas e legumes, uma padaria, uma lanchonete, uma peixaria e, claro, um bar.
E não tão difícil de farejar seu cheiro, mais fácil ainda fora encontrá-lo sentado próximo do balcão, com o rosto direcionado para baixo e a aparência tão deplorável quanto um animal que agoniza a morte.
George estava com os antebraços apoiados na madeira do balcão que corria de uma extremidade do bar até a outra. Estava quase vazio, com quatro ou cinco dependentes alcóolicos e dois atendentes entediados que fumavam seus cigarros e bebiam cervejas, sentados nos cantos, esperando alguém chamá-los para outra dose.
Para sua infelicidade, não havia nenhuma mulher bonita para ocupar a outra metade do seu tempo.
Ucker caminhou os poucos metros que o separavam daquele bar, então entrou, sentou-se ao lado do velho e, com um sorriso tentador nos lábios vermelhos, pediu uma dose tripla do melhor whisky.
George fedia. O cheiro de sua pulsação não era nem de longe tão agradável quanto a de Dulce. Era velha e estava carregada de álcool.
Quando o homem velho e gordo, com barba por fazer e cabelos pretos ralos na cabeça calva deixou o copo de Ucker posto à sua frente, George virou suavemente o queixo para encará-lo quando, finalmente, notou a movimentação.
Ucker conseguiu perceber suas pupilas extremamente dilatadas, sua boca seca e seus olhos cansados.
Desde que horas ele estava ali se embebedando?
— Eu quero outra — disse George. Sua voz embolava na garganta, completamente embaralhada. Ucker riu, atraindo-o a atenção. Quando sentiu os olhos pretos do homem em seu pescoço, ele tomou as doses de sua bebida em um gole só.
— Eu também quero — ele virou para o velho e, com um sorriso nos lábios, o cumprimentou.
— Vai com calma, George. Por que você não volta para casa? — o mesmo gordo de antes retornou, mas sem nenhuma garrafa nas mãos com dedos grossos.
— Eu não tenho mais casa — respondeu George, com os olhos trêmulos. — Eu não tenho mais família... Eu nunca tive, na verdade, elas nunca gostaram de mim — ele fungou. Ucker franziu o cenho e controlou uma risada, abaixando os olhos para o líquido âmbar que bailava nas beiradas do copo. O gordo rolou os olhos e caminhou para longe.
Quantos papos de bêbado ele tinha que aturar por noite? E quantos papos de bêbado vindos de George, sempre a mesma história, ele tinha que aturar por dia?
Ucker gargalhava por dentro.
Como essa vida é patética.
— Na sua idade, eu era a pessoa que quis ser para o resto da vida, rapaz — George se voltou para Ucker, olhando-o com as bochechas vermelhas e molhadas tanto de suor quanto de lágrimas. — Eu tinha uma namorada gostosa e não me importava nem um pouco com ela porque podia escolher a dedo as garotas que eu comeria. Hoje em dia... — ele franziu o rosto em uma careta de choro. — Hoje em dia eu sou casado com uma velha histérica e horrorosa, tenho uma filha problemática, depressiva e drogada que me odeia...
— Sua vida é mesmo uma bosta, cara... — disse Ucker, sem encará-lo, tomando um gole de whisky. George concordou.
— E piorou ainda mais. Elas vão colocar a polícia atrás de mim.
— E deveriam mesmo — murmurou Ucker. George o encarou e ele sorriu sem mostrar os dentes. — O que aconteceu? — se fez de prestativo, inclinando suavemente o rosto. George não notou suas intenções.
— Eu perdi o controle — ele assentiu, segurando seu copo vazio com as duas mãos. — Nós estávamos discutindo e eu bati nela, mas... Que homem nunca levantou a mão para uma mulher? — ele tentou rir, chorando um pouco mais. — Elas fazem a gente enlouquecer, cara, elas... — ele soluçou.
— Acho que você precisa de um ar — disse Ucker, assentindo enquanto tomava seu último gole e se levantava, respirando fundo. George o encarou com o cenho franzido e depois negou veemente com a cabeça.
— Eu preciso morrer — ele olhou para baixo novamente. — Elas nunca vão me perdoar e a vida que era horrível vai ficar pior ainda...
— Eu posso te ajudar — disse Ucker. O velho o encarou de novo. — Vamos conversar lá fora.
— Você é um daqueles vendedores filhos da puta que vai tentar me vender alguma coisa inútil dizendo que vai mudar minha vida? — ele riu embolado. Ucker abriu um sorriso sem humor.
— Não. Eu sou outro tipo de pessoa...
— Põe na conta, Joel. Amanhã eu volto.
Ucker caminhou pacientemente ao lado de George, ajudando-o a ficar de pé enquanto seguiam pelo longo caminho de volta para a casa dos Burwell.
Durante todo o trajeto o mais velho não calou sua boca durante um segundo, dizendo e repetindo que queria morrer, que sua vida era uma desgraça, que sua filha e sua mulher nunca mais o olhariam na cara por nojo pelas besteiras que ele cometera naquela noite maldita.
Ucker perdeu a paciência no segundo que pisaram fora do bar.
— Eu sei que não deveria ter feito o que fiz, mas ela estava enchendo tanto o meu saco. Reclamava de tudo, sabe? Desde a tampa da privada em pé até a conta que eu me esqueci de pagar porque estava preocupado com alguma coisa minha. Ela pensa que eu parei de viver a minha vida por causa dela? Ela é idiota. Eu nunca deixaria de viver a minha vida por causa de outra pessoa, sabe? Ser dependente. Mas eu sinto a falta da Maya, cara, eu não queria que tivesse terminado dessa forma. Eu sei que nosso casamento estava uma bosta, mas poderia melhorar caso da imbecil da Dulce não tivesse nascido e...
Ucker o empurrou no chão, quando estavam distantes o bastante. O empurrou com força, escutando o estalo pesado do corpo dele no asfalto da rua deserta.
— Mas que porra...? — George respirou com dificuldade, tentando apoiar as mãos no chão para se colocar de pé. — Você é doido, cara?
— Sou — Ucker assentiu, molhando os lábios, encarando o sangue vermelho aparecendo aos poucos pelo pequeno machucado que surgiu no cotovelo do mais velho. — Eu sou completamente insano.
— Sai de perto de mim — disse o mais velho, virando-se de lado, espalmando as mãos, tentando puxar os joelhos. Ele não tinha equilíbrio. O mundo girava mais rápido do que ele era capaz de acompanhar. Seus olhos tremiam, sua fala embolava, seu sangue estava pesado demais.
— Eu já fiz muitas coisas ruins nessa minha longa vida, George... — começou Ucker, caminhando lentamente para frente do homem, colocando o pé no alto do osso de seu quadril, chutando-o para que ficasse deitado de barriga para cima. Aquela fina camada de papel rasgou, quebrando, estalando alto. George deu um grito de dor que ecoou na floresta inabitável. Estavam longe demais para que alguém o escutasse. — Mas eu nunca, nunca, maltratei uma mulher.
— O que você quer de mim? — ele gritou novamente, começando a chorar de medo. Ucker finalmente permitiu que aquela risada que prendia sua garganta fosse liberada para o vento noturno. George gemeu e tentou se afastar, mas a dor em seu quadril era tanta que ele não conseguia nem ao menos pensar em algo racional. O álcool então, só tornou a sensação ainda mais pavorosa.
— Eu tenho que admitir que o gosto do sangue de uma donzela é muito mais saboroso que de um velho como você, mas me parte o coração vê-las sofrendo, agonizando, pedindo para que eu as mate de uma vez... — ele soprou um tom ressentido, quase fazendo um bico com o lábio inferior. — Então eu dou um único golpe certeiro no coração — ele piscou, colocando as mãos no peito. Depois, gargalhou. — O quão patético isso soa para você, George? Um demônio que tem compaixão por mulheres humanas? O Diabo sugaria minha alma. Mas... Como posso ser fiel ao que fui feito, se tenho os pecados humanos correndo nesse corpo? Qual é o seu preferido? — ele olhou diretamente nos olhos do velho que ainda tentava se afastar, com a boca entreaberta e os olhos arregalados. — Ira? — Ucker expulsou os dentes e sentiu suas pupilas tomando sua íris, abaixando-se de uma vez só para morder e puxar o músculo do ombro de George, mastigando-o uma ou duas vezes antes de engolir sua carne.
Encarou o buraco vermelho que havia feito naquele homem, escutando seus gritos de pavor. Encaixou-se por cima do quadril quebrado dele, colocando os joelhos nos pulsos de George de forma que ele não conseguisse se mover. Com uma de suas mãos, guiou os dedos até o alto da traqueia dele, apertando-o, vendo-o sufocar.
— Como você descreve essa sensação, de estar sem ar? Agora, imagine que eu sou seu pai. Aquele escroto imbecil que não raciocinou quando decidiu deixar sua mulher gerar um ser tão desprezível quanto você, George — ele rosnou, franzindo o cenho, pronunciando as palavras com ódio. Abaixou-se novamente, mordendo-o próximo da orelha, sugando seu sangue, mastigando sua pele e seu músculo.
Ele sentiu raiva por o gosto não ser igual. Sentiu ódio por não ocorrer aquela explosão de sentimentos bons como quando ele provou o sangue de Dulce pela primeira vez.
Ucker rosnou de raiva.
— Pelo amor de Deus! Pare com isso! Por favor! — ele gritou, esticando o pescoço, completamente desesperado. O sangue que escorria das mordidas de Ucker queimava quando jorrava para fora de seu corpo. Ucker o observou agonizar.
— Deus não existe — ele franziu o rosto, atacando-o novamente, mais fundo, sugando o sangue que começara a jorrar de sua artéria. Conforme mordia, inseria sua língua e puxava com força sua carne, mastigando-a uma vez antes de engolir e pegar outro pedaço, beber mais um pouco. Mordia e puxava sua pele enquanto segurava com as duas mãos seu rosto para que ficasse inclinado, sentindo seus olhos úmidos e sua boca aberta. Conforme ele gritava, sua veia ficara rígida, mas a pulsação era forte e constante.
Soltando um último grito, ele morreu com os olhos e boca abertos. Ucker levantou o tronco para vê-lo perfurado, com buracos grandes e fundos onde sua língua, dente e lábios o comeu. Sentiu o gosto parecido com aquele que estava bem guardado em um frasco em seu pescoço, guardado como um símbolo sagrado que o ajudaria nos momentos de desespero.
O sangue de Dulce era diferente. Era mágico. Proporcionava forças inacreditáveis no corpo daquele demônio. Era um sangue sofrido, um sangue com gosto mais doce que os outros.
E não era parecido com aquele que pingava de seus caninos afiados, de seu queixo ensanguentado, de seu pescoço e blusa sujos. Aquele sangue tinha um gosto mais amargo que o daquela garota, era mais claro, mais denso. Estava poluído pelo vício, embora mais saboroso pelos pecados e pela dor do arrependimento que sentia quando Ucker o provou.
Puxando as mãos do rosto do velho, Ucker encaixou-as nas extremidades de suas costelas e as puxou com força, quebrando-as, abrindo um pequeno vão de pele no meio da barriga de George. Enfiando os dedos ali, rasgou-a como um pedaço de papel de seda, expondo o interior de seu corpo.
Ele escolheu o coração como seu primeiro aperitivo.
Puxou-o e o arrancou de suas ligações, mordendo-o com tamanho desejo e fome, saboreando-o como se fosse o mais gostoso do mundo.
Não seria nem de longe um dos melhores que ele já comeu, mas era suficiente para repor suas energias por um par de dias.
Encarou o sangue caindo por uma poça ao lado do corpo velho daquele homem morto, vendo-o brilhar e reluzir em um tom escurecido pela lua que pouco a pouco se afastava, sumindo no céu, sendo recoberta por nuvens de chuva. Ele passou os dedos no asfalto ensanguentado, chupando-os para sugar o sangue que conseguiu pegar, depois se debruçou novamente e encaixou seus lábios e língua no local certo, tomando como se fosse um refresco em um dia quente de verão.
Ele olhou para cima, começando a sentir-se cheio quando metade do segundo pulmão escorregava por sua garganta. A luz iluminou o sangue molhado em seu rosto, o brilho pálido de sua pele, o corpo aberto e devorado do homem debaixo de seu quadril.
Ucker se colocou de pé e lambeu os lábios, passando o polegar ao lado da boca para pegar o resto de sangue que se encontrava ali; depois, juntou os pedaços restantes de George e o embrulhou como um saco de carne — e não era exatamente o que ele representava agora? —, seguindo com ele para a floresta. Jogando-o em cima de uma pedra, encarou os braços e as pernas caindo para as extremidades como uma coisa podre.
Nada melhor do que o cheiro de uma carne nova exposta ao sol.
Os lobos dariam conta daquele resto. As criaturas noturnas se comunicavam entre si.
Ucker virou o rosto para a direção de um labirinto nevoado, abaixando-se novamente para tomar outros goles de sangue, chupando-o com os lábios e língua, segurando-o com os dentes que palpitavam com aquela nova recarga de energia.
Aos poucos, ouviu as quatro patas de seus irmãos noturnos caminhando até onde o corpo de George estava.
Normalmente, caso estivesse com muita fome, Ucker atacaria aqueles lobos.
Mas naquela noite, não. Já estava satisfeito o bastante para deixar seu resto para os preguiçosos.
Sentia-se como um leão rodeado de hienas. Tão poderoso quanto, tão invencível quanto.
Ele sorriu, aproximando-se de um lobo grande, com pelos negros e olhos claros. Ele estava com os caninos à mostra, com raiva, rosnando. Ucker riu, molhando os lábios, ficando próximo o bastante para o lobo atacar.
Bastou apenas um mínimo movimento com seu corpo, um único soco na garganta do animal, que ele caiu para a lateral com um grunhido de dor. Os outros lobos se afastaram.
— Nós não devíamos brigar, irmão — Ucker sussurrou, agachando-se para perto do lobo levemente machucado. Ele o acariciou como se fosse um animal de estimação. — A carne é sua. Trouxe um banquete... Aproveite.
Os outros lobos, como se entendessem o que Ucker disse — e provavelmente entendiam —, atacaram de uma vez só o corpo destroçado de George, cada um puxando uma perna, um braço, a fim de esquartejá-lo e deixá-lo ainda pior para quem o fosse encontrar.
Ucker acariciou o meio dos olhos do lobo que ele antes machucara, percebendo-o com dor.
— Me desculpe — sussurrou, vendo-o colocar-se de pé e rosnar de novo. Ucker riu. — Criaturas da noite são todas iguais — afirmou ele, rosnando também, mostrando seus caninos tantas vezes maiores que o daquele lobo.
O lobo ansiou atacar novamente, mas Ucker deu um pulo para trás, se afastando o bastante para não matar aquele animal irracional irritante.
— Animal desprezível — rolou os olhos. — Preguiçoso — disse enquanto o animal se guiava para a matilha, comendo o meio do corpo de George, que estava de maior e fácil acesso.
Ucker, dando um último olhar para George, virou-se e caminhou pela escuridão, tirando sua blusa suja e enterrando-a em seu cemitério particular, onde, além do corpo do zelador e futuramente o de George, outros restos de ossos se encontravam enterrados e esquecidos.
As pessoas que ele matava para se alimentar, em geral, não causariam euforia no resto da população da cidade. Era raro quando ele encontrava algum sangue que realmente valesse o sacrifício da busca, da perturbação, da confusão que se instalaria na cidade onde mora no exato momento.
Uma morte qualquer é uma morte qualquer, mas uma morte barulhenta tem consequências irritantes das quais ele não estava disposto — ou com paciência — de passar novamente.
Já se foi o século onde o que ele mais queria era a atenção das pessoas para uma criatura que os leigos admitem ser mística — um demônio.
Demônios existem e Ucker não era o único solto pelo mundo. Qualquer alma perdida é um demônio a ser criado; qualquer alma sofrida está na linha da eternidade sentindo os mesmos pecados, se afogando nas mesmas próprias amarguras.
Mas ele não trocaria sua divindade do inferno por outra coisa que alguém pudesse oferecer. Ser uma criatura noturna era a melhor das dádivas. Ser uma criatura noturna estava tatuado em sua alma desde o segundo que nasceu, séculos e séculos atrás, eras e eras distantes do momento em que partisse, daqui a mais de milênios.
Ele veria e reveria a humanidade ser extinta e, querendo ou não, adoraria participar da carnificina.
Dulce já conseguia ficar sem o apoio em seu pescoço quando recebeu alta. Ficou feliz por não ter que sair daquele jeito de Bristol; sentia como se fosse um novo começo — novos começos não combinam com curativos ou colares de algodão para segurar o pescoço quieto.
Pouco antes de sair, ela arrumava os últimos detalhes de sua pequena mala que Maya havia trago para o hospital. A enfermeira dava a ela os últimos procedimentos sobre o que fazer quando chegar em casa enquanto sua mãe chamava um táxi.
— Sabe, seu namorado esteve aqui — disse ela, interrompendo-se no meio de uma frase.
— Meu namorado? — franziu o cenho, com Blaine em mente.
— Sim... Ucker — ela sorriu inocentemente, mesmo sabendo que a pergunta de Dulce havia respondido todas às suas suspeitas.
— Ah, sim... Que bom... Pena que eu não estava acordada — ela sorriu de volta, tentando não demonstrar a preocupação que gritava em seus olhos.
O que diabos Ucker fazia ali?, ela se perguntava, enquanto a enfermeira saía do quarto para atender outros pacientes. O sorriso de Dulce murchou assim que ela se virou de costas e na mente dela milhares de perguntas se formulavam.
Enquanto colocava suas pulseiras de seu dia-a-dia, percebeu um pequeno corte no pulso. Um diferente, mais recente... E, mesmo que sem querer, pensou emUcker. Ele adorava suas cicatrizes.
Talvez tenha vindo para marcar sua própria.
Ela riu com o pensamento tão idiota e voltou a se perguntar o que ele fazia ali de verdade, sem encontrar uma resposta.
— Vamos, Dulce! Você é muito lenta — sua mãe a chamava, esperando-a praticamente arrastar-se até o táxi.
Dulce riu, apressando-se, ainda um pouco sonolenta.
Dulce nunca percebera o lado divertido de sua mãe. Elas mal se falavam, na verdade — a maioria das vezes Maya estava ocupada demais brigando com George, fazendo Dulce acreditar que casamento se resumia àquilo: brigas intermináveis e constrangimento em meio às pessoas normais.
Ela estava redondamente enganada; sua mãe era uma parceira que ela contaria muito no futuro, disso Dulce tinha certeza.
Caminhando para o novo amanhã, Dulce teve longas horas de viagem até chegar a New York.
Nova cidade, nova casa, novo sotaque, novas pessoas, nova vida. Vida tal aquela que ela começaria a aproveitar. Assim que embarcou naquele avião, ela prometeu para si mesma que nunca mais olharia para trás e daquele momento em diante ela seria feliz. Também fez com que sua mãe prometesse nunca mais olhar para trás.
Chegando naquela cidade, Dulce ficou completamente maravilhada. Era como nos filmes: os prédios antigos e bonitos, as ruas cheias, os táxis amarelos que enfeitavam a cidade, os letreiros que pareciam magia. Realmente era um sonho.
— Lar, doce e novo lar — Maya sussurrou com um sorriso tímido nos lábios, encarando o prédio à sua frente e o caminhão de mudanças atrás.
— Qual andar? — Dulce perguntou, sem tirar os olhos do prédio.
— Terceiro andar, 2C — ela respondeu sem mover um outro músculo.
Dulce correu como uma criança, adentrando aquele prédio lindo aos seus olhos, subindo as escadas energeticamente, passando por todos os apartamentos até chegar ao seu, que estava com a porta aberta.
Era um lugar pequeno, mas bonito e aconchegante. Ficaria ainda mais quando pronto e decorado como uma casa de verdade.
Se resumia à uma sala pequena, separada por um balcão americano de cozinha, que continha armários bege claro suspensos próximos do teto branco encardido, o fogão e a geladeira brancos que pareciam velhos, do antigo dono. Ela seguiu pelo corredor, em direção ao banheiro. Era pequeno também, com uma banheira linda de porcelana. Não era como o antigo banheiro de sua casa, mas ainda assim era perfeito e maravilhoso.
Seguiu para a segunda porta do corredor, achando seu quarto. Era pequeno, também, com uma janela, sem cortinas, sem nada. Ela imaginou sua cama no meio, a televisão, seus pôsteres e sua coleção interminável de CDs estampados em estantes que ela colocaria.
Sorriu.
Seguiu mais uma vez, até o último quarto, que era o da sua mãe. Era mais bonito e maior, com uma varanda de frente à rua.
Era grande, com grades de metal preto, contorcido e enfeitado com simples desenhos de flores. Ao lado, não muito distante, havia uma escada de incêndio.
Dulce conseguiu ver a movimentação da rua e da avenida; os sons de buzinas e conversas paralelas eram como o canto dos anjos.
Ela conseguiu imaginar algo ainda melhor para aquele quarto: cortinas brancas de renda tocariam o chão, uma cama de casal bem no meio, um guarda-roupas bem à frente, com espaço para a televisão e estantes também, repletas de livros, estátuas e porta-retratos. A suíte, como a outra, a confortaria nas manhãs antes de ir para a escola. Ela acordaria encarando o sol refletir em seu teto branco, sorriria, se despreguiçaria, abriria as cortinas e observaria a movimentação da rua em seus trajes de noite. Ela caminharia até o banheiro e faria sua higiene, trocaria de roupa, sairia do quarto e tomaria café no balcão americano com sua mãe. Pegaria seu material, se despediria dela e seguiria para sua escola que ela não odiaria.
Ela conseguia se imaginar perfeitamente bem ali.
— Gostou? — Maya apareceu na porta do quarto, apoiada no batente, enquanto Dulce se perdia em seus pensamentos.
— Eu amei, mãe — ela respondeu, sentada exatamente no meio do quarto. — Eu sei que esse deveria ser o seu quarto, mas eu gostei tanto... Eu me imagino perfeitamente aqui... Me deixa ficar com ele? — ela sorriu, implorando com os olhos.
Maya pensou um pouco. Ela não precisava de tanto espaço, ela não iria gostar do barulho do trânsito e do vento, ou da claridade daquela pequena varanda.
— Eu não iria gostar mesmo — respondeu, dando de ombros, saindo do quarto sem deixar que Dulce a respondesse.
Dulce, então, ficou ainda feliz, deitou-se nos filetes de madeira escura e fechou os olhos, imaginando tudo imensamente diferente do que era antes.
No final no dia, os empregados da mudança já haviam terminado de montar tudo, e, de noite, Maya decorava a sala em seus últimos ajustes enquanto Dulce assistia televisão com um frio na barriga pela excitação da expectativa.
Levantou-se e foi até a varanda pela milésima vez naquele dia — de noite, tudo parecia muito mais bonito.
As luzes da cidade refletiam na pista molhada pela chuva, movimentada pelos carros, pelo espírito da noite no centro de Manhattan; ninguém ali parecia dormir. As boates que a vista alcançava estavam com filas, os restaurantes estavam lotados, as mulheres caminhavam acima de seus saltos e riam, conversando com seus namorados, amigos, irmãos noturnos, casos de última hora.
Aquilo era o paraíso.
Com os olhos perdidos na movimentação, ela fazia planos. Primeiro, visitaria os pontos turísticos, depois se informaria sobre seu próprio bairro e, em poucos dias, teria aquela nova cidade na palma quadrada de sua mão.
Era possível tanta felicidade caber em uma pessoa só?
Toda aquela névoa de Bristol havia sido espantada pelo calor humano de Manhattan.
O barulho da televisão cessou subitamente, como um raio que cortava o barulho noturno de um coração Nova Iorquino. A luz que brilhava acima de sua cabeça pareceu explodir, com um estalo, desligando. O breu se implantou entre seu corpo, o frio lentamente consumiu sua pele, fazendo-a virar-se alertada, com o coração martelando forte.
— Por favor, que a casa não seja assombrada — sussurrou para si mesma, fechando os olhos. O único brilho que adentrava aquela casa era o que a rua fornecia, deixando tudo encoberto por sombras, silhuetas.
O barulho da risada de Maya cortou seus tímpanos, fazendo-a molhar os lábios, tentando respirar.
— Só estamos sem luz! — a voz de Maya, abafada pela parede, gritou da sala.
— Você não pagou a primeira conta? — Dulce se guiou pelo corredor estreito, tateando a parede lisa com a ponta dos dedos, com medo de tropeçar em alguma caixa de mudança. Ela conseguiu ver a silhueta de sua mãe se mover na escuridão. Aos poucos, suas pupilas se acostumaram pela falta de luz, deixando-a perceber alguns poucos móveis.
— Eu gastei toda a nossa poupança na mudança, querida. Me esqueci de pagar as contas... — ela riu sem graça. Dulce rolou os olhos, permitindo-se rir também.
— Isso significa banho frio? — ela gemeu em antecipação, franzindo as sobrancelhas.
— São só alguns dias. Vou procurar emprego amanhã bem cedo e logo teremos bastante dinheiro para começar nossa vida do melhor jeito possível. Além do mais, está tarde, devíamos dormir. Teremos um dia cheio.
Dulce molhou os lábios e assentiu, tornando a virar nos calcanhares para seguir de volta para seu perfeito quarto.
— Boa noite, querida — murmurou Maya para a escuridão. Quando virou o pescoço para trás, Dulce encarou sua silhueta próxima ao batente da porta, com a lateral do corpo apoiada ali.
— Boa noite, mãe.
— Eu te amo...
— Eu também te amo.
Autor(a): Anna Uckermann
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05.I just can`t control myself. They want more, well, I`ll give them more. Já havia se passado vários dias desde que Dulce e sua mãe conseguiram se estabelecer em Manhattan — conseguiram um apartamento fixo, com as contas pagas, uma lanchonete de confiança e alguns furos de emprego que duravam, no máximo, quatro dias. Ma ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 3
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Plopes Postado em 17/12/2015 - 19:18:03
G-zuis que fic maravilhosaaaaaaa continuaaa
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Raíssa Victória Postado em 29/10/2015 - 17:19:34
Oi,tudo bem???Sei que demorei muuuuito pra vir,mas vou ler os caps e depois,quando eu fizer a critica eu te aviso,ok?! :*
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Raíssa Victória Postado em 18/10/2015 - 14:20:39
m.fanfics.com.br/fanfic/50104/criticando-fanfics-critica (Quer que eu critique [Fale o que acho] a sua fanfic?Se quiser,vai lá nesse link.Só quero te ajudar! :)