—Papai acorda, acorda! — ela diz com sua vozinha esganiçada.
Resmungo e esfrego meu rosto. Pisco para a luz tentando acostumar meus olhos, enquanto mãozinhas insistentes me sacodem.
— Acorde papai! — ela grita mais uma vez.
— Hei Terremoto, deixe-me dormir — resmungo sonolento.
— Já é tarde! — ela sorri após ouvir o apelido carinhoso. — Estou com fome. — ela diz enquanto passa a pequena mão pela barriga.
— Por que não foi tomar café? — sento-me na cama com dificuldade.
— Não sem você — ela resmunga.
Olho para o relógio na cabeceira da cama que marca 08h30minhs.
Puta merda!Pulo da cama. Sempre acordo antes das sete para preparar o café e tomá-lo com Luma. Dormi muito, na realidade desabei.
Os acontecimentos do dia anterior vêm como uma avalanche em meus pensamentos.
— Papai! — ela diz insistentemente.
— Já escutei Luma — sorrio para ela. — Deixe apenas o papai tomar um banho e já desço para tomar o café com você!
— Mas não demora — diz ela fazendo um biquinho.
— Onde está Claire? — pergunto.
Claire é a babá de Luma desde que eu a trouxe para minha casa, algumas semanas após seu nascimento. Isso foi há sete anos.
— Na cozinha preparando o café, mas prefiro suas panquecas, são melhores e mais gostosas — Luma sorri revelando uma janela entre
os dentes superiores.
— Prometo ser mais rápido que o The Flash — digo bagunçando seu cabelo.
— Tá bom! — ela sorri em resposta.
Observo minha filha sair saltitando em sua perna mecânica. Por causa da vida irresponsável, regada a bebidas, cigarros e drogas, a
menina havia nascido com uma deformidade em uma de suas pernas. Apesar disso, Luma é uma menina alegre e doce.
Se pelo menos a mãe a tratasse melhor, com mais carinho. Apesar de todos os meus esforços para proteger Luma, nem sempre consigo
evitar que ela seja afetada pelo veneno e palavras amargas de Perla, mas isso terá um fim. Não vou mais deixar Sophia atormentar nossas
vidas. Não mesmo.
Tomo um banho rápido, visto meu terno Armani cinza grafite e coloco uma camisa branca e uma gravata vermelha e desço para a cozinha,
onde Luma me espera.
— Por que você chegou tão tarde, papai? — Luma exige assim que entro na cozinha.
Tiro meu paletó e coloco no encosto de uma das cadeiras. Luma é uma criança extremante possessiva e ciumenta comigo. Nenhuma
mulher pode chegar perto o suficiente, exceto Claire, isso porque ela a conhece desde bebê.
— Bom dia, Claire — cumprimento a babá e volto para Luma— Aconteceu um imprevisto e você não deveria ficar acordada até tarde, não
é? – digo sorrindo para ela.
Luma cobre o rosto e murmura algo incompreensível. Respiro fundo antes de chamar sua atenção. Quase nunca brigo com ela, mas se há
uma coisa que eu exijo é que tenha uma vida normal para uma garota da sua idade e dormir cedo é uma exigência.
— Luma? — chamo-a com as sobrancelhas erguidas.
— Eu estava esperando você chegar... — ela choraminga.
— Não vai me conquistar com lamúrias, mocinha! — digo docemente.
— Mas papai... — ela choraminga novamente.
Sinto meu celular vibrar e antes que eu possa responder, faço um gesto para que ela espere e atendo.
— Calvin?
— Acho que temos problemas, senhor — ele responde afobado e ouço gritos ao fundo.
— Que tipo de problemas? Não me diga que deixou alguém entrar — falo rispidamente, a raiva tomando conta de mim.
— Não, senhor. Quer dizer, ainda não — ele responde.
— Como assim, ainda não? — pergunto ainda mais irritado.
— Senhor, é uma moça. Parece que é uma amiga. Acho que realmente não oferece algum perigo — ele diz baixinho.
— Ok. Deixe-a entrar, mas fique aí. Estou indo imediatamente — ele consente e eu desligo.
Antes que Luma possa protestar, dou um beijo em sua testa.
— Prometo levá-la ao zoológico no fim de semana — os olhos dela brilham sapecas. — Claire pode cuidar do café para mim?
— Claro senhor — diz Claire. Na verdade já estava pronto, mas a menina insistiu em comer suas panquecas. — ela diz em reprovação.
— Fica para amanhã, Terremoto — despeço-me dela e saio apressadamente.
Dirijo com relativa um pouco rápido demais. É a segunda vez que dirijo assim em menos de 24 horas. E tudo por causa de certa ruiva,
linda e estonteante. O trânsito pesado já se foi considerando que está passando a hora do rush.
Quem será essa amiga? Bom, saberei quando chegar lá. Também preciso dispensar Calvin. Ele passou a noite em vigília e deve estar
cansado. Sei que ele aguenta muitas horas acordado, já pude comprovar isso, mas mesmo assim, merece descansar. Posso tomar as rédeas
da situação a partir de agora. Estaciono em frente ao prédio velho alguns minutos depois.
Encontro Calvin em frente à porta.
— Bom dia, Calvin. O que aconteceu? — questiono tão logo o encontro.
— Bom dia, senhor. Estava aqui, conforme suas orientações e já estava prestes a chamar um táxi para retornar para casa, considerando
que já eram quase nove da manhã, quando a tal amiga chegou. Primeiro ela me olhou assustada, pois acredito que não esperava ver um homem
parado, em frente ao apartamento. Depois perguntou quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Expliquei minimamente e ela bateu na porta
para chamar à amiga. Quando eu disse a ela que não poderia entrar, ela ficou louca. Começou a berrar, dizendo que chamaria a polícia e quem
eu achava que era para impedi-la. Enquanto eu tentava justificar, a moça ruiva abriu a porta e perguntou o que eu fazia ali. Expliquei novamente, que estava ali para sua segurança e ela disse que a jovem era sua amiga e que eu deveria deixá-la entrar se eu não quisesse arrumar confusão.
Foi aí que telefonei para o senhor. — ele explica.
— Certo. Depois que ela entrou você ouviu ou viu mais alguma coisa? – pergunto.
— Bom, depois que a moça ruiva abriu a porta e ambas caíram no chão...
— O quê? Caíram no chão? — digo, cortando-o.
— Acho que a amiga estava tão enlouquecida que quando a ruiva abriu a porta, ela se jogou em cima dela, derrubando-a. Mas não
ficaram machucadas. Eu verifiquei isso — ele responde apressadamente.
— Continue — digo impaciente.
— Bem, depois que elas entraram eu pude ouvir um pouco da conversa delas. Falaram sobre alguém chamado Brian e sobre o senhor.
— O que disseram sobre mim? — pergunto realmente interessado.
— A moça ruiva disse que o senhor a salvou ontem duas vezes, primeiro livrando-a de um assalto e depois quando veio e abriu a porta do
apartamento dela para que pudesse entrar — ele diz resumidamente.
— E o que mais? — pergunto agoniado.
— Bom, não pude ouvir muito, pois elas estavam praticamente cochichando — ele diz como se pedisse desculpas.
Quem seria essa amiga? E porque a deixou sair sozinha? Será que morava com ela? E quem era esse Brian? Seria seu tio? Não, ela
mentiu sobre isso, tenho certeza. Aquilo não estava cheirando nada bem. Aliás, estava cheirando a encrenca e das boas. Espero estar
enganado.
— Tudo bem, Calvin. Peça um táxi e volte pra casa. Assumo a partir daqui. Precisarei de você apenas à noite. Luma está com Claire em
casa e acredito que não vão sair durante o dia — digo dispensando-o.
– Senhor, mais uma coisa. – Calvin diz antes de se retirar.
— O que? — pergunto interessado.
— Devo informá-lo que a senhorita ruiva não ficou muito contente em saber que o senhor me pediu para que ficasse aqui para mantê-la
segura — ele diz ressabiado.
— Eu resolvo isso, Calvin. Pode ir. Ah! Calvin! Essa amiga era uma loira peituda? — digo lembrando-me da desagradável prostituta da
noite anterior.
— Não, senhor. Ela é alta e morena — ele responde.
— Ok. Bom descanso — digo e ele se retira apressadamente.
As coisas saíram um pouco do controle. Tudo porque dormi demais. Pretendia render Calvin mais cedo e verificar se o tal tio de Anahi
existia, apesar de apostar minhas bolas que era mentira. Mas apaguei e agora teria que mudar um pouco minha abordagem. Essa garota está
me cheirando à encrenca, mas não posso simplesmente virar as costas. Não enquanto estiver em dívida com a vida.
Eu não que sou um bom samaritano, em busca de perdão ou com o propósito de salvar o mundo, estou muito longe disso. Certo, eu faço
doações à caridade e participo de eventos filantrópicos, mas nada, além disso. No entanto Anahi faz ressaltar cada instinto protetor que há em
mim.
Quem eu quero enganar?
O que venho sentindo não tem nada a ver com proteção. Não sei exatamente o que é, mas não consigo ficar longe dela, nem que seja por uma maldita noite. Lembro-me vagamente do meu último pensamento. Pensei como seria beijá-la. Sacudo a cabeça para afastar o rumo dos
meus pensamentos e bato na porta. Ninguém atende. Bato de novo um pouco mais forte. Nada. Resolvo chamá-la.