5 Capitulo
A MANHÃ DE SÁBADO chegou trazendo céu azul, mas logo as nuvens começaram a se formar. Cinzentas e pesadas, elas se formavam e se agrupavam ao mesmo tempo que o vento soprava cada vez mais forte. A temperatura começou a cair e, quando Annie saiu de casa, ela teve que vestir uma blusa de moletom. A loja ficava a cerca de três quilômetros de sua casa, um percurso de aproximadamente meia hora de caminhada vigorosa, e ela sabia que teria que se apressar se não quisesse que a chuva a apanhasse.
Annie chegou à estrada principal assim que ouviu o ribombar dos trovões. Ela acelerou o passo, sentindo o ar ficar mais denso à sua volta. Um caminhão passou correndo no asfalto, deixando uma nuvem de poeira atrás de si, e Katie foi até o canteiro central que dividia as duas pistas. O ar cheirava ao sal que vinha do oceano. Acima dela, um gavião de cauda vermelha flutuava intermitente nas correntes de ar ascendentes, testando a força do vento.
O ritmo constante dos seus passos distraiu sua mente, e ela se viu refletindo sobre a conversa com Bel. Não as histórias que ela havia contado, mas algumas das coisas que Bel havia dito a respeito de Poncho. Acabou por decidir que Bel não sabia do que estava falando. Enquanto Annie estava simplesmente tentando conversar, Bel havia distorcido suas palavras e transformado-as em algo que não era realmente verdadeiro.
Poncho certamente parecia ser uma boa pessoa e, como Bel disse, Sophi era muito doce e meiga, mas ela não estava interessada nele. Ela mal o conhecia. Desde que JP havia caído no rio, eles mal haviam trocado algumas palavras, e a última coisa que ela queria era entrar em um relacionamento, qualquer que fosse.
Assim, por que ela tinha a sensação de que Bel estava tentando fazer com que eles ficassem juntos?
Ela não sabia ao certo, mas, para ser honesta, aquilo não lhe importava. Estava feliz pelo fato de que Bel viria até sua casa naquela noite. Duas amigas, compartilhando uma garrafa de vinho... não era algo tão especial assim, ela sabia. Outras pessoas, outras mulheres, faziam aquele tipo de coisa o tempo todo.
Annie franziu a testa. Tudo bem, talvez não o tempo todo, mas a maioria delas provavelmente sabia que podia fazer aquilo se quisessem, e ela supunha que aquela era diferença entre ela própria e as outras pessoas. Quanto tempo fazia desde que havia feito algo que parecesse normal?
Desde sua infância, admitiu Annie para si mesma. Desde aqueles dias em que ela colocara moedas sobre os trilhos. Mas ela não havia contado toda a verdade a Bel. Não dissera a ela que ia até o lugar onde o trem passava para fugir do som das discussões de seus pais, das vozes arrastadas que se insultavam mutuamente.
Não contou a Bel que havia sido pega no fogo cruzado mais de uma vez e que, quando tinha 12 anos, fora atingida por um enfeite de vidro que seu pai lançara contra sua mãe. O objeto lhe causou um corte na cabeça que sangrou por várias horas, mas nem a mãe nem o pai demonstraram qualquer interesse em levá-la para o hospital.
Não disse a Bel que seu pai era cruel quando estava bêbado, ou que ele nunca convidara qualquer pessoa, nem mesmo Emily, para visitar sua casa. Ou que não conseguiu ir para a faculdade porque seus pais achavam que era um desperdício de tempo e dinheiro. Ou que eles a expulsaram de casa no dia em que ela terminou o ensino médio.
Ela pensou que talvez pudesse contar aquilo a Bel. Ou talvez não contasse. Não era tão importante. E daí que ela não tivera a melhor das infâncias? Sim, seus pais eram alcoólatras e frequentemente estavam desempregados, mas, ignorando o incidente com o enfeite de vidro, eles nunca chegaram a machucá-la.
Não, ela nunca ganhou um carro ou teve festas de aniversário, mas nunca foi para a cama sem jantar. E, quando o outono chegava, independente da situação financeira da família, ela sempre ganhava roupas novas para ir à escola.
Talvez seu pai não fosse o melhor homem do mundo, mas ele não vinha até seu quarto na calada da noite para fazer coisas horrí- veis com ela — coisas que ela sabia que haviam acontecido com algumas amigas. Aos 18 anos, ela não se considerava uma pessoa traumatizada.
Talvez um pouco decepcionada por não ter cursado uma faculdade e nervosa por ter que encontrar seu caminho sozinha no mundo, mas não traumatizada além de qualquer possibilidade de recuperação. E ela havia conseguido. As coisas não foram tão ruins em Atlantic City.
Ela conheceu alguns bons rapazes e ainda se lembrava de mais de uma noite que passara rindo e conversando com os amigos do trabalho até o dia amanhecer.
Não, insistiu ela consigo mesma. Sua infância não havia definido sua vida, nem tinha algo a ver com a razão pela qual ela se mudara para Southport e, embora Bel fosse a coisa mais próxima de uma amiga que ela tinha na cidade, essa amiga não sabia absolutamente nada sobre sua vida. Ninguém sabia.
— OI, SENHORITA ANNIE — disse Sophi, ainda sentada em sua mesinha de desenho.
Não havia nenhuma boneca aquele dia. Em vez disso, ela estava curvada sobre um livro de colorir, com bastões de giz de cera nas mãos, trabalhando em uma imagem de unicórnios sob um arco-íris.
— Oi, Kristen. Como você está?
— Estou bem.
Sophi tirou os olhos do livro de colorir e olhou para Annie.
— Por que você sempre vem a pé para cá?
Annie analisou a pergunta por um momento e depois deu a volta no balcão, agachando-se para ficar da mesma altura que Sophi.
— Porque não tenho um carro.
— Por que não?
“Porque não tenho habilitação”, pensou Annie. “E mesmo que eu tivesse, não tenho dinheiro para comprar ou manter um carro”.
— Bem, vou lhe dizer o que farei. Vou pensar em comprar um, certo?
— Certo — disse ela. E estendeu o livro de colorir para Annie.
— Você gostou do meu desenho?
— Está bonito. Você está fazendo um ótimo trabalho.
— Obrigada. Vou lhe dar esta folha quando eu terminar.
— Não precisa fazer isso.
— Eu sei — disse ela, com uma autoconfiança encantadora.
— Mas eu quero que você fique com ela. Você pode colocá-la na porta da sua geladeira. Annie sorriu e se levantou.
— Era exatamente nisso que eu estava pensando.
— Precisa de ajuda com as compras?
— Acho que consigo cuidar disso sozinha hoje. Assim você pode terminar de colorir.
— Tudo bem — concordou Sophi.
Ao pegar uma cesta de compras, Annie viu que Poncho se aproximava. Ele acenou para ela e, embora não fizesse sentido, ela teve a sensação de que aquela era a primeira vez que realmente prestava atenção nele. Embora seu cabelo fosse grisalho, havia apenas algumas poucas linhas de expressão ao redor dos olhos dele que, de algum modo, realçavam a aura de vitalidade que ele tinha ao seu redor. Os ombros dele eram mais largos do que a cintura, e ela teve a impressão de que Poncho era um homem que não exagerava na comida nem na bebida.
— Oi, Annie. Como está?
— Estou bem. E você?
— Tudo tranquilo
— disse ele, abrindo um sorriso.
— É ótimo ver você. Eu queria lhe mostrar uma coisa.
Poncho apontou para o monitor e ela viu que JP estava sentado no ancoradouro atrás da loja, segurando sua vara de pescar.
— Você deixou que ele voltasse a pescar?
— perguntou ela.
— Percebeu o colete que ele está usando? Ela se aproximou do monitor, apertando os olhos.
— Um colete salva-vidas?
— Eu demorei um pouco para achar um que não fosse desajeitado ou quente demais para ele, mas esse é perfeito. E, para falar a verdade, eu não tive escolha. Você não faz ideia do quanto ele estava triste sem poder pescar. Nem tenho como enumerar quantas vezes ele me implorou para que eu o deixasse voltar para a doca. Não conseguia mais suportar aquilo, então pensei que esta seria uma boa solução.
— Ele não se importa em usar o colete?
— Uma das novas regras da casa. Ou usa o colete ou fica sem pescar. Mas eu não acho que ele se importe.
— E ele chega a pescar alguma coisa?
— Não tanto quanto gostaria, mas, às vezes, ele pega alguns peixes, sim.
— E vocês os comem?
— Às vezes. Mas JP geralmente os joga de volta na água. Ele não se importa de pescar o mesmo peixe várias vezes.
— Fico feliz por você ter encontrado uma solução.
— Um pai mais previdente teria pensado nisso antes que um acidente acontecesse.
Pela primeira vez, ela olhou para ele.
— Tenho a impressão de que você é um ótimo pai.
Seus olhos se encontraram e ambos se observaram por um momento, antes que ela se forçasse a desviar o rosto. Poncho, sentindo o desconforto dela, começou a mexer nas coisas que estavam atrás do balcão.
— Tenho uma coisa para você — disse ele, tirando uma sacola de trás da caixa registradora e colocando-a sobre o balcão.
— Há uma pequena fazenda que me fornece alguns produtos e eles têm uma estufa. Conseguem cultivar algumas coisas em épocas que outras empresas não conseguem. Ontem eles trouxeram alguns legumes frescos. Tomates, pepinos e alguns tipos diferentes de abobrinhas. Talvez você queira experimentá-los. Minha esposa jurava que eram os melhores que ela já havia comido.
— Sua esposa?
Ele balançou a cabeça.
— Ah, me desculpe. Ainda faço isso às vezes. Estava me referindo à minha esposa, já falecida. Ela morreu há alguns anos.
— Eu lamento — murmurou ela, enquanto sua mente repassava a conversa que teve com Bel.
Qual é a história dele?
Seria melhor que você perguntasse a ele. Aquela fora a resposta
de Bel.
Era óbvio que Bel sabia que a esposa dele havia morrido, mas não dissera nada a respeito. Estranho.
Poncho não percebeu que ela estava pensando na conversa que tivera no dia anterior.
— Obrigado — disse ele, com a voz um pouco estrangulada.
— Ela era uma ótima pessoa. Tenho certeza de que você teria gostado dela — completou Poncho.
Uma expressão saudosa lhe cruzou o rosto.
— De qualquer forma, ela sempre elogiou aquele lugar. Eles trabalham com alimentos orgânicos e a família ainda colhe os legumes manualmente. Em geral, os produtos deles desaparecem logo depois que chegam, mas eu separei alguns para você, se quiser experimentá- los — comentou ele, sorrindo.
— Além disso, você é vegetariana, não é? Os vegetarianos adoram estes legumes. Eu garanto.
Annie olhou para ele, apertando os olhos.
— Por que você acha que eu sou vegetariana?
— Não é?
— Não.
— Acho que me enganei, então — disse ele, colocando as mãos nos bolsos.
— Tudo bem. Já me acusaram de fazer coisas piores.
— Duvido muito.
“Não duvide”, pensou ela.
— Bem, acho que vou levar os legumes. Obrigada.
Bejinhos Da #Elly ♥