Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
Dul
Há apenas mais uma dúzia de textos no arquivo, e eles não me dizem nada que eu queira saber, embora criem mais dúvidas. E, em vez de conterem os pensamentos e impressões da minha mãe, são todos dirigidos a alguém.
Caro David,
Pensei que você era mais meu amigo do que meu supervisor, mas acho que
estava errada.
O que você pensou que aconteceria quando entrei aqui? Que eu viveria solteira e solitária para sempre? Que não me apegaria a ninguém? Que não tomaria nenhuma decisão por conta própria?
Deixei tudo para trás a fim de entrar aqui, quando ninguém mais queria fazer isso. Você deveria estar me agradecendo, e não me acusando de perder o foco da missão. Vamos deixar uma coisa bem clara: não vou esquecer por que estou aqui só porque escolhi a Abnegação e vou me casar. Mereço ter uma vida própria. Uma vida que eu queira, e não uma que você e o Departamento escolham por mim. Você deveria saber bem disso. Deveria entender por que esta vida me agradaria, depois de tudo o que vi e vivi.
Para ser franca, acho que você nem liga para o fato de que não escolhi a Erudição, como deveria ter feito. Parece apenas que você está com ciúmes. E, se quiser que eu continue enviando informações, deve desculpar-se por duvidar de mim. Mas, se você não se desculpar, não enviarei mais informação alguma, e, sem dúvida, não deixarei mais a cidade para visitá-lo. Você é quem sabe.
– Blanca
Será que ela tinha razão a respeito de David? Essa ideia instiga a minha mente.
Será que ele de fato sentia ciúme do meu pai? Será que o ciúme dele sumiu com o tempo? Só consigo enxergar o relacionamento deles a partir do olhar da minha mãe e não sei se ela é a fonte mais confiável.
Dá para perceber que ela está ficando mais velha nos textos. Sua linguagem está se tornando mais refinada à medida que o tempo a separa da margem onde costumava viver, e suas reações estão ficando mais moderadas. Ela está amadurecendo.
Confiro a data do texto seguinte. Foi escrito alguns meses depois, mas não é para David, como alguns dos outros. O tom também é diferente. Não é tão familiar, e sim mais direto.
Toco na tela, passando pelos textos. Preciso tocá-la dez vezes até encontrar outro texto para ele. A data do texto sugere que foi escrito dois anos depois.
Caro David,
Recebi a sua carta. Entendo por que você não pode mais ser a pessoa a receber meus comunicados e respeito a sua decisão, mas vou sentir saudade.
Desejo-lhe toda a felicidade do mundo.
– Blanca
Tento passar para a página seguinte, mas é o fim do diário. O último documento no arquivo é um atestado de óbito. Segundo o atestado, a causa da morte foi ferimentos múltiplos no torso causados por arma de fogo. Balanço para a frente e para trás durante um tempo, para afastar da minha mente a imagem
dela desabando na rua. Quero aprender mais sobre ela e meu pai e sobre ela e David. Qualquer coisa que me distraia da maneira como a sua vida terminou.
+ + +
Sigo Zoe até a sala de controle mais tarde nesta manhã, e isso mostra como estou desesperada por informações. Ela conversa com o administrador da sala de controle sobre uma reunião com David enquanto encaro, determinada, os meus pés, sem querer ver o que está nos monitores. Sinto que, se me permitir olhar para eles, mesmo que por um segundo, ficarei viciada, perdida no mundo antigo porque não sei como lidar com o novo.
Porém, quando Zoe encerra sua conversa, não consigo mais conter minha curiosidade. Olho para o enorme monitor pendurado sobre as mesas. Alexandra está sentada na cama, correndo as mãos sobre algo em sua mesa de cabeceira.
Aproximo-me do monitor para ver o que é, e a mulher na mesa à minha frente
diz:
– Esta é a câmera de Alexandra. Nós a observamos vinte e quatro horas por dia.
– Vocês podem ouvi-la?
– Só se aumentarmos o som – responde a mulher. – Mas em geral mantemos o som desligado. É difícil ouvir tanta conversa o dia inteiro.
Assinto com a cabeça.
– O que é isso que ela está tocando?
– Um tipo de escultura, não sei. – A mulher dá de ombros. – Mas ela costuma olhar muito para ela.
Eu a reconheço de algum lugar. Do quarto de Christopher, onde dormi depois da minha quase execução na sede da Erudição. Ela é feita de vidro azul. Uma forma abstrata que parece água sendo derramada e paralisada no tempo.
Levo as pontas dos dedos ao queixo, vasculhando minha memória. Ele me disse que Alexandra o havia presenteado com a escultura quando ele era jovem e o instruíra a mantê-la escondida do pai, que, por ser da Abnegação, desaprovaria um objeto lindo, mas inútil. Não pensei muito sobre a escultura então, mas ela deve significar algo para Alexandra, já que a carregou do setor da Abnegação até a sede da Erudição e a manteve em sua mesa de cabeceira. Talvez seja a sua maneira de se rebelar contra o sistema de facções.
No monitor, Alexandra equilibra o queixo na mão e encara a escultura por um instante. Depois, levanta-se e balança as mãos antes de deixar o quarto.
Não, não acredito que a escultura seja um símbolo de rebelião. Acho que é apenas uma lembrança de Christopher. De alguma forma, não me dei conta disso quando deixamos a cidade. Ele não era apenas um rebelde desafiando sua líder, mas também um filho abandonando a mãe. E ela está sofrendo por isso.
Será que ele também está?
Por mais problemático que fosse o relacionamento dos dois, os laços entre
eles nunca vão se quebrar. Isso seria impossível.
Zoe toca o meu ombro.
– Você queria me perguntar alguma coisa?
Assinto com a cabeça e afasto os olhos do monitor. Zoe está jovem na foto em que aparece ao lado da minha mãe, mas ela estava lá, então deve saber alguma coisa. Eu teria perguntado a David, mas, por ser líder do Departamento, não é fácil encontrá-lo.
– Quero informações sobre meus pais. Estou lendo o diário da minha mãe e acho que estou tendo dificuldade em entender como eles se conheceram ou por que entraram na Abnegação juntos.
Zoe acena a cabeça devagar.
– Posso dizer o que sei. Você se importa em me acompanhar até o laboratório? Preciso levar uma mensagem para Matthew.
Ela leva as mãos às costas, apoiando-as no quadril. Ainda estou segurando a tela que David me deu. Ela está toda marcada com minhas impressões digitais e morna por conta do meu toque constante. Entendo por que Alexandra toca tanto aquela escultura. É o último pedaço que ela tem do seu filho, assim como aquele pequeno aparelho é o último pedaço da minha mãe. Sinto-me mais próxima dela quando estou com ele.
Acho que é por isso que não consigo entregá-lo a Caleb, embora ele tenha o direito de ver. Acho que ainda não consigo abrir mão dela.
– Eles se conheceram em uma aula – conta Zoe. – Embora seu pai fosse um homem inteligente, nunca foi muito bom em psicologia, e a professora, que, é claro, pertencia à Erudição, era muito dura com ele por isso. Então, sua mãe se ofereceu para ajudá-lo depois das aulas, e ele disse para os pais que estava fazendo um tipo de trabalho escolar. Isso durou várias semanas, e então eles começaram a se encontrar em segredo. Acho que um dos lugares preferidos deles era o chafariz do Millenium Park. O Chafariz Buckingham, bem ao lado do pântano. Sabe?
Imagino a minha mãe e o meu pai sentados ao lado do chafariz, sob a nuvem de gotas d’água, os pés tocando o fundo de concreto. Sei que o chafariz ao qual Zoe está se referindo não funciona há muito tempo e que não haveria água alguma, mas a imagem fica mais bonita assim.
– A Cerimônia de Escolha se aproximava, e seu pai mal podia esperar paradeixar a Erudição, porque vira algo terrível...
– O quê? O que ele viu?
– Bem, seu pai era muito amigo de Jeanine Matthews – diz Zoe. – E ele a viu realizar um experimento em um homem sem-facção em troca de comida ou roupas. De qualquer maneira, ela estava testando o soro indutor de medo que mais tarde foi incorporado na iniciação da Audácia. Antigamente, as simulações de medo não eram geradas pelos medos específicos das pessoas, entende, mas por medos generalizados, como altura e aranhas, ou algo do tipo. E Norton, que na época era o representante da Erudição, estava presente, mas deixou que o experimento durasse mais do que deveria. O homem sem-facção nunca mais foi o mesmo. E isso foi a gota d’água para o seu pai.
Ela para diante da porta do laboratório a fim de abri-la com o crachá.
Entramos no escritório sujo onde David me deu o diário da minha mãe. Matthew está sentado com o nariz colado no monitor do computador e os olhos semicerrados. Ele quase não nota a nossa presença.
Sou tomada por uma vontade de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Sento-me em uma cadeira ao lado da mesa vazia, as mãos juntas entre os joelhos. Meu pai era um homem difícil. Mas também era um bom homem.
– Seu pai queria sair da Erudição, e sua mãe não queria entrar, independentemente do objetivo da sua missão. Mas ela queria estar próxima de Andrew, então eles escolheram a Abnegação juntos. – Ela faz uma pausa. – Isso causou um rompimento entre sua mãe e David, como você deve ter lido. Ele acabou se desculpando, mas disse que não receberia mais os informes dela, não sei por quê; ele não quis dizer. Depois disso, os informes dela passaram a ser muito curtos, puramente informativos. E é por isso que não estão incluídos no diário.
– Mas ela conseguiu mesmo assim continuar a sua missão na Abnegação.
– Sim. E acho que ela foi muito mais feliz lá do que teria sido na Erudição – diz Zoe. – É claro que, em certos aspectos, a Abnegação acabou não sendo muito melhor. Parece que não há como escapar dos danos genéticos. Até a liderança da Abnegação foi envenenada por eles.
Franzo a testa.
– Você está se referindo a Víctor? Mas ele é Divergente. Os danos genéticos não tiveram nada a ver com o que ele fez.
– Um homem cercado por danos genéticos não consegue deixar de imitá-los em seu próprio comportamento – diz Zoe. – Matthew, David quer marcar uma reunião com seu supervisor para discutir um dos soros em desenvolvimento. Da última vez, Alan esqueceu completamente, então queria saber se você pode acompanhá-lo até lá.
– Claro – diz Matthew sem afastar os olhos do computador. – Vou dar um jeito de fazê-lo reservar um tempo para mim.
– Ótimo. Bem, preciso ir. Espero ter respondido as suas perguntas, Dul. – Ela sorri e deixa o recinto.
Sento-me encurvada para a frente com os cotovelos nos joelhos. Víctor era Divergente, geneticamente puro, como eu. Mas não aceito que ele era uma pessoa ruim porque estava cercado por pessoas geneticamente danificadas. Eu também estava. Uriah também estava. Assim como a minha mãe. Mas nenhum
de nós agrediu nossos entes queridos.
– O argumento dela é meio furado, não é? – pergunta Matthew. Ele está olhando para mim de trás da mesa, tamborilando os dedos no braço da cadeira.
– É – respondo.
– Algumas pessoas aqui querem culpar os danos genéticos por tudo. É mais fácil para elas acreditar nisso do que na verdade, que é a seguinte: não há como eles saberem tudo sobre as pessoas e os motivos que as levam a agir como agem.
– Todos têm que culpar alguma coisa pelo mundo ser como é – digo. – Para o meu pai, a culpada era a Erudição.
– Então é melhor eu não dizer que a Erudição sempre foi a minha facção preferida – diz Matthew, com um pequeno sorriso.
– Sério? – Ajeito o corpo. – Por quê?
– Não sei. Acho que concordo com eles. Com a ideia de que, se todos aprendessem o tempo todo sobre o mundo ao seu redor, teríamos muito menos problemas.
– Desconfiei deles a minha vida inteira – digo, apoiando o queixo na mão. –
Meu pai odiava a Erudição, então aprendi a odiá-los também, assim como tudo o que eles faziam. Mas agora acho que ele estava errado. Ou, pelo menos... estava sendo preconceituoso.
– Sobre a Erudição ou sobre o aprendizado?
Dou de ombros.
– Os dois. Tantas pessoas da Erudição já me ajudaram sem eu nem precisar pedir. – Afonso, Fernando, Cara eram todos da Erudição, e algumas das pessoas mais bondosas com que convivi, mesmo que por pouco tempo. – Eles estavam tão determinados a transformar o mundo em um lugar melhor. – Balanço a cabeça. – O que Jeanine fez não tem nada a ver com sede de conhecimento, que a levou à sede por poder, como meu pai disse, mas sim com o medo dela da dimensão do mundo e como isso a tornava impotente. Talvez a Audácia é que tivesse razão.
– Existe um velho ditado – diz Matthew. – Conhecimento é poder. O poder de fazer o mal, como Jeanine... ou o poder de fazer o bem, como estamos fazendo.
O poder em si não é mau. Portanto, o conhecimento em si não é mau.
– Acho que fui criada para desconfiar dos dois. Do poder e do conhecimento – digo. – Para a Abnegação, o poder só deve ser dado a pessoas que não o querem.
– Isso até faz algum sentido – diz Matthew. – Mas talvez esteja na hora de você superar essas desconfianças.
Ele pega um livro sob a mesa. É um livro grosso, com a capa gasta e as bordas puídas. Na capa, está escrito BIOLOGIA HUMANA.
– Este livro é um pouco rudimentar, mas me ajudou a aprender o que é ser humano. O que significa ser uma máquina biológica tão complicada e misteriosa e, o que é ainda mais fascinante, ter a capacidade de analisar a própria máquina! Isso é algo muito especial, sem precedentes em toda a história evolutiva. Nossa habilidade de aprender sobre nós mesmos e sobre o mundo é o que nos torna humanos.
Ele me entrega o livro e volta a encarar o computador. Olho para a capa gasta e corro os dedos pelas beiradas das páginas. Ele faz a aquisição de conhecimento parecer algo secreto e lindo, algo antigo. Sinto que, se ler este livro, conseguirei voltar no tempo, através de todas as gerações da humanidade, até a primeira, seja lá quando foi. Que participarei de algo muito maior e mais antigo do que eu.
– Obrigada – agradeço, e não estou me referindo ao livro. E sim ao fato de ele ter me devolvido algo, algo que eu havia perdido antes mesmo de ter.
+ + +
O saguão do hotel cheira a limão cristalizado e água sanitária, uma combinação pungente, que queima minhas narinas quando respiro. Passo por um vaso de planta com uma flor espalhafatosa crescendo em meio aos galhos e sigo em direção ao dormitório que se tornou nosso lar temporário. Ao caminhar, esfrego a minha camisa na tela, tentando limpar algumas das minhas impressões digitais.
Caleb está sozinho no dormitório, o cabelo despenteado e os olhos vermelhos de quem acabou de acordar. Ele pisca ao olhar para mim quando entro, e jogo o livro de biologia sobre a cama. Sinto uma dor nauseante no estômago e agarro o aparelho com o arquivo sobre a nossa mãe junto às minhas costelas. Ele é filho dela. Tem tanto direito de ler o diário dela quanto você.
– Se você tem algo a dizer – fala ele –, diga logo.
– Mamãe viveu aqui. – Deixo escapar como um segredo guardado há anos, alto e rápido demais. – Ela veio da margem, eles a trouxeram para cá, e ela viveu aqui durante alguns anos, depois foi para a cidade a fim de impedir que a Erudição assassinasse os Divergentes.
Caleb pisca novamente ao me encarar. Antes que eu perca a coragem, ofereço-lhe a tela.
– O arquivo dela está aqui. Não é muito longo, mas você devia ler.
Meu irmão se levanta e segura a placa de vidro. Ele está tão mais alto do que costumava ser, tão maior do que eu. Por alguns anos, quando éramos crianças, fui mais alta do que ele, apesar de ser quase um ano mais nova. Aqueles foram alguns dos nossos melhores anos, uma época na qual eu não sentia que ele era maior, melhor, mais inteligente ou mais altruísta do que eu.
– Há quanto tempo você sabe disso? – pergunta ele, semicerrando os olhos.
– Não importa. – Dou um passo para trás. – Estou contando agora. Aliás, você pode ficar com isso. Não preciso mais.
Ele limpa a tela com a manga da camisa e avança pelo dispositivo de maneira habilidosa até encontrar o primeiro texto do diário da nossa mãe. Imagino que vá se sentar e ler o texto, encerrando a conversa, mas ele suspira.
– Também tenho algo para mostrar – diz ele. – É sobre Edith Saviñón. Venha.
É o nome dela, e não o que me resta de ligação com ele, que me leva a seguilo quando ele sai andando.
Saímos do dormitório, descemos o corredor e viramos algumas vezes até uma sala distante de todas as que conheço no complexo do Departamento. A sala é comprida e estreita, e as paredes são cobertas de prateleiras com livros azulacinzentados idênticos, grossos e pesados, como dicionários. Entre as duas primeiras fileiras há uma longa mesa de madeira com cadeiras. Caleb acende o interruptor, e uma luz pálida enche a sala, lembrando-me da sede da Erudição.
– Tenho passado muito tempo aqui – diz ele. – É a sala de registro. Eles guardam algumas informações sobre o experimento de Chicago aqui.
Ele caminha diante das prateleiras do lado direito da sala, correndo os dedos pelas lombadas dos livros. Pega um dos volumes e o repousa sobre a mesa, abrindo-o, e consigo ver as páginas repletas de textos e fotos.
– Por que eles não guardam tudo isso em computadores?
– Acho que guardavam esses registros quando ainda não haviam desenvolvido um sistema de segurança sofisticado para a rede – diz ele sem levantar a cabeça.
– Dados nunca desaparecem de verdade, mas papéis podem ser destruídos para sempre, e, portanto, é fácil se livrar disso para evitar que caia nas mãos erradas.
Às vezes, é mais seguro ter tudo impresso.
Seus olhos verdes acompanham o texto depressa enquanto ele procura o ponto certo com dedos ágeis, feitos para virar páginas. Penso em como ele disfarçou esse aspecto de si, escondendo livros entre a cabeceira da cama e a parede na nossa casa na Abnegação, até derramar seu sangue na água da Erudição no dia da nossa Cerimônia de Escolha. Eu deveria ter percebido, naquele dia, que ele era um mentiroso, leal apenas a si mesmo.
Sinto a dor nauseante outra vez. Mal consigo suportar estar aqui dentro com ele, a porta nos prendendo e apenas a mesa entre nós.
– Ah, aqui está. – Ele aponta para a página, depois vira o livro para me mostrar.
Parece uma cópia de um contrato, mas é escrita à mão com tinta.
Eu, Amanda Marie Ritter, de Peoria, Illinois, consinto com os seguintes procedimentos: O procedimento de “cura genética”, conforme definido pelo Departamento de Auxílio Genético: “um procedimento de engenharia genética projetado para corrigir os genes especificados como ‘danificados’ na página três deste formulário.”
O “procedimento de reinicialização”, conforme definido pelo Departamento de Auxílio Genético: “um procedimento de apagamento de memória, com o objetivo de tornar mais adequado o participante do experimento.”
Declaro que fui cuidadosamente instruída quanto aos riscos e benefícios desses procedimentos por um membro do Departamento de Auxílio Genético.
Entendo que isso significa que receberei um novo histórico e uma nova identidade pelo Departamento e que serei inserida no experimento em Chicago, Illinois, onde viverei o resto da minha vida.
Concordo em me reproduzir pelo menos duas vezes, para oferecer aos meus genes corrigidos a maior chance possível de sobrevivência. Entendo que serei encorajada a fazer isso durante a minha reeducação, depois do procedimento de reinicialização.
Também autorizo que meus filhos e os filhos dos meus filhos etc.,
permaneçam nesse experimento até que o Departamento de Auxílio Genético o considere completo. Eles serão instruídos com a história falsa que eu também receberei depois do procedimento de reinicialização.
Assinado,
Amanda Marie Ritter
Amanda Marie Ritter. Ela era a mulher do vídeo, Edith Saviñón, minha antepassada.
Olho para Caleb, cujos olhos estão brilhando com o conhecimento, como se fios elétricos passassem dentro deles.
Nossa antepassada.
Puxo uma das cadeiras e me sento.
– Ela era antepassada do papai? – pergunto.
Ele faz que sim com a cabeça e se senta de frente para mim.
– Sim, há sete gerações. Uma tia. O irmão dela foi quem passou adiante o nome Saviñón.
– E isto é...
– É um termo de consentimento. O termo de consentimento dela para se juntar ao experimento. As notas do texto afirmam que este é apenas um rascunho. Ela foi uma das projetistas originais do experimento. Era membro do Departamento. No experimento original, havia poucos membros do Departamento; a maioria das pessoas no experimento não trabalhava para o governo.
Releio o texto, tentando decifrá-lo. Quando a vi no vídeo, parecia tão lógico o fato de ela se tornar uma moradora da nossa cidade, de ela mergulhar no nosso sistema de facções, de se oferecer para deixar tudo para trás. Mas isso foi antes de eu saber como é a vida fora da cidade, e ela não parece tão terrível quanto Edith descreveu em sua mensagem para nós.
Ela foi uma hábil manipuladora naquele vídeo, cuja intenção era nos manter contidos e dedicados à visão do Departamento. O mundo fora da cidade está gravemente danificado, e os Divergentes precisam sair para consertá-lo. Não é bem uma mentira, porque as pessoas do Departamento de fato acreditam que genes curados vão consertar certas coisas, que, se nos integrarmos à população geral e passarmos adiante nossos genes, o mundo será um lugar melhor. Mas eles não precisavam que os Divergentes marchassem da cidade como um exército para combater a injustiça e salvar a todos, como Edith sugeriu. Será que ela acreditava nas suas próprias palavras ou será que as falou só porque precisava?
Há uma foto dela na página seguinte, com a boca em uma linha firme e cabelo castanho. Ela deve ter visto algo terrível para se oferecer para ter a memória apagada e a vida inteira reconstruída.
– Você sabe por que ela resolveu participar? – pergunto.
Caleb balança a cabeça em um gesto negativo.
– Os registros sugerem, embora de maneira bastante vaga, que as pessoas se juntavam ao experimento para que suas famílias pudessem escapar de um estado de pobreza extrema. As famílias dos sujeitos recebiam por mais de dez anos um ordenado mensal pela participação no teste. Mas essa com certeza não foi a motivação de Edith porque ela trabalhava no Departamento. Suspeito que algo traumático tenha acontecido a ela, algo que ela queria muito esquecer.
Franzo a testa ao olhar para a foto. Não consigo imaginar que tipo de pobreza levaria alguém a abrir mão de si mesmo e de todos os que ama em troca de um ordenado mensal para sua família. Posso até ter vivido de pão e legumes da Abnegação durante a maior parte da minha vida, sem nenhum luxo, mas nunca estive desesperada a esse ponto. A situação deles deveria ser bem pior do que qualquer coisa que vi na cidade.
Também não consigo imaginar o que teria deixado Edith tão desesperada.
Talvez ela apenas não tivesse ninguém por quem manter a sua memória.
– Queria saber se existem precedentes jurídicos para o consentimento em nome de descendentes – diz Caleb. – Acho que é uma extrapolação do consentimento para crianças com menos de dezoito anos, mas parece um pouco estranho.
– Acho que todos nós decidimos o destino dos nossos filhos quando tomamos nossas próprias decisões – digo de forma vaga. – Será que teríamos escolhido as facções que escolhemos se mamãe e papai não tivessem optado pela
Abnegação? – Dou de ombros. – Não sei. Talvez não tivéssemos nos sentido tão reprimidos. Talvez tivéssemos nos tornado pessoas diferentes.
O pensamento invade a minha mente como uma criatura rastejante: Talvez tivéssemos nos tornado pessoas melhores. Pessoas que não traem a própria irmã.
Encaro a mesa diante de mim. Durante os últimos minutos, foi fácil fingir que eu e Caleb éramos simplesmente irmã e irmão outra vez. Mas não dá para esquecer a realidade e a raiva durante muito tempo, antes que a verdade venha de novo à tona. Quando levanto meus olhos e encontro os dele, lembro-me da vez que o encarei exatamente assim, quando ainda era prisioneira na sede da Erudição. Lembro-me de estar cansada demais para brigar com ele ou para ouvir as desculpas dele; cansada demais para me importar com o fato de que meu irmão havia me abandonado.
– Edith se juntou à Erudição, não foi? Apesar de ter adotado um nome da Abnegação? – pergunto de maneira dura.
– Sim! – Ele parece não perceber o meu tom. – Na verdade, a maioria dos nossos antepassados pertencia à Erudição. Houve alguns casos isolados que se juntaram à Abnegação e um ou dois que se juntaram à Franqueza, mas a linhagem é bastante consistente.
Sinto frio, como se pudesse estremecer e depois me estilhaçar toda.
– Então, imagino que, na sua mentalidade torpe, você tenha usado isso como desculpa para o que fez – digo de maneira dura. – Para ter se juntado à Erudição, para ter sido leal a eles. Quer dizer, se você já estava destinado a ser um deles, então “facção antes do sangue” se torna uma crença aceitável, certo?
– Dul... – diz ele, e seus olhos imploram pela minha compreensão, mas não compreendo. Eu me recuso.
Levanto-me.
– Então, agora sei sobre Edith e você sobre a nossa mãe. Vamos deixar as coisas assim.
Às vezes, quando olho para ele, sinto uma pontada de compaixão, mas outras vezes tenho vontade de agarrar seu pescoço. Porém, agora só quero escapar e fingir que isso nunca aconteceu. Deixo a sala de registros, e meus sapatos chiam no chão de ladrilhos enquanto corro até o hotel. Corro até sentir o cheiro de limão doce, depois paro.
Christopher está parado no corredor, do lado de fora do dormitório. Estou sem fôlego e consigo sentir o meu batimento cardíaco nas pontas dos dedos; sinto-me sufocada, cheia de um sentimento de perda e assombro, raiva e saudade.
– Dul – diz Christopher com uma expressão preocupada. – Você está bem?
Balanço a cabeça, ainda tentando recuperar o fôlego, e o empurro contra a parede, meus lábios encontrando os seus. Por um instante, ele tenta me afastar, mas depois talvez decida que não se importa se estou bem, não se importa se ele está bem, não se importa. Há dias que não ficamos juntos, só nós dois. Semanas. Meses.
Seus dedos deslizam pelos meus cabelos, e eu me agarro aos seus braços para me equilibrar enquanto nos apertamos um contra o outro, como duas lâminas em um duelo empatado. Ele é a pessoa mais forte que conheço e é mais carinhoso do que as pessoas pensam; ele é um segredo que guardo comigo e guardarei pelo resto da vida.
Ele se curva e beija o meu pescoço com força, e suas mãos deslizam pelo meu corpo, parando e agarrando minha cintura. Prendo meus dedos nos passadores da sua calça, fechando os olhos. Naquele momento, sei exatamente o que quero; quero retirar todas as camadas de roupa entre nós, despir tudo o que nos separa, o passado, o presente e o futuro.
Ouço passos e risadas no fim do corredor, e nos afastamos. Alguém, provavelmente Uriah, assobia, mas quase não o ouço por trás do pulsar nos meus ouvidos.
Os olhos de Christopher encontram os meus, e é como na primeira vez que realmente olhei para ele durante a minha iniciação, depois da simulação do medo; nos olhamos por tempo demais, com intensidade demais.
– Cala a boca! – grito para Uriah sem tirar os olhos de Christopher.
Uriah e Anahí entram no dormitório, e nós os seguimos como se nada tivesse acontecido.
Comentem!!!
Autor(a): Fer Linhares
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Christopher Naquela noite, quando minha cabeça desaba no travesseiro, pesada com tantos pensamentos, ouço algo sendo amassado sob a minha bochecha. Um bilhete sob a fronha.C–Encontre-me na entrada do hotel às onze. Preciso falar com você. &nbs ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa