Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
Christopher
Naquela noite, quando minha cabeça desaba no travesseiro, pesada com tantos pensamentos, ouço algo sendo amassado sob a minha bochecha. Um bilhete sob a fronha.
C–
Encontre-me na entrada do hotel às onze. Preciso falar com você.
– Nita
Olho para o catre de Dul. Ela está deitada de costas, e há uma mecha de cabelo cobrindo seu nariz e sua boca que se mexe cada vez que ela respira. Não quero acordá-la, mas me sinto estranho indo encontrar uma garota no meio da noite sem avisá-la. Ainda mais agora que estamos nos esforçando tanto para sermos honestos um com o outro.
Olho o meu relógio. Faltam dez minutos para as onze.
Nita é apenas uma amiga. Você pode avisar Dul amanhã. Talvez seja urgente.
Afasto a coberta e enfio os pés nos sapatos. Tenho ido dormir com as roupas que uso durante o dia. Passo pela cama de Peter, depois pela de Uriah. Vejo a boca de uma garrafa escondida sob o travesseiro de Uriah. Eu a pego com cuidado e a carrego em direção à porta, escondendo-a sob o travesseiro de uma das camas vazias. Não tenho tomado conta dele como prometi a Zeke.
Ao chegar no corredor, amarro os cadarços e ajeito o cabelo. Parei de cortar o cabelo como faz um membro da Abnegação quando decidi que queria que as pessoas da Audácia me enxergassem como um possível líder, mas sinto saudade do ritual do modo antigo, o zumbido da máquina e os movimentos cuidadosos das minhas mãos, que se orientavam mais pelo tato do que pela visão. Quando eu era criança, meu pai costumava cortar meu cabelo no corredor do segundo andar da nossa casa na Abnegação. Ele nunca era muito cuidadoso com a lâmina, arranhando a minha nuca e machucando as minhas orelhas. Mas nunca
reclamava de ter que cortar o meu cabelo. Isso já é alguma coisa, eu acho.
Nita bate o pé no chão. Desta vez, está usando uma camisa branca de manga curta, e seu cabelo está preso. Ela sorri, mas seus olhos não refletem o sorriso.
– Você parece preocupada – digo.
– É porque estou. Venha, tem um lugar que quero mostrar para você há um tempo.
Ela me guia por corredores escuros e vazios exceto por um ou outro faxineiro.
Todos parecem conhecer Nita. Eles acenam para ela ou sorriem. Ela enfia as mãos nos bolsos, desviando com cuidado os olhos dos meus sempre que nossos olhares se cruzam.
Passamos por uma porta que não tem qualquer sensor de segurança para mantê-la trancada. Do outro lado, há uma grande sala circular com um lustre de vidro no centro. O chão é de madeira escura polida, e as paredes, cobertas de folhas de bronze, refletem a luz. Há nomes escritos nos painéis de bronze.
Dezenas de nomes.
Nita para sob o lustre e abre os braços para abranger toda a sala com o gesto.
– Estas são as árvores genealógicas de Chicago – diz ela. – As árvores genealógicas de vocês.
Aproximo-me de uma das paredes e leio os nomes, procurando algum que me pareça familiar. No final, encontro dois: Uriah Pedrad e Ezekiel Pedrad. Ao lado de cada nome, há um pequeno “AA”, e há um ponto ao lado do nome de Uriah que parece ter sido gravado há pouco tempo, provavelmente marcando-o
como Divergente.
– Você sabe onde está o meu? – pergunto.
Ela atravessa a sala e toca em um dos painéis.
– As gerações são matrilineares. É por isso que os registros de Dul diziam que ela era de “segunda geração”. Porque a mãe dela veio de fora da cidade. Não sei ao certo como Jeanine sabia disso, mas acho que agora nunca vamos descobrir.
Hesitante, aproximo-me do painel com o meu nome, embora não saiba ao certo por que deveria temer ver meu nome e os nomes dos meus pais gravados em bronze. Vejo uma linha vertical ligando Kristin Johnson e Alexandra Johnson e outra linha horizontal ligando Alexandra Johnson a Víctor Uckermann. As pequenas letras ao lado do meu nome dizem “AbA”, e há um ponto também, embora eu agora saiba que não sou de fato Divergente.
– A primeira parte indica a sua facção de origem – explica ela –, e a segunda, a sua facção de escolha. Eles acreditavam que manter um registro das facções os ajudaria a traçar um trajeto dos genes.
As letras da minha mãe: “EAS”. Imagino que o S signifique “sem-facção”.
As letras do meu pai: “AbAb”, com um ponto.
Toco a linha que os conecta a mim, a linha que conecta Alexandra a seus pais e a linha que os conecta a seus pais, voltando oito gerações, contando a minha. Isto é um mapa que mostra o que eu sempre soube, que sou ligado a eles, preso para sempre a essa herança vazia, não importa o quanto eu fuja.
– Embora eu me sinta grato por ter me mostrado isto – digo, sentindo-me triste e cansado –, não entendo por que tinha que ser no meio da noite.
– Imaginei que você fosse querer ver. E queria conversar com você sobre uma coisa.
– Vai de novo me tranquilizar, dizendo que as minhas limitações não me definem? – Balanço a cabeça. – Não, obrigado. Já estou farto disso.
– Não. Mas fico feliz por você dizer isso.
Ela se apoia no painel, cobrindo o nome de Alexandra com o ombro. Eu me afasto, porque não quero estar perto o bastante dela para ver o anel de tom castanho um pouco mais claro ao redor das suas pupilas.
– A conversa que tive com você ontem à noite, sobre danos genéticos... na verdade, foi um teste. Queria saber como você reagiria ao que eu disse sobre genes danificados para saber se podia confiar em você – diz ela. – Se você aceitasse o que falei sobre as suas limitações, a resposta teria sido não. – Ela desliza um pouco mais para perto de mim, e seu ombro cobre o nome de Víctor também. – Sabe, não concordo muito em ser classificada como “danificada”.
Lembro-me de como ela cuspiu a explicação sobre a tatuagem de vidro quebrado nas suas costas, como se fosse veneno.
Meu coração começa a bater mais forte, e consigo sentir a pulsação na garganta. O bom humor na voz dela foi substituído por amargura, e seus olhos perderam calor. Tenho medo dela, do que ela tem a dizer. Mas também estou animado, porque isso significa que não preciso aceitar que sou menor do que acreditava.
– Imagino que você também não concorde.
– Não. Não concordo.
– Existem muitos segredos neste lugar – diz ela. – Um deles é que, para eles, os GDs são dispensáveis. Outro é que alguns de nós não estão dispostos a aceitar isso.
– Como assim, dispensáveis? – pergunto.
– Os crimes que eles cometeram contra pessoas como nós são muito sérios – diz Nita. – E estão escondidos. Tenho provas, mas só posso mostrá-las depois. O que posso dizer agora é que estamos trabalhando contra o Departamento, por bons motivos, e queremos que você se junte a nós.
Semicerro os olhos.
– Por quê? O que vocês querem de mim exatamente?
– Agora quero dar a você a oportunidade de ver como é o mundo fora deste complexo.
– E o que você ganha com isso?
– A sua proteção – diz ela. – Estou indo para um lugar perigoso e não posso contar a mais ninguém do Departamento. Você não é daqui, e isso significa que é mais seguro para mim confiar em você, e sei que você sabe se defender. E, se vier comigo, posso mostrar a tal prova que você quer ver.
Com delicadeza, ela leva a mão ao coração, como se estivesse jurando.
Minha desconfiança é grande, mas minha curiosidade é maior ainda. Não é difícil para mim acreditar que o Departamento tenha feito coisas más, porque todo governo que já conheci fez coisas más, até mesmo a oligarquia da Abnegação, que era dirigida pelo meu pai. E, para além dessa desconfiança razoável, ainda borbulha dentro de mim a esperança de que não sou danificado, de que valho mais do que os genes corrigidos que poderei passar a meus futuros filhos.
Então decido aceitar a proposta dela. Por enquanto.
– Está bem – digo.
– Em primeiro lugar – continua ela –, antes que eu mostre qualquer coisa, você precisa prometer que não vai contar a ninguém, nem mesmo a Dul, sobre as coisas que verá. Concorda?
– Ela é confiável, sabe. – Prometi a Dul que não guardaria mais segredos dela. Não deveria me envolver em situações nas quais terei que fazer isso de novo. – Por que não posso contar a ela?
– Não estou dizendo que ela não é confiável. Mas ela não tem as habilidades de que precisamos, e não devemos colocar ninguém em risco a menos que seja
necessário. O Departamento não quer que nos organizemos, entende? Se acreditarmos que não somos “danificados”, estaremos afirmando que tudo o que
eles estão fazendo, os experimentos, as alterações genéticas, tudo isso, é uma perda de tempo. E ninguém quer ouvir que o trabalho da sua vida é uma farsa.
Sei bem disso. É como descobrir que as facções são um sistema artificial, projetado por cientistas para nos manter sob controle o maior tempo possível.
Ela se afasta da parede e diz a única coisa que poderia dizer para me fazer concordar:
– Se você contar a ela, estará privando-a da escolha que estou dando a você agora. Estará forçando-a a se tornar cúmplice da nossa conspiração. Ao guardar este segredo, você a estará protegendo.
Corro os dedos sobre o meu nome, gravado no painel de metal: Christopher Uckermann.
Estes genes são meus, esta bagunça é minha. Não quero arrastar Dul para dentro disso.
– Tudo bem – digo. – Vamos lá.
+ + +
Vejo o feixe da lanterna que ela carrega se mover para cima e para baixo a cada passo seu. Acabamos de pegar uma bolsa no armário de limpeza deste corredor. Ela se preparou para isso com antecedência. Ela me guia para as profundezas dos corredores subterrâneos do complexo, passando por onde os GDs se reúnem até um corredor em que não há mais eletricidade. Em determinado local, ela se agacha e corre a mão pelo chão até encontrar uma alça. Me entrega a lanterna e puxa a alça, abrindo um alçapão entre os ladrilhos.
– É uma saída de emergência – explica ela. – Eles a fizeram quando chegaram aqui, para que sempre houvesse como fugir durante uma emergência.
Ela pega um tubo preto da bolsa e o abre. Ele solta faíscas vermelhas que refletem em seu rosto. Ela o solta sobre o alçapão e ele cai alguns metros, imprimindo um traço de luz nas minhas pálpebras. Ela se senta na beira do buraco, com a mochila nos ombros, e salta.
Sei que o túnel não é muito longo, mas parece maior por causa do espaço vazio sob meus pés. Sento-me na beirada, vendo a silhueta escura dos meus sapatos contra as faíscas vermelhas, e empurro o corpo para a frente.
– Interessante – diz Nita quando aterrisso. Levanto a lanterna e ela segura o sinalizador diante de si enquanto descemos o túnel, onde mal conseguimos caminhar lado a lado, e onde mal consigo caminhar com o corpo ereto. O cheiro do túnel é pesado e rançoso, como mofo e ar estagnado. – Esqueci que você tem medo de altura.
– Bem, não tenho medo de quase nada além disso – digo.
– Não precisa ficar na defensiva! – Ela sorri. – Na verdade, sempre quis lhe perguntar sobre isso.
Salto uma poça, e as solas dos meus sapatos aderem ao chão arenoso do túnel.
– O seu terceiro medo – diz ela. – De atirar naquela mulher. Quem era ela?
O sinalizador apaga, e a lanterna que estou segurando passa a ser nossa única fonte de luz. Afasto o braço porque não quero encostar nela no escuro.
– Não era ninguém em especial – respondo. – O medo não era de atirar nela.
– Você tinha medo de atirar nas pessoas?
– Não. Eu tinha medo da minha capacidade de matar.
Ela se cala, e eu também. É a primeira vez que falo isso em voz alta, e agora percebo o quanto é estranho. Quantos outros jovens temem haver um monstro morando dentro de si? As pessoas deveriam ter medo umas das outras, não de si mesmas. Elas deveriam desejar ser como seus pais, não ter calafrios só de pensar nisso.
– Sempre quis saber o que apareceria na minha paisagem do medo. – Ela diz isso em um tom sussurrado, como uma prece. – Às vezes, sinto que há tanta coisa a temer e outras vezes sinto que não sobrou nada.
Aceno com a cabeça, embora ela não consiga me ver, e continuamos caminhando com o feixe da lanterna balançando para cima e para baixo, nossos pés raspando o chão, o ar bolorento correndo contra nós, vindo do que quer que seja que existe do outro lado.
+ + +
Depois de caminhar por vinte minutos, o corredor faz uma curva, e sinto o cheiro de ar puro, frio o bastante para me fazer tremer. Desligo a lanterna, e o luar no fim do túnel nos guia até a saída.
O túnel nos deixa em algum lugar da paisagem erma por onde passamos de caminhonete para chegar ao complexo, entre edifícios em ruínas e árvores selvagens rompendo o concreto. A alguns metros de nós há uma caminhonete estacionada, com a caçamba coberta por uma lona rasgada e esfarrapada. Nita chuta um dos pneus para testá-lo, depois se senta no banco do motorista. As chaves já estão na ignição.
– De quem é a caminhonete? – pergunto ao me sentar no banco do carona.
– É das pessoas com quem vamos nos encontrar. Pedi para elas estacionarem aqui.
– E quem são elas?
– Amigos meus.
Não sei como se orienta pelo labirinto de ruas adiante, mas ela consegue, desviando de raízes de árvores e postes de luz caídos, iluminando com os faróis os animais que saem em disparada no canto da minha visão.
Uma criatura com pernas compridas e um corpo marrom e delgado atravessa a rua à nossa frente, quase tão alta quanto os faróis. Nita pisa nos freios devagar, para não atingi-la. As orelhas do animal tremem, e seus olhos escuros e redondos nos observam com uma curiosidade cuidadosa, como uma criança.
– São lindos, não são? – pergunta ela. – Antes de chegar aqui, eu nunca tinha visto um veado.
Concordo com a cabeça. É elegante, mas hesitante, temeroso.
Nita buzina de leve, e o veado sai do caminho. Aceleramos outra vez, alcançando uma estrada larga e aberta, suspensa sobre os trilhos por onde caminhei para alcançar o complexo. Vejo suas luzes à frente: o único ponto iluminado nesta terra erma e escura.
E seguimos na direção nordeste para longe das luzes.
+ + +
Demora muito até eu ver luzes elétricas novamente. Quando vejo, é ao longo de uma rua estreita e esburacada. As lâmpadas estão penduradas em um fio suspenso entre antigos postes de luz.
– Vamos parar aqui. – Nita gira o volante, guiando a caminhonete para um beco entre dois edifícios de tijolos. Ela tira as chaves da ignição e olha para mim.
– Confira o porta-luvas. Pedi para eles deixarem armas para nós.
Abro o compartimento à minha frente. Sobre algumas embalagens velhas, há duas facas.
– Você é bom com facas? – pergunta ela.
A Audácia já ensinava seus iniciandos a atirar facas mesmo antes das mudanças no processo de iniciação realizadas por Max, antes da minha entrada.
Nunca gostei muito disso, porque me parecia uma forma de encorajar a inclinação da Audácia para a teatralidade, e não para as habilidades realmente úteis.
– Eu me viro – digo com um sorriso debochado. – Mas nunca pensei que essa habilidade fosse de fato servir para alguma coisa.
– Parece que os membros da Audácia servem para alguma coisa, afinal...
Quatro – diz Nita com um pequeno sorriso. Ela pega a faca maior, e eu pego a menor.
Estou tenso, girando sem parar o cabo da faca ao descer o beco. Acima de mim, as janelas brilham com uma luz diferente: chamas de velas e lampiões. A certa altura, quando olho para cima, vejo uma cortina de cabelos e órbitas de olhos escuros me encarando de volta.
– Tem gente vivendo aqui – digo.
– Este é o limite da margem – diz Nita. – Fica a cerca de duas horas de caro de Milwaukee, uma área metropolitana ao norte daqui. Sim, pessoas vivem aqui.
Hoje em dia, ninguém se afasta muito das cidades, mesmo quem quer se libertar
da influência do governo, como as pessoas daqui.
– Por que elas querem se libertar da influência do governo? – Sei como é viver fora do governo, porque conheço os sem-facção. Eles sempre passavam fome, com frio no inverno e calor no verão, lutando o tempo todo para sobreviver. Não é uma opção fácil. É preciso ter um bom motivo para isso.
– Porque são geneticamente danificadas – diz Nita, olhando para mim. – Pessoas geneticamente danificadas são tecnica ou legalmente iguais a pessoas geneticamente puras, mas isso só conta no papel, por assim dizer. Na realidade, elas são mais pobres, mais propensas a serem condenadas por crimes, têm menos chances de serem contratadas para bons empregos... qualquer coisa que você possa imaginar se torna um problema, e isso tem ocorrido desde a Guerra de Pureza, há mais de um século. Para quem vive na margem, pareceu melhor se afastar por completo da sociedade do que tentar corrigir o problema de dentro, como pretendo fazer.
Lembro-me do fragmento de vidro tatuado na pele dela. Quando será que ela fez a tatuagem? O que será que a levou a ter esse olhar perigoso, esse tom dramático na voz? O que a fez se tornar uma revolucionária?
– Como você planeja fazer isso?
Ela contrai a mandíbula e diz:
– Tirando um pouco do poder do Departamento.
O beco leva a uma rua larga. Algumas pessoas se esgueiram pelas extremidades, mas outras caminham bem no meio da rua, em grupos, com movimentos abruptos e garrafas nas mãos. Todos jovens. Acho que não há muitos adultos na margem.
Ouço gritos mais à frente e o som de vidro estilhaçando no chão. Uma multidão cerca duas figuras que se chutam e se socam.
Começo a caminhar na direção deles, mas Nita agarra o meu braço e me arrasta na direção de um dos edifícios.
– Esta não é a hora de bancar o herói – diz ela.
Aproximamo-nos da porta do edifício na esquina. Há um homem enorme atrás dela, girando uma faca na mão. Quando subimos os degraus da entrada, ele para de girar a faca e a joga para a outra mão, coberta de cicatrizes.
Seu tamanho, sua destreza com a arma e sua aparência suja e marcada por cicatrizes deveriam me intimidar. Mas seus olhos são como o do veado, grandes, cautelosos e curiosos.
– Viemos ver Rafi – diz ela. – Somos do complexo.
– Vocês podem entrar, mas suas facas ficam – fala o homem. Sua voz é mais aguda e leve do que eu esperava. Talvez ele pudesse ser um homem amável se este fosse um lugar diferente. Mas vejo que, nesta situação, ele não é nada amável. Aliás, não sabe nem o que isso significa.
Embora eu mesmo considere qualquer tipo de delicadeza inútil, não consigo deixar de acreditar que, se este homem foi forçado a negar sua própria natureza, algo importante se perdeu.
– Sem chance – diz Nita.
– Nita, é você? – quer saber uma voz de dentro do edifício. É uma voz expressiva e musical. O homem a quem ela pertence é baixinho e exibe um sorriso largo. Ele vem até a porta. – Não falei para você deixá-los entrar?
Entrem, entrem.
– Olá, Rafi – diz ela, visivelmente aliviada. – Quatro, este é Rafi. Ele é um homem importante na margem.
– É um prazer conhecê-lo – diz Rafi, sinalizando para que o sigamos.
Lá dentro há uma sala grande e espaçosa, iluminada por fileiras de velas e lampiões. Há móveis de madeira espalhados por toda a parte, e todas as mesas estão vazias, exceto uma.
Uma mulher está sentada ao fundo da sala, e Rafi se senta na cadeira ao seu lado. Embora eles não se pareçam (ela tem cabelos vermelhos e um físico pesado; as feições dele são escuras, e seu corpo é bem magro), eles têm um olhar idêntico, como duas rochas esculpidas pelo mesmo cinzel.
– Armas na mesa – diz Rafi.
Desta vez, Nita obedece, pousando sua faca na beirada da mesa, à sua frente.
Ela se senta. Faço o mesmo. Do outro lado, a mulher pousa uma arma de fogo sobre a mesa.
– Quem é este? – pergunta a mulher, acenando a cabeça na minha direção.
– Este é meu parceiro – diz Nita. – Quatro.
– Que tipo de nome é “Quatro”? – Ao contrário do que costuma acontecer quando me perguntam isso, seu tom não é debochado.
– O tipo que se recebe dentro de um experimento urbano – diz Nita. – Quando se tem apenas quatro medos.
Percebo que ela talvez tenha me apresentado como Quatro apenas para ter a oportunidade de dizer de onde sou. Será que isso oferece alguma vantagem a ela?
Será que me torna mais confiável para essas pessoas?
– Interessante. – A mulher tamborila o dedo indicador na mesa. – Bem,
Quatro, meu nome é Mary .
– Mary e Rafi são os líderes da divisão Centro-Oeste do grupo rebelde GD – diz Nita.
– Quando você diz “grupo”, parece que somos um bando de velhinhas jogando baralho – diz Rafi de modo suave. – Estamos mais para um levante.
Temos representantes em todo o país. Há pessoas em cada área metropolitana existente e supervisores regionais no Centro-Oeste, no Sul e no Leste.
– E quanto ao Oeste? – pergunto.
– Não mais – diz Nita baixinho. – Era muito difícil transitar no terreno e as cidades eram afastadas demais, por isso não fazia sentido morar lá depois da guerra. Hoje em dia, é uma terra selvagem.
– Então é verdade o que dizem – diz Mary, seus olhos refletindo a luz como cacos de vidro ao me encarar. – As pessoas nos experimentos urbanos realmente não sabem o que existe do lado de fora.
– É claro que é verdade. Por que elas saberiam? – diz Nita.
De repente, sinto fadiga e um peso na cabeça. Na minha curta vida, já participei de levantes demais. Dos sem-facção e agora parece que deste dos GDs também.
– Não quero interromper as apresentações – diz Mary –, mas é melhor não passarmos muito tempo aqui. Não conseguiremos manter as pessoas do lado de fora por muito tempo antes que resolvam entrar e xeretar.
– Certo – concorda Nita. Ela olha para mim. – Quatro, você pode conferir se há alguma coisa acontecendo lá fora? Preciso conversar um pouco com Mary e Rafi em particular.
Se estivéssemos sozinhos, perguntaria por que não posso ficar aqui enquanto ela conversa com eles, ou por que ela se deu o trabalho de me trazer para dentro quando eu poderia ter simplesmente montado guarda do lado de fora. Acho que ainda não concordei em ajudá-la, e por algum motivo ela devia querer que eles
me conhecessem. Então me levanto, pego a faca e caminho até a porta onde o guarda de Rafi observa a rua.
A briga do outro lado da rua terminou. Uma pessoa solitária está deitada na calçada. Por um instante, acho que ela ainda se mexe, mas depois percebo que é apenas alguém revirando seus bolsos. Não é uma pessoa, é um cadáver.
– Morto? – pergunto, e a palavra deixa minha boca como um suspiro.
– Sim. Aqui, quem não sabe se defender não dura uma noite.
– Então por que as pessoas vêm para cá? – pergunto, franzindo a testa. – Por que não voltam para as cidades?
Ele passa tanto tempo em silêncio que começo a achar que não ouviu a pergunta. Vejo o ladrão virar os bolsos do morto ao avesso e abandonar o corpo, entrando em um dos edifícios próximos. Por fim, o guarda de Rafi se pronuncia:
– Aqui, se você morre, há uma chance de que alguém se importe. Como Rafi ou um dos outros líderes – diz o guarda. – Nas cidades, se você é morto, sem dúvida, ninguém dará a mínima, não se você for um GD. O pior crime pelo qual vi um GP ser condenado após assassinar um GD foi “homicídio culposo”. É uma enganação.
– Homicídio culposo.
– Significa que o crime foi considerado um acidente – diz a voz suave e cantarolada de Rafi atrás de mim. – Ou pelo menos que não é tão grave quanto um assassinato em primeiro grau, por exemplo. Mas é claro que, oficialmente, somos todos tratados de forma igualitária, não é mesmo? Mas isso quase nunca é posto em prática.
Rafi para ao meu lado com os braços cruzados. Quando olho para ele, vejo um rei observando seu reinado, que acredita ser lindo. Olho para a rua, para o cimento quebrado e o corpo sem vida com os bolsos revirados e as janelas brilhando com a luz das chamas, e sei que a beleza que ele vê é apenas a liberdade. Liberdade de ser visto como um homem inteiro, e não como um homem danificado.
Testemunhei essa liberdade certa vez, quando Alexandra me chamou entre os sem-facção, me tirou da minha facção para me tornar uma pessoa mais completa. Mas era tudo mentira.
– Você é de Chicago? – pergunta Rafi.
Faço que sim com a cabeça, ainda encarando a rua escura.
– E agora que você está fora? Como lhe parece o mundo?
– Mais ou menos a mesma coisa – respondo. – As pessoas só estão divididas por coisas diferentes, lutando em guerras diferentes.
Os passos de Nita fazem ranger as tábuas corridas de dentro do edifício, e, quando me viro, ela está atrás de mim com as mãos enfiadas nos bolsos.
– Obrigada por marcar este encontro – diz Nita, acenando para Rafi. – Temos que ir agora.
Descemos a rua outra vez, e, quando me viro para olhar para Rafi, sua mão está levantada, acenando um adeus.
+ + +
No percurso de volta à caminhonete ouço gritos novamente, mas desta vez são gritos de criança. Passo por sons de fungadas e lamúrias e me lembro de quando era criança, agachado em meu quarto, limpando o nariz em uma das mangas da camisa. Minha mãe costumava esfregar os punhos das camisas com uma esponja antes de colocá-las para lavar. Ela nunca dizia nada.
Quando entro na caminhonete, já me sinto entorpecido por este lugar e a sua dor e estou pronto para voltar para o sonho do complexo, para o calor, a luz e a sensação de segurança.
– Ainda não consigo entender como este lugar pode ser melhor do que a vida na cidade – digo.
– Só estive uma vez em uma cidade que não é um experimento – diz Nita. – Eles têm eletricidade, mas é racionada. Cada família tem direito a apenas algumas horas por dia. Com a água, é a mesma coisa. E ocorrem muitos crimes, sempre com a desculpa dos danos genéticos. Também há policiais, mas não conseguem fazer muita coisa.
– Então, o complexo do Departamento é, sem dúvida, o melhor lugar para viver.
– Em termos de recursos, sim – diz Nita. – Mas o mesmo sistema social que existe nas cidades também existe no complexo; só é um pouco mais difícil de ver. Vejo a margem desaparecer no espelho retrovisor, e ela é diferente dos edifícios abandonados ao seu redor apenas pelo fio de luzes elétricas pendurado na rua estreita.
Passamos diante de casas escuras com janelas cobertas por tábuas, e tento imaginá-las limpas e conservadas, como devem ter sido em algum momento no passado. Elas têm quintais cercados que deviam ser podados e verdes, além de janelas que deviam brilhar à noite. Imagino que as vidas passadas dentro delas eram pacíficas e tranquilas.
– Sobre o que você veio conversar com eles exatamente? – pergunto.
– Vim solidificar nossos planos – diz Nita. Percebo, pelas luzes do painel, que há alguns cortes em seu lábio inferior, como se ela o estivesse mordendo demais.
– E eu queria que conhecessem você para verem como é alguém de dentro dos experimentos com facções. Mary costumava suspeitar que pessoas como você estavam de conluio com o governo, o que, é claro, não é verdade. Mas Rafi... ele foi a primeira pessoa a me oferecer provas de que o Departamento, o governo,
estava mentindo para nós a respeito da nossa história.
Ela faz uma pausa, como se isso fosse me ajudar a sentir o peso das suas palavras, mas não preciso de tempo, silêncio ou espaço para acreditar nela. Meu governo mentiu para mim a minha vida inteira.
– O Departamento fala de uma época áurea da humanidade, antes das manipulações genéticas, quando todos eram geneticamente puros e a paz reinava – diz Nita. – Mas Rafi me mostrou fotos antigas de guerras.
Espero um instante.
– E daí? – pergunto.
– E daí? – diz Nita, incrédula. – Se pessoas geneticamente puras causaram guerras e devastações terríveis no passado, na mesma magnitude das quais pessoas geneticamente danificadas supostamente causam agora, então qual é a base por trás da crença de que precisamos gastar tantos recursos e tanto tempo trabalhando para corrigir os danos genéticos? Qual é a utilidade dos experimentos, afinal, exceto convencer as pessoas certas de que o governo está fazendo alguma coisa para melhorar nossas vidas, mesmo que não esteja?
A verdade muda tudo. Não é por isso que Dul estava tão desesperada para exibir o vídeo de Edith Saviñón, a ponto de se aliar ao meu pai? Ela sabia que a verdade, qualquer que fosse, mudaria a nossa luta, transformaria as prioridades para sempre. E aqui, agora, uma mentira mudou a luta, uma mentira transformou as prioridades para sempre. Em vez de combater a pobreza e o crime que se alastraram por todo o país, essas pessoas decidiram trabalhar contra os danos genéticos.
– Mas por quê? Por que gastar tanto tempo e energia lutando contra algo que não é de fato um problema? – pergunto, sentindo-me frustrado de repente.
– Bem, acho que as pessoas que lutam contra isso agora o fazem porque aprenderam que esse é o problema. Isso é outra coisa que Rafi me mostrou: exemplos da propagandas lançadas pelo governo sobre danos genéticos – diz Nita. – Mas no início? Não sei. Talvez tenha sido uma mistura de vários fatores.
Preconceito contra os GDs? Controle? Controlar a população geneticamente danificada ensinando que há algo de errado com ela e controlar a população geneticamente pura ensinando que ela é saudável e completa? Essas coisas não acontecem do dia para a noite, nem por uma única razão.
Encosto a cabeça na janela fria da caminhonete e fecho os olhos. Há informações demais zunindo na minha mente, e não consigo me concentrar em uma única coisa, então desisto de tentar e me permito divagar.
Quando afinal atravessamos o túnel de volta e retorno para a minha cama, o sol está prestes a nascer, e o braço de Dul está pendurado para fora da cama outra vez, com os dedos arrastando no chão.
Sento-me de frente para ela, observando seu rosto enquanto dorme e pensando no acordo que fizemos naquela noite no Millenium Park: chega de mentiras. Se eu não contar a ela a respeito do que ouvi e vi esta noite, estarei quebrando a promessa. E por que motivo? Para protegê-la? Por Nita, uma garota que mal conheço?
Afasto o cabelo do rosto dela com delicadeza, para não acordá-la.
Ela não precisa da minha proteção. Ela é forte o bastante.
Comentem!!!
Autor(a): Fer Linhares
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Dul Peter está do outro lado do quarto, organizando livros em uma pilha e os enfiando em uma mala. Ele morde uma caneta vermelha e leva a mala para fora do quarto; ouço os livros lá dentro esbarrarem na sua perna enquanto ele caminha pelo corredor. Espero até não conseguir ouvi-los mais e então me viro para Anah& ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa