Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
No dia seguinte, pego uma das caminhonetes do complexo. As pessoas ainda estão se recuperando da perda de memória, então ninguém tenta me impedir. Dirijo pelos trilhos do trem em direção à cidade, os olhos vagando sobre o horizonte, mas sem realmente absorver a vista.
Quando alcanço os campos que separam a cidade do mundo externo, piso com força o acelerador. A caminhonete esmaga a grama morta e a neve sob os pneus, e logo o chão se transforma em asfalto no setor da Abnegação, e quase não sinto a passagem do tempo. As ruas são todas iguais, mas minhas mãos e pés sabem para onde ir, mesmo que minha mente não se preocupe em guiá-los.
Estaciono diante da casa perto da placa de “Pare”, com a calçada de entrada rachada.
A minha casa.
Atravesso a porta da frente e subo as escadas, ainda com a sensação de abafamento nos ouvidos, como se estivesse vagando para longe do mundo. As pessoas falam sobre a dor causada pela perda, mas não sei o que querem dizer com isso. Para mim, a perda causa uma dormência devastadora, e todas as sensações parecem embotadas.
Pressiono a palma da mão contra o painel que cobre o espelho no segundo andar e o empurro para o lado. Embora a luz do sol se pondo seja alaranjada, atravessando o chão e iluminando o meu rosto de baixo, nunca pareci tão pálido; minhas olheiras nunca estiveram tão evidentes. Passei os últimos dias meio acordado, meio dormindo, sem conseguir lidar muito bem com qualquer um dos dois extremos.
Ligo a máquina de cortar cabelo na tomada perto do espelho. O pente correto já está encaixado, então tudo o que preciso fazer é passar a máquina pelo cabelo, dobrando as orelhas para protegê-las da lâmina, virando a cabeça para conferir se deixei passar algum lugar na nuca. O cabelo raspado cai nos meus pés e ombros, irritando toda a pele em que encosta. Passo a mão pela cabeça para me certificar de que o corte está nivelado, mas não preciso realmente conferir.
Aprendi a fazer isso sozinho há muitos anos.
Passo muito tempo limpando o cabelo dos meus ombros e pés, depois varrendo-o para uma pá de lixo. Quando termino, paro diante do espelho outra vez e consigo ver as pontas da minha tatuagem, a chama da Audácia.
Retiro o frasco de soro da memória do bolso. Sei que um frasco vai apagar a maior parte da minha vida, mas vai afetar as minhas lembranças, e não o conhecimento. Ainda saberei escrever, falar, montar um computador, porque esses dados estão guardados em uma parte diferente do meu cérebro. Mas não me lembrarei de mais nada.
O experimento acabou. Johanna conseguiu negociar com o governo, os superiores de David, para que permitissem que os antigos membros das facções ficassem na cidade, desde que fossem autossuficientes, se submetessem à autoridade do governo e aceitassem que pessoas de fora entrassem na cidade e se juntassem a eles, tornando Chicago apenas mais uma área metropolitana, como Milwaukee. O Departamento, que costumava controlar o experimento,
agora estará encarregado de manter a ordem dentro dos limites da cidade de Chicago.
Será a única área metropolitana do país governada por pessoas que não acreditam em danos genéticos. Uma espécie de paraíso. Matthew me disse que espera que os moradores da margem entrem aos poucos na cidade, para preencher todos os seus espaços vazios, e que lá encontrem uma vida mais próspera do que aquela que deixaram para trás.
Tudo o que quero é me tornar alguém novo. Neste caso, Christopher Johnson, filho de Alexandra Johnson. Christopher Johnson pode ter levado uma vida pacata e vazia, mas pelo menos é uma pessoa inteira, e não este fragmento de pessoa que eu sou, danificado demais pela dor para ter qualquer utilidade.
– Matthew me disse que você roubou um pouco do soro da memória e uma caminhonete – diz uma voz do final do corredor. A voz de Anahí. – Devo dizer que não acreditei nele.
Acho que não a ouvi entrar na casa por conta da sensação abafada em meus ouvidos. Até a voz dela parece estar submersa em água antes de chegar até mim, e demoro alguns segundos para decifrar o que disse. Quando entendo, olho para ela e digo:
– Então, por que você veio se não acreditou nele?
– Só para ter certeza – diz Anahí, e começa a caminhar na minha direção.
– Eu também queria ver a cidade uma última vez antes que tudo mude. Me dê este frasco, Christopher.
– Não. – Fecho os dedos ao redor do frasco para protegê-lo dela. – A decisãoé minha, não sua.
Ela arregala os olhos escuros, e seu rosto fica radiante com a luz do sol. Cada fio do seu cabelo espesso e escuro brilha com uma cor alaranjada, como se estivesse em chamas.
– Essa não é a sua decisão – diz ela. – É a decisão de um covarde, e você pode ser muitas coisas, Quatro, mas não covarde. Você nunca foi covarde.
– Talvez eu seja agora – respondo de maneira passiva. – As coisas mudaram.
Não tenho problema algum com isso.
– Tem, sim.
Sinto-me tão exausto que tudo o que consigo fazer é revirar os olhos.
– Você não pode se transformar em uma pessoa que ela odiaria – diz Anahí baixinho. – E ela odiaria isso.
A raiva corre sem rumo pelo meu corpo, quente e vívida, e a sensação de abafamento em meus ouvidos desaparece, fazendo até a rua silenciosa da Abnegação parecer barulhenta. Estremeço com a força do som.
– Cale a boca! – grito. – Cale a boca! Você não sabe o que ela odiaria; você nem a conhecia, você...
– Eu sei o bastante! – responde ela com rispidez. – Sei que ela não iria querer que você a apagasse da sua memória, como se ela nem importasse para você!
Lanço-me na direção dela, prendendo o seu ombro contra a parede, e me aproximo do seu rosto.
– Nem ouse insinuar isso outra vez, ou eu...
– Ou você vai fazer o quê? – Anahí me empurra de volta com força. – Vai me machucar? Sabe, existe um nome para homens grandes e fortes que batem em mulheres: covardes.
Lembro-me dos gritos do meu pai enchendo a casa e da sua mão na garganta da minha mãe, atirando-a contra as paredes e as portas. Lembro-me de assistir a tudo da porta, com a mão agarrada ao batente. Lembro-me também de ouvir soluços baixinhos através da porta do quarto dela, e de como ela a trancava para que eu não pudesse entrar.
Afasto-me de Anahí e me encolho contra a parede, deixando que meu corpo desabe sobre ela.
– Desculpe-me – digo.
– Eu sei.
Ficamos parados por alguns instantes, apenas olhando um para o outro.
Lembro-me de tê-la detestado na primeira vez que a vi, porque ela era da Franqueza, porque as palavras simplesmente escapavam da sua boca de forma descontrolada e descuidada. Mas, com o tempo, ela me mostrou quem de fato era: uma amiga clemente, fiel à verdade, corajosa o bastante para agir. Não há como não gostar dela agora. Não há como não ver o que Dul via nela.
– Sei como é querer esquecer tudo. Também sei como é quando alguém que você ama morre sem razão e conheço a sensação de querer trocar todas as memórias dessa pessoa por apenas um momento de paz.
Ela envolve minhas mãos nas suas, e minhas mãos envolvem o frasco.
– Não passei muito tempo com Afonso, mas ele mudou a minha vida. Ele me mudou. E sei que Dul mudou você ainda mais.
A expressão dura que Anahí apresentava há um instante desaparece, e ela toca o meu ombro com delicadeza.
– Vale a pena ser a pessoa que você se tornou com ela. Se você engolir este soro, nunca mais conseguirá encontrar essa pessoa.
As lágrimas surgem outra vez, como quando vi o corpo de Dul, e, agora, a dor
chega junto, quente e afiada em meu peito. Aperto o frasco em meu punho,
desesperado pelo alívio que ele pode oferecer, a proteção da dor de cada
memória que me arranha por dentro como um animal.
Anahí coloca os braços ao redor dos meus ombros, e seu abraço apenas intensifica a dor, porque me lembra de todas as vezes que os braços finos de Dul me envolveram, hesitantes a princípio, mas depois confiantes, mais seguros dela e de mim. Ele me lembra de que nenhum abraço trará a mesma sensação novamente, porque ninguém jamais será como ela, porque ela se foi.
Ela se foi, e chorar me parece uma atitude tão inútil, tão idiota, mas é tudo o que consigo fazer. Anahí me segura em pé e não diz nada durante um longo tempo.
Acabo me afastando, mas as mãos dela continuam nos meus ombros, mornas,
ásperas e calejadas. Talvez, como a pele da mão, que endurece com o tempo depois da dor repetida, as pessoas também endureçam. Mas não quero me tornar um homem calejado.
Há outros tipos de pessoas neste mundo. Existe gente como Dul, que, depois de sofrer e ser traída, ainda conseguiu encontrar amor o bastante para sacrificar a própria vida e poupar a vida do irmão. Ou pessoas como Cara, que conseguiu perdoar a pessoa que atirou na cabeça do seu irmão. Ou como Anahí, que perdeu amigo após amigo, mas mesmo assim decidiu continuar aberta e fazer novos amigos. Diante de mim, surge outra opção, mais clara e forte do que as que dei a mim mesmo.
Abrindo os olhos, ofereço-lhe o frasco. Ela pega o soro e guarda-o em seu bolso.
– Sei que Zeke continua estranho perto de você – diz ela, jogando o braço
sobre o meu ombro. – Mas posso ser sua amiga enquanto isso. Podemos até
trocar pulseiras de melhores amigos, como as meninas da Amizade costumavam fazer.
– Acho que isso não será necessário.
Descemos a escada e saímos para a rua. O sol se escondeu atrás dos edifícios de Chicago, e, a distância, ouço o trem percorrendo os trilhos, mas estamos nos afastando deste lugar e de tudo o que ele significou pra nós. E está tudo bem.
+ + +
Existem tantas maneiras de ser corajoso neste mundo. Às vezes, coragem significa abrir mão da sua vida por algo maior do que você ou por outra pessoa.
Às vezes, significa abrir mão de tudo o que você conhece, ou de todos os que você jamais amou, por algo maior.
Mas, às vezes, não.
Às vezes, significa apenas encarar a sua dor e o trabalho árduo do dia a dia e
caminhar devagar em direção a uma vida melhor. Esse é o tipo de coragem que preciso ter agora.
Autor(a): Fer Linhares
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa