Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
Naquela tarde, volto para o dormitório, enquanto todos estão com suas famílias, e
encontro Al sentado em sua cama, encarando o espaço na parede onde o quadro-negro costuma ficar. Quatro retirou o quadro ontem para calcular nossas colocações no primeiro estágio.
– Aí está você! – digo. – Seus pais estavam te procurando. Eles te encontraram?
Ele balança a cabeça.
Sento a seu lado na cama. Minha perna tem praticamente metade da grossura da dele. Está usando bermudas pretas. Em seu joelho, há um machucado roxo e uma cicatriz.
– Você não quis vê-los?
– Não queria que eles me perguntassem como estou indo – diz ele. – Eu teria que dizer, e eles saberiam se estivesse mentindo.
– Bem... – Esforço-me para encontrar algo para dizer. – E qual é o problema em como você está indo?
Al solta uma risada forçada.
– Perdi todas as lutas desde minha vitória contra o Afonso. Não estou indo nada bem.
– Mas foi uma escolha sua. Você não poderia dizer isso a eles?
Ele sacode a cabeça.
– Meu pai sempre quis que eu viesse para cá. Quer dizer, eles diziam que queriam que eu ficasse na Franqueza, mas só porque era isso o que eles deveriam dizer. Eles sempre admiraram a Audácia, tanto meu pai quanto minha mãe. Eles não entenderiam se eu tentasse explicar.
– Ah. – Bato com os dedos em meu joelho. Depois olho para ele. – É por isso que você escolheu a Audácia? Por causa dos seus pais?
Al balança a cabeça.
– Não. Acho que foi porque... acredito que seja importante proteger as pessoas. Defendêlas. Como você fez comigo. – Ele sorri para mim. – É isso o que a Audácia deveria fazer, não é? Isso sim é coragem. Não... machucar os outros sem motivo.
Lembro-me do que Quatro me disse, que o trabalho em equipe costumava ser uma
prioridade na Audácia. Como será que era a Audácia naquela época? O que eu teria aprendido se estivesse aqui quando minha mãe ainda pertencia à facção? Talvez eu não tivesse quebrado o nariz da Molly. Ou ameaçado a irmã do Afonso.
Sinto uma pontada de culpa.
– Talvez as coisas melhorem quando a iniciação terminar – digo.
– Pena que eu talvez fique em último lugar – afirma Al. – Acho que vamos descobrir hoje à noite, não é?
Permanecemos sentados em silêncio, um ao lado do outro, por alguns instantes. É melhor estar aqui, em silêncio, do que no Fosso, assistindo a todo mundo se divertir com suas famílias.
Meu pai costumava dizer que, às vezes, a melhor maneira de ajudar alguém é simplesmente ficando a seu lado. Sinto-me bem quando faço algo que eu sei que lhe daria orgulho, como se isso compensasse todas as coisas que fiz das quais ele não se orgulharia.
– Sabia que me sinto mais corajoso quando estou a seu lado? – pergunta Al. – Como se eu pudesse realmente pertencer a este lugar, da mesma forma que você pertence.
Estou prestes a responder, quando ele estica o braço e o coloca sobre meus ombros. De repente, fico paralisada, com as bochechas ardendo.
Não queria que minhas suspeitas a respeito dos sentimentos que Al nutre por mim
estivessem certas. Mas parece que estão.
Não me apoio nele. Apenas endireito o corpo, fazendo com que seu braço caia dos meus ombros. Então, aperto as mãos uma contra a outra sobre meu colo.
– Dul, eu... – Ele hesita. Sua voz parece cansada. Olho para ele. Seu rosto está tão
vermelho quanto eu sinto que o meu deve estar, mas não está chorando. Está apenas envergonhado.
– É... desculpe – diz ele. – Eu estava tentando... é... desculpe.
Queria poder dizer-lhe que não é nada pessoal. Poderia dizer que meus pais quase nunca se davam as mãos, mesmo em nossa própria casa, e portanto me acostumei a me retrair diante de gestos afetuosos, porque eles me educaram a levar tais gestos muito a sério. Talvez, se dissesse isso, não haveria esta camada de dor sob seu rubor envergonhado.
Mas é claro que é algo pessoal. Ele é meu amigo e nada mais. O que poderia ser mais pessoal do que isso?
Eu respiro e, ao soltar o ar, forço um sorriso.
– Desculpe pelo quê? – pergunto, tentando soar o mais natural possível. Eu limpo minhas calças com a mão, embora elas não estejam sujas, e me levanto.
– É melhor eu ir embora – digo.
Ele faz que sim com a cabeça sem olhar para mim.
– Você vai ficar bem? – pergunto. – Quer dizer... por causa dos seus pais. Não por... – Corto a frase no meio. Não saberia o que dizer se continuasse falando.
– Ah, claro. – Ele acena novamente, de maneira excessivamente enfática. – Nos vemos mais tarde, Dul.
Tento não sair do dormitório rápido demais. Quando a porta se fecha atrás de mim, levo a mão à testa e sorrio um pouco. Apesar da situação constrangedora, é bom saber que alguém gosta de você.
+++
Falar das visitas das nossas famílias seria doloroso demais, então o único assunto entre os iniciandos à noite é a classificação final do primeiro estágio. Sempre que alguém perto de mim fala disso, olho fixamente para algum lugar do outro lado da sala e o ignoro.
Minha posição não pode ser tão ruim agora quanto era no começo, especialmente depois que derrotei Molly, mas talvez não seja boa o bastante para me classificar entre os dez primeiros no final da iniciação, especialmente quando os iniciandos nascidos na Audácia forem incluídos na conta.
Durante o jantar, sento-me em uma mesa de canto com Anahí, Afonso e Al. Estamos desagradavelmente perto de Peter, Drew e Molly, que se sentam à mesa ao lado. Sempre que a conversa na nossa mesa morre, ouço tudo o que eles falam. Eles estão fazendo especulações a respeito das classificações. Que surpresa!
– Você não podia ter animais de estimação? – pergunta Anahí, indignada, dando um tapa na mesa. – Por que não?
– Porque, se você parar para pensar, não faz nenhum sentido lógico – diz Afonso, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Qual é o sentido de alimentar e cuidar de um animal que apenas suja suas coisas, faz a sua casa feder e, invariavelmente, acaba morrendo?
– O sentido é... – Anahí perde o fio da meada e inclina a cabeça para o lado. – Bem, eles são divertidos. Eu tinha um buldogue chamado Chunker. Uma vez, deixamos um frango assado inteiro sobre a copa da cozinha para esfriar e, quando minha mãe foi ao banheiro, ele o puxou para o chão e o devorou inteiro, com os ossos, a pele e tudo mais. Nós morremos de rir.
– Nossa, isso realmente me fez mudar de ideia. Por que eu não iria querer morar com um animal que come toda a minha comida e destrói a minha cozinha? – Afonso balança a cabeça. – Por que você não arruma um cachorro depois da iniciação, se está se sentindo tão nostálgica?
– Porque não. – Anahí desfaz o sorriso e cutuca a batata com o garfo. – Minha simpatia por cachorros meio que já era. Depois... vocês sabem, do teste de aptidão.
Nós trocamos olhares. Todos sabemos que não devemos discutir o teste, nem mesmo agora que já escolhemos. Para eles, no entanto, a regra talvez não seja tão séria quanto para mim.
Meu coração bate loucamente. Para mim, a regra significa proteção. Ela evita que eu seja obrigada a mentir para meus amigos a respeito do resultado. Sempre que penso na palavra “Divergente”, ouço a advertência de Maite, e agora a da minha mãe também. Não conte para ninguém. É perigoso.
– Você quer dizer... matar o cachorro, não é? – pergunta Afonso.
Havia praticamente me esquecido disso. Os que tiveram como resultado a aptidão para a Audácia pegaram a faca durante a simulação e esfaquearam o cachorro quando ele atacou.
Não me admira que Christina não queira mais ter um cachorro de estimação. Eu cubro minhas mãos com as mangas da camisa e entrelaço os dedos.
– É – responde ela. – Quer dizer, vocês todos tiveram que fazer aquilo, não tiveram?
Ela olha primeiro para o Al, depois para mim. Seus olhos escuros se estreitam, e ela diz:
– Você não teve.
– Oi?
– Você está escondendo alguma coisa – afirma ela. – Está inquieta.
– O quê?
– Na Franqueza, nós aprendemos a ler a linguagem corporal das pessoas, para sabermos quando alguém está mentindo ou escondendo algo de nós – diz Al, cutucando-me com o cotovelo. Pronto. Agora as coisas entre nós já parecem normais novamente.
– Ah. – Eu coço a nuca. – Bem...
– Viu, você está se entregando de novo! – diz ela, apontando para minha mão.
Sinto como se estivesse engolindo a batida do meu próprio coração. Como conseguirei mentir sobre o resultado se eles sabem identificar quando não estou sendo sincera? Terei que controlar minha linguagem corporal. Abaixo uma das mãos, depois prendo as duas entre as pernas. Será que é isso que uma pessoa honesta faria?
Posso pelo menos falar a verdade a respeito do cachorro.
– Não, eu não matei o cachorro.
– Como o seu resultado foi Audácia se você não usou a faca? – diz Afonso, encarando-me com os olhos semicerrados.
Eu o encaro de volta e digo de maneira natural:
– Meu resultado não foi Audácia, foi Abnegação.
Isso é uma meia verdade. Maite registrou o meu resultado como Abnegação, portanto, é o que consta no sistema. Qualquer um que tenha acesso aos dados pode conferir. Eu continuo encarando Afonso por alguns segundos. Desviar o olhar seria suspeito. Depois, dou de ombros e enfio meu garfo em um pedaço de carne. Espero que eles tenham acreditado em mim. Precisam acreditar.
– Mas você escolheu a Audácia mesmo assim? – diz Anahí. – Por quê?
– Eu já disse – respondo, sorrindo debochadamente. – Por causa da comida.
Ela solta uma risada.
– Vocês sabiam que a Dul nunca tinha visto um hambúrguer antes de chegar aqui?
Ela começa a contar a história do nosso primeiro dia, e eu relaxo o corpo, embora ainda me sinta pesada. Não deveria mentir para os meus amigos. Isso cria mais uma barreira entre nós, e já há barreiras demais para o meu gosto. Barreiras como a que foi erguida quando Anahí pegou a bandeira ou quando eu rejeitei Al.
Depois do jantar, voltamos para o dormitório. É difícil não ir correndo, sabendo que as colocações estarão no quadro-negro quando chegarmos. Quero acabar logo com isso. Na porta do dormitório, Drew me empurra contra a parede para passar na minha frente. Meu ombro raspa contra a pedra, mas continuo andando.
Sou baixa demais para conseguir enxergar alguma coisa por trás da multidão de iniciandos que está em pé no fundo da sala, mas, quando consigo achar um espaço entre duas cabeças, vejo que o quadro-negro está no chão, apoiado na perna de Quatro e virado para o outro lado.
Ele está parado, com um pedaço de giz na mão.
– Para os que acabaram de chegar, vou explicar como a classificação foi determinada – diz ele. – Depois do primeiro ciclo de lutas, nós os classificamos de acordo com seus níveis de habilidade. O número de pontos que vocês receberam depende do seu nível de habilidade e do nível de habilidade do oponente que você derrotou. Vocês ganham mais pontos por demonstrarem progresso, ou quando derrotam alguém com um nível alto de habilidade. Eu não recompenso ninguém por se aproveitar dos mais fracos. Isso não passa de covardia.
Acho que seus olhos param em Peter quando ele fala esta última frase, mas Quatro desvia o olhar tão rapidamente que não há como ter certeza.
– Se você está em uma posição alta, perde pontos se for derrotado por alguém de uma posição baixa.
Molly faz um som desagradável com a boca, como um grunhido ou um murmúrio.
– O segundo estágio terá um peso maior do que o primeiro, porque está mais intimamente relacionado com a superação da covardia – continua ele. – Dito isso, é extremamente difícil atingir uma alta colocação no final da iniciação se sua colocação no primeiro estágio tiver sido baixa.
Eu troco meu pé de apoio, tentando conseguir uma visão melhor dele. Quando consigo, desvio imediatamente o olhar. Seus olhos já estão voltados para mim, provavelmente atraídos pelo meu movimento irrequieto.
– Nós anunciaremos os cortes amanhã – diz Quatro. – O fato de que vocês são transferidos e os outros iniciandos são nascidos na Audácia não será levado em consideração. Quatro de vocês poderão ficar sem facção amanhã, e nenhum deles. Ou quatro deles poderão ficar sem facção, e nenhum de vocês. Ou qualquer outra combinação entre estas duas. Dito isso, eis as suas colocações. Ele pendura o quadro em um gancho e se afasta para que possamos ver:
1. Edward
2. Peter
3. Afonso
4. Anahí
5. Molly
6. Dul
Sexta? Não é possível que eu seja a sexta colocada. Derrotar Molly deve ter me ajudado mais do que eu imaginava. E parece que perder para mim a prejudicou. Volto a ler o final da lista.
7. Drew
8. Al
9. Myra
Al não está em último, mas, a não ser que os iniciandos nascidos na Audácia tenham falhado terrivelmente em sua versão do primeiro estágio, ele já é um sem-facção.
Olho para Anahí. Ela inclina a cabeça e olha com uma cara intrigada para o quadronegro.
E ela não é a única. Um silêncio inquietante paira sobre o quarto, como se estivesse equilibrado precariamente sobre a beirada de um desfiladeiro.
De repente, ele cai.
– O quê? – pergunta Molly, irada. Ela aponta para Anahí. – Eu a derrotei! Eu a derrotei em minutos, e ela está em uma colocação melhor que a minha?
– Se quiser assegurar uma boa colocação para si mesma, eu sugiro que pare de perder para oponentes com colocações baixas – diz Quatro, entre os lamentos e murmúrios dos outros iniciandos. Ele guarda o giz no bolso e passa direto por nós, sem olhar para mim. Suas palavras me magoam um pouco, já que eu sou a oponente de colocação baixa a qual ele se refere.
Parece que Molly se dá conta disso também.
– Você – diz ela, voltando seus olhos semicerrados para mim. – Você vai pagar caro por isso.
Fico esperando que ela me ataque ou me bata, mas apenas gira o corpo para o outro lado e se retira do dormitório. Isso é ainda pior. Se ela tivesse explodido para cima de mim, sua raiva se esgotaria rapidamente depois de um ou dois socos. Mas sua saída significa que ela quer planejar algo. Sua saída significa que eu precisarei estar constantemente em alerta.
Peter não disse nada quando as posições foram reveladas, o que é algo surpreendente, dada sua inclinação para reclamar de tudo o que vá contra a sua vontade. Ele apenas caminha até seu beliche e se senta, desamarrando os cadarços de seus sapatos. Isso faz com que eu fique ainda mais inquieta. Não existe a menor chance de ele estar satisfeito com o segundo lugar.
Não o Peter.
Afonso e Anahí batem um na mão do outro, depois Afonso dá um tapinha nas minhas costas, com sua mão enorme, que é maior do que a minha omoplata.
– Olha só! Número seis, hein! – diz ele, sorrindo.
– Pode não ser o bastante – lembro a ele.
– Vai ser, não se preocupe – diz ele. – Vamos comemorar.
– Isso, vamos – diz Anah, segurando meu braço com uma mão e o braço de Al com a outra. – Vamos, Al. Você ainda não sabe como os nascidos na Audácia se saíram. Não há como ter certeza de nada ainda.
– Eu só quero me deitar – murmura ele, soltando seu braço.
Já no corredor, é fácil esquecer Al, a vingança da Molly e a calma suspeita do Peter, e é fácil também fingir que o que nos separa como amigos não existe. Mas, bem no fundo, não consigo deixar de pensar que Afonso e Anahí são meus concorrentes. Se quero batalhar para chegar aos dez primeiros colocados, terei que derrotá-los primeiro.
Só espero que eu não seja obrigada a traí-los durante o processo.
+++
Tenho dificuldade em dormir à noite. Eu costumava achar o dormitório barulhento, com todas as respirações dos outros, mas hoje ele parece silencioso. Quando fica assim, penso na minha família. Felizmente, o barulho no complexo da Audácia costuma ser constante.
Se minha mãe era da Audácia, por que ela escolheu a Abnegação? Será que ela amava o clima de paz, de rotina, de bondade, e todas estas coisas das quais sinto falta quando me permito lembrar do meu passado?
Pergunto-me se alguém aqui a conheceu quando jovem e pode me dizer como ela era.
Mesmo se alguém lembrasse, provavelmente não iria querer falar sobre o assunto. Os transferidos de facção não devem falar sobre suas antigas facções depois de se tornarem membros. Isso supostamente torna mais fácil transferir a lealdade da família para a facção e aceitar o princípio de “facção antes do sangue”.
Enterro o rosto no travesseiro. Ela pediu para que eu pedisse a Caleb para pesquisar o soro de simulação. Mas por quê? Será que isso tem algo a ver com o fato de eu ser uma Divergente, de eu estar em perigo, ou será que é algo completamente diferente? Solto um suspiro. Tenho milhares de perguntas a fazer, e ela foi embora antes que eu pudesse perguntar qualquer uma
delas. Agora, elas flutuam na minha cabeça, e duvido que conseguirei dormir antes que consiga respondê-las.
Ouço um tumulto do outro lado do quarto e levanto a cabeça do travesseiro. Meus olhos não estão acostumados com o escuro, então encaro o breu absoluto como se estivesse olhando para o lado de dentro das minhas pálpebras. Ouço os ruídos de uma confusão e de um tênis arrastando no chão. Depois, o ruído surdo de uma grande pancada.
De repente, ouço um urro que faz o meu sangue gelar e o meu cabelo arrepiar. Jogo o lençol para o lado e me levanto, com os pés descalços no chão de pedra. Ainda não consigo enxergar bem o bastante para descobrir a origem do som, mas vejo um monte escuro no chão a alguns beliches de distância. Outro urro invade meus ouvidos.
– Acendam as luzes! – grita alguém.
Caminho em direção ao som, vagarosamente, para não tropeçar em nada. Sinto-me como se estivesse em transe. Não quero ver de onde estão vindo os urros. Urros assim costumam ser acompanhados de sangue e ossos e dor; é um tipo de urro que vem do fundo do estômago e se estende por cada centímetro do corpo.
As luzes se acendem.
Edward está caído no chão ao lado da cama, com as mãos sobre o rosto. Ao redor da sua cabeça há uma poça de sangue e, entre os dedos que cobrem seu rosto, o cabo prateado de uma faca. Com o coração batendo em meus ouvidos, reconheço o objeto como uma faca de manteiga do refeitório. A navalha está cravada em seu olho.
Myra, que se encontra aos pés de Edward, solta um grito. Mais alguém grita, outra pessoa chama por socorro, e Edward continua no chão, contorcendo-se e urrando de dor. Eu me ajoelho ao lado de sua cabeça, com os joelhos dentro da poça de sangue, e apoio a mão em seu ombro.
– Fique parado – digo.
Estou calma, embora não consiga ouvir nada, como se a minha cabeça estivesse debaixo d’água. Edward se debate outra vez, e repito mais alto e com mais firmeza:
– Eu disse para você ficar parado. Respire.
– Meu olho! – grita ele.
Sinto um cheiro pútrido. Alguém vomitou.
– Tira isso do meu olho! – grita. – Arranca, arranca, arranca!
Sacudo a cabeça, depois me dou conta de que ele não consegue me ver. Uma gargalhada brota de dentro de mim. Estou histérica. Preciso reprimir a histeria se quiser ajudá-lo. Preciso me esquecer de mim mesma.
– Não – digo. – Você precisa esperar que o médico a retire. Está escutando? Deixe que o médico a retire. E respire.
– Está doendo – soluça ele.
– Eu sei que está. – Ouço a voz da minha mãe no lugar da minha. Vejo-a ajoelhada diante de mim na calçada em frente à nossa casa, enxugando as lágrimas do meu rosto no dia em que ralei o joelho. Eu tinha cinco anos.
– Vai ficar tudo bem. – Tento falar de maneira firme, como se não estivesse apenas
tranquilizando-o, mas a verdade é que estou. Não sei se vai ficar tudo bem. Na verdade, suspeito que não.
Quando a enfermeira chega e pede para eu me afastar, obedeço. Minhas mãos e meus joelhos estão ensopados de sangue. Quando olho ao redor, percebo que apenas dois dos transferidos não estão entre nós.
Drew.
E Peter.
+++
Depois que levam Edward embora, levo uma muda de roupas para o banheiro e lavo as mãos.
Anahí me acompanha e fica parada ao lado da porta, mas não fala nada, e prefiro assim.
Não há muito o que dizer.
Esfrego as linhas da minha mão e raspo a parte de baixo das unhas para limpar o sangue.
Visto as calças que eu trouxe e jogo as sujas no lixo. Pego o máximo de toalhas de papel que consigo carregar. Alguém precisa limpar a sujeira no dormitório e, como duvido que
conseguirei voltar a dormir algum dia, resolvo tomar a iniciativa.
Quando estico o braço para girar a maçaneta da porta, Anahí diz:
– Você sabe quem fez isso, não sabe?
– Sei.
– Será que devemos contar para alguém?
– Você realmente acha que alguém da Audácia vai fazer algo a respeito? – digo. – Depois que eles a penduraram do abismo? Depois que nos obrigaram a espancar uns aos outros até desmaiarmos?
Ela não diz nada.
Depois disso, passo meia hora ajoelhada no chão do dormitório, esfregando o sangue de Edward. Anahí joga fora as toalhas sujas e me traz outras limpas. Não vejo Myra; ela deve ter acompanhado Edward até o hospital.
Ninguém dorme muito aquela noite.
+++
– Sei que isso vai soar estranho – diz Afonso –, mas eu preferia não ter o dia de folga hoje.
Faço que sim com a cabeça. Sei o que ele quer dizer. Ter algo para fazer ajudaria a me distrair e, se há uma coisa de que preciso agora, é de distração.
Eu ainda não passei muito tempo sozinha com afonso, mas Anahí e Al estão cochilando no dormitório, e nenhum de nós dois queria ficar naquele quarto por muito tempo. Afonso não me disse isso, mas eu sei.
Raspo uma unha na parte de baixo de outra. Eu esfreguei bem as mãos depois de limpar o sangue de Edward, mas ainda sinto como se elas estivessem sujas. Afonso e eu andamos a esmo.
Não há para onde ir.
– Nós poderíamos ir visitá-lo – sugere Afonso. – Mas o que diríamos? “Eu não conheço você muito bem, mas lamento por você ter sido esfaqueado no olho”?
Isso não tem graça. Percebo isso assim que as palavras saem de sua boca, mas mesmo assim uma risada brota da minha garganta, e eu deixo que ela saia porque é mais fácil do que reprimi-la. Afonso me encara por um instante, depois começa a rir também. Às vezes, rir e chorar são as nossas únicas opções, e rir parece ser a melhor das duas agora.
– Desculpe – digo. – Mas é que tudo isso é simplesmente tão absurdo.
Não quero chorar pelo Edward. Pelo menos não da maneira profunda e pessoal que
choramos por um amigo ou uma pessoa amada. Quero chorar porque algo de terrível aconteceu, e eu testemunhei aquilo e não pude fazer nada para resolver a situação. Ninguém que gostaria de punir Peter tem a autoridade para fazê-lo. A Audácia conta com leis para evitar que as pessoas ataquem outras desta maneira, mas com pessoas como Eric no poder, eu duvido que tais regras sejam cumpridas.
– O mais absurdo é que, em qualquer outra facção, o fato de nós contarmos a alguém o que aconteceu seria considerado um ato de coragem. Mas logo aqui... na Audácia... a coragem não nos ajudaria em nada – digo, com mais seriedade.
– Você já leu os manifestos das facções? – pergunta Afonso.
Os manifestos das facções foram escritos logo depois que elas se formaram. Aprendemos sobre eles na escola, mas nunca li nenhum deles.
– Você já? – franzo a sobrancelha ao olhar para ele.
Depois, lembro que Afonso já memorizou o mapa da cidade por pura diversão, e digo:
– Ah, é claro que já. Esquece.
– Em um dos trechos de que me lembro do manifesto da Audácia, está escrito: “Nós acreditamos nos atos simples de bravura, na coragem que leva uma pessoa a se levantar em defesa de outra”.
Afonso suspira.
Ele não precisa dizer mais nada. Sei o que quer dizer. Talvez a Audácia tenha sido criada com boas intenções, com os ideais e os objetivos certos. Mas ela já se afastou muito deles. Dou-me conta de que o mesmo pode ser dito da Erudição. Há muito tempo, a Erudição buscava o conhecimento e a engenhosidade com o objetivo de fazer o bem. Hoje, eles buscam o conhecimento e a engenhosidade com a ganância em seus corações. Será que as outras facções sofrem do mesmo mal? Nunca havia pensado nisso antes.
No entanto, apesar da corrupção de ideais que vejo na Audácia, não conseguiria abandonar a facção. Não é apenas pelo fato de que uma vida sem facção, em total isolamento, pareça-me um destino pior do que a morte. É também porque, nos breves instantes em que amei estar aqui, percebi uma facção que vale a pena lutar para salvar. Talvez possamos voltar a ser
bravos e honráveis.
– Vamos para o refeitório comer bolo – diz Afonso.
– Vamos. – Eu sorrio.
Ao andarmos em direção ao Fosso, repito para mim mesma o trecho citado por Afonso, para não esquecê-lo.
Acredito nos atos simples de bravura, na coragem que leva uma pessoa a se levantar em defesa de outra.
É uma linda maneira de se pensar.
+++
Mais tarde, quando volto ao dormitório, o beliche de Edward está sem roupas de cama e sua gaveta está aberta e vazia. Do outro lado do quarto, o beliche de Myra está do mesmo jeito.
Quando pergunto a Anahí aonde eles foram, ela diz:
– Eles desistiram.
– Myra também?
– Ela disse que não queria continuar sem ele. E ela seria cortada de qualquer maneira. – Ela dá de ombros, como se não soubesse mais o que fazer. Se esse for realmente o motivo, sei como ela se sente. – Pelo menos eles não cortaram Al.
Al seria cortado, mas a saída de Edward o salvou. A Audácia decidiu poupá-lo até o
próximo estágio.
– Quem mais foi cortado? – pergunto.
Anahí dá de ombros novamente.
– Dois nascidos na Audácia. Não me lembro de seus nomes.
Aceno com a cabeça e olho para o quadro-negro. Alguém riscou os nomes de Edward e Myra e mudou os números ao lado dos outros nomes. Agora, Peter é o primeiro. Afonso é o segundo. Eu sou a quinta. Começamos o primeiro estágio com nove iniciandos.
Agora somos sete.
Autor(a): Fer Linhares
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Meio-dia. hora do almoço.Estou sentada em um corredor que não conhecia. Andei até aqui porque precisava sair do dormitório. Talvez, se trouxesse as minhas roupas de cama até aqui, nunca mais precisaria ver o dormitório. Talvez seja a minha imaginação, mas acho que o lugar continua cheirando a sangue, embo ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa