Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
A porta do fosso se fecha atrás de mim e estou sozinha. Desde o dia da Cerimônia de Escolha não ando por este túnel. Lembro-me de como andei por ele naquele dia, com os passos instáveis, procurando por luz. Agora caminho com firmeza. Não preciso mais de luz.
Faz quatro dias que conversei com Maite. Desde então, a Erudição publicou mais dois artigos a respeito da Abnegação. O primeiro acusava a Abnegação de reter artigos de luxo, como carros e frutas frescas, das outras facções, com o objetivo de impor sua crença de sacrifício sobre todos os outros. Quando o li, lembrei de Cara, a irmã do Afonso, acusando minha mãe de reter produtos.
O segundo artigo discutia as questões por trás da escolha dos líderes governamentais baseada em suas facções, questionando os motivos pelos quais apenas as pessoas que se definem como altruístas deveriam estar no poder. O texto promovia o retorno aos sistemas políticos de eleições democráticas do passado. Na verdade, isso faz muito sentido, o que me
faz pensar que tudo não passa de uma incitação revolucionária sendo vendida como algo racional.
Alcanço o final do túnel. A rede se estende sob o enorme buraco, da mesma maneira que estava quando a vi pela última vez. Subo as escadas até a plataforma de madeira para onde Quatro me puxou depois da minha aterrissagem e seguro a barra na qual a rede está ligada. Eu não teria conseguido erguer meu corpo apenas com os braços quando cheguei aqui, mas agora faço isso quase automaticamente, rolando em seguida para o centro da rede.
Acima de mim vejo os prédios vazios ao redor da borda do buraco e o céu. Ele está azulescuro e sem estrelas. Também não vejo a lua.
Os artigos me incomodaram, mas pude contar com meus amigos para me animar, o que é algo admirável. Quando o primeiro foi publicado, Anahí seduziu um dos cozinheiros da Audácia, e ele deixou que nós experimentássemos um pouco de massa de bolo. Depois do segundo artigo, Uriah e Marlene me ensinaram um jogo de cartas, que jogamos por duas horas seguidas no refeitório.
Mas hoje à noite quero ficar sozinha. Além disso, quero me lembrar dos motivos que me fizeram vir para cá, e por que eu estava tão determinada a ficar aqui que cheguei a pular de um prédio para isso, mesmo antes de saber o que significava pertencer à Audácia. Enfio os dedos nos buracos da rede sob o meu corpo.
Eu queria ser como os alunos da Audácia que eu via na escola. Queria ser barulhenta, ousada e livre como eles. Mas eles ainda não eram membros; estavam apenas brincando de ser da Audácia. Assim como eu, quando pulei do telhado do prédio. Não sabia o que é o medo.
Nos últimos quatro dias, enfrentei quatro medos. Em um deles, estava amarrada a um poste e Peter acendia uma fogueira sob meus pés. Em outro, eu estava me afogando novamente, mas desta vez no meio do oceano, com a água se agitando ao meu redor. No terceiro, assisti à minha família sangrar lentamente até a morte. No quarto, alguém apontava uma arma para mim e me obrigava a atirar neles. Agora, sei o que é o medo.
O vento atinge a beirada do buraco e me alcança, e eu fecho os olhos. Na minha mente, estou novamente na beirada do telhado. Desabotoo a camisa cinza da Abnegação, deixando os braços à mostra, expondo mais do meu corpo do que qualquer outra pessoa jamais havia visto.
Enrolo a camisa e jogo-a contra o peito do Peter.
Abro os olhos. Não, eu estava errada; não pulei do prédio porque queria ser como os membros da Audácia. Pulei porque já era como eles, e queria me mostrar para eles. Eu queria reconhecer uma parte de mim que a Abnegação me obrigava a esconder.
Estico as mãos acima da cabeça e seguro a rede outra vez. Flexiono os dedos do pé até o limite, tomando o máximo de espaço da rede que consigo. O céu noturno está vazio e silencioso e, pela primeira vez em quatro dias, minha mente também está.
+++
Seguro minha cabeça com as mãos e respiro profundamente. Hoje a simulação foi a mesma de ontem: alguém apontava uma arma para mim e ordenava que eu atirasse contra minha família.
Quando levanto a cabeça, vejo que Quatro está me observando.
– Eu sei que a simulação não é real – digo.
– Você não precisa me explicar isso – responde ele. – Você ama sua família e não quer atirar neles. Não há nada de absurdo nisso.
– A simulação é o único momento que tenho para vê-los – falo. Embora ele diga que não preciso, sinto que devo lhe explicar por que tenho tanta dificuldade em enfrentar esse medo.
Retorço os dedos e depois os separo. As pontas das minhas unhas estão completamente comidas. Eu as tenho roído enquanto durmo. Acordo com as mãos sangrando todos os dias. – Sinto falta deles. Você às vezes... não sente falta da sua família?
Quatro olha para o chão.
– Não – diz ele depois de um tempo. – Não sinto. Mas sei que isso não é comum.
Não, não é comum. É tão incomum que eu me esqueço da simulação em que fui obrigada a apontar uma arma para o peito de Caleb. Como será que era sua família, se ele nem liga mais para eles?
Paro com a mão na maçaneta da porta e olho para ele.
Você é como eu? Pergunto em silêncio. Você é Divergente?
Sinto que estou correndo perigo só em pensar esta palavra. Seus olhos encaram os meus e, enquanto os segundos passam silenciosamente, sua expressão vai se tornando cada vez menos severa. Ouço a batida do meu coração. Estou encarando-o a mais tempo do que deveria, mas ele devolve o olhar, e sinto que nós dois estamos tentando dizer algo que o outro não consegue ouvir, embora eu possa estar errada. Continuo encarando-o, e agora o coração bate ainda mais forte, enquanto seus olhos tranquilos me engolem inteira.
Eu abro a porta e desço o corredor apressada.
Não deveria me distrair tão facilmente com ele. Não deveria pensar em nada além da iniciação. As simulações deveriam me perturbar mais; elas deveriam estilhaçar minha mente, como têm feito com os outros iniciandos. Drew não consegue dormir e fica apenas encarando a parede em posição fetal. Al grita todas as noites por causa dos pesadelos e chora em seu travesseiro. Em comparação, meus pesadelos e unhas roídas não são nada.
Os gritos do Al sempre me acordam, e olho para as molas da cama acima da minha e me pergunto o que há de errado comigo, se continuo me sentindo forte mesmo quando todos ao meu redor estão desmoronando. Será que essa confiança que sinto tem a ver com o fato de eu ser Divergente ou será outra coisa?
Ao voltar para o dormitório, espero encontrar a mesma coisa que vi no dia anterior: alguns iniciandos deitados em suas camas, encarando o vazio. No entanto, encontro-os em pé em meio a um grupo no outro canto do quarto. Eric está diante deles com um quadro-negro nas mãos, mas ele está virado para o outro lado, então não consigo ler o que está escrito. Paro ao lado do Afonso.
– O que está acontecendo? – sussurro. Espero que não seja outro artigo, porque não sei se consigo aguentar mais hostilidades contra mim.
– Estão divulgando as colocações do segundo estágio – diz ele.
– Pensei que não haveriam mais cortes a partir do segundo estágio – digo baixinho.
– E não haverão. É apenas um tipo de relatório de como as coisas estão indo.
Eu concordo com a cabeça. Ver o quadro-negro faz com que me sinta inquieta, como se algo estivesse nadando dentro do meu estômago. Eric levanta o quadro e o pendura em um prego na parede. Quando ele se afasta, o silêncio domina o recinto, e estico o pescoço para ver o que está escrito.
Meu nome está em primeiro lugar.
As pessoas olham para mim. Continuo lendo a lista. Anahí e Afonso estão em sétimo e nono, respectivamente. Peter está em segundo, mas, quando olho para o tempo que está escrito ao lado do seu nome, percebo que minha vantagem sobre ele está suspeitamente larga.
A média de tempo dele é de oito minutos. A minha é de dois minutos e quarenta e cinco segundos.
– Parabéns, Dul – diz Afonso baixinho.
Eu balanço a cabeça, ainda encarando o quadro. Deveria estar feliz por ter ficado em primeiro lugar, mas sei o que isso significa. Se Peter e seus amigos já me detestavam antes, agora eles vão me odiar ainda mais. Agora eu sou o Edward. O próximo olho furado pode ser o meu. Ou algo ainda pior.
Procuro o nome do Al e vejo que ele está em último lugar. A aglomeração de iniciandos se dispersa lentamente, até que apenas eu, Peter, Afonso e Al permanecemos. Quero consolar Al.
Quero dizer a ele que o único motivo para eu estar indo tão bem é que há algo de diferente com meu cérebro.
Peter vira-se lentamente, emanando tensão de cada um de seus membros. Ele poderia ter apenas me encarado, mas me lança um olhar muito mais ameaçador; um olhar de puro ódio.
Caminha em direção ao seu beliche, mas no último instante arranca para cima de mim, empurrando-me contra a parede, com as mãos em meus ombros.
– Não serei desbancado por uma Careta. – Sua voz chia, e seu rosto se aproxima tanto do meu que consigo sentir seu hálito pútrido. – Como foi que você conseguiu, hein? Como diabos você conseguiu?
Ele me puxa um pouco para a frente, depois me lança contra a parede novamente. Eu travo os dentes para evitar soltar um grito, embora a dor do impacto tenha percorrido toda a minha espinha. Afonso agarra a gola da camisa de Peter e o arrasta para longe de mim.
– Deixe-a em paz – diz ele. – Só um covarde intimidaria uma garotinha desse jeito.
– Uma garotinha? – diz Peter com escárnio, arrancando a mão do Afonso de sua camisa. – Você é cego ou é só burro mesmo? Ela vai empurrá-lo para as últimas colocações e para fora da Audácia, e você perderá tudo, só porque ela sabe como manipular as pessoas e você, não.
Portanto, me procure quando você finalmente se der conta de que ela está querendo mesmo é arruinar a todos nós.
Peter sai do dormitório, furioso. Molly e Drew o seguem, com expressões de repugnância.
– Obrigada – digo, acenando a cabeça para Afonso.
– O que ele disse é verdade? – diz Will baixinho. – Você está tentando nos manipular?
– E como diabos eu faria algo assim? – brigo com ele. – Só estou fazendo o melhor que posso, como todos os outros.
– Eu não sei. – Ele ergue um pouco os ombros. – Talvez agindo como se fosse fraca, para que tenhamos pena de você, depois agindo de maneira forte, para ganhar vantagem sobre nós?
– Ganhar vantagem sobre vocês? – repito. – Sou sua amiga. Eu não faria isso.
Ele não diz nada, mas percebo que não acredita completamente em mim.
– Não seja idiota, Afonso – diz Anahí, pulando do beliche.
Ela olha para mim sem compaixão e diz:
– Ela não está atuando.
Anahí vira-se e sai do dormitório sem bater a porta. Afonso vai atrás dela. Fico sozinha no quarto com Al. A primeira e o último.
Al nunca pareceu pequeno para mim, mas agora ele parece, com seus ombros rebaixados e o corpo dobrado sobre si mesmo como um pedaço amassado de papel. Ele se senta na beirada da cama.
– Você está bem? – pergunto.
– Claro – responde ele.
Seu rosto está muito vermelho. Eu desvio o olhar. Minha pergunta foi apenas uma
formalidade. Só um cego não veria que ele não está nada bem.
– Ainda não acabou – digo. – Você pode melhorar a sua posição na tabela se você...
Perco a voz quando ele levanta o rosto e olha para mim. Nem sei o que diria a ele caso eu terminasse a frase. Não existem estratégias para o segundo estágio. Eles penetram nas profundezas do que nós realmente somos e testam qualquer coragem que encontram por lá.
– Viu? – diz ele. – Não é tão simples assim.
– Sei que não é.
– Não, acho que você não sabe – diz ele, balançando a cabeça. Seu queixo treme. – Para você é fácil. Tudo isso é fácil.
– Isso não é verdade.
– É, sim. – Ele fecha os olhos. – Fingir que não é não me ajuda em nada. Eu nem... Eu nem acredito que você possa realmente me ajudar.
Sinto como se um forte temporal caísse sobre mim e minhas roupas estivessem pesadas e encharcadas; como se eu estivesse pesada e desajeitada e inútil. Não sei se ele quis dizer que ninguém pode ajudá-lo ou que eu, especificamente, não posso ajudá-lo, mas qualquer uma dessas possibilidades me incomoda. Quero ajudá-lo. Mas sou incapaz.
– Eu... – começo a falar, tentando me desculpar, mas pelo quê? Por pertencer mais à Audácia do que ele? Por não saber o que dizer?
– Eu só... – As lágrimas que vinham se acumulando em seus olhos escorrem, molhando suas bochechas – ...quero ficar sozinho.
Eu faço que sim com a cabeça e me viro. Deixá-lo sozinho não é uma boa ideia, mas não há nada que eu possa fazer. Ouço o som da porta se fechando atrás de mim e continuo caminhando.
Passo pelo bebedouro e pelos túneis que pareciam intermináveis no dia em que cheguei aqui, mas nos quais eu mal reparo agora. Essa não é a primeira vez em que traio os ensinamentos da minha família desde que cheguei, mas, por algum motivo, sinto como se fosse. Em todas as outras vezes, eu soube o que deveria fazer, mas optei por não fazê-lo.
Desta vez, não sabia o que fazer. Será que perdi a habilidade de reconhecer o que as pessoas precisam? Será que eu perdi parte de mim mesma?
Continuo andando.
+++
Não sei como, mas encontro o mesmo corredor em que me sentei no dia em que Edward foi embora. Não queria ficar sozinha, mas acho que não tenho opção. Fecho os olhos e me concentro no chão frio de pedra sob meu corpo, enquanto respiro o ar bolorento do subsolo.
– Dul! – grita alguém do fim do corredor. Uriah corre lentamente em minha direção. Atrás dele, estão Lynn e Marlene. Lynn está segurando um bolinho.
– Pensei que a encontraria aqui. – Ele se agacha perto dos meus pés. – Fiquei sabendo que você ficou em primeiro lugar.
– Então, você queria apenas me parabenizar? – Rio de maneira debochada. – Bem,
obrigada.
– Acho que alguém deveria parabenizá-la – diz ele. – E eu acredito que seus amigos não estejam muito a fim, já que as posições deles não estão entre as melhores. Então, pare de se lamentar e venha conosco. Vou acertar um bolinho na cabeça da Marlene com um tiro.
A ideia é tão absurda que não consigo deixar de rir. Eu me levanto e sigo Uriah até o final do corredor, onde Marlene e Lynn estão esperando. Lynn cerra os olhos quando olha para mim, mas Marlene sorri.
– Por que você não saiu para comemorar? – pergunta ela. – Você já está praticamente garantida entre os dez melhores se continuar assim.
– Ela é Audácia demais para os outros transferidos – diz Uriah.
– E Abnegação demais para comemorar – comenta Lynn.
Eu a ignoro.
– Por que você quer atirar em um bolinho na cabeça da Marlene?
– Ela duvidou que eu conseguisse atingir um pequeno objeto a uma distância de trinta metros
– explica Uriah. – Apostei que ela não teria a coragem de ficar na frente quando eu tentasse.
Tudo se encaixou perfeitamente.
A sala de treinamento onde atirei com uma arma pela primeira vez não fica muito longe do meu corredor secreto. Chegamos lá em menos de um minuto, e Uriah acende a luz. O lugar está exatamente igual à última vez em que estive aqui: alvos em um lado da sala, e uma mesa com armas no outro.
– Eles realmente deixam essas coisas largadas desse jeito? – pergunto.
– Deixam, mas elas não estão carregadas. – Uriah levanta a camisa. Há uma arma presa à cintura de sua calça, logo abaixo de uma tatuagem. Observo o desenho, tentando desvendar o que é, mas ele abaixa a camisa antes que eu consiga decifrá-lo.
– Pronto – diz ele. – Vá para a frente de um dos alvos.
Marlene se afasta, saltitante.
– Você não vai realmente atirar nela, vai? – pergunto para Uriah.
– Não é uma arma de verdade – diz Lynn tranquilamente. – Ela está carregada com bolinhas de plástico. O máximo que pode acontecer é machucar um pouco o rosto dela ou talvez deixálo um pouco vermelho. Você acha que nós somos idiotas?
Marlene se posiciona em frente a um dos alvos e pousa o bolinho sobre a cabeça. Uriah fecha um olho ao mirar.
– Espere! – grita Marlene. Ela arranca um pedaço do bolinho e enfia-o em sua boca. – Pronto! – grita de novo, com a boca cheia. Ela faz um sinal de positivo com o dedão.
– Imagino que suas posições na tabela sejam boas – digo para Lynn.
Ela acena com a cabeça.
– Uriah está em segundo. Eu estou em primeiro. Marlene é a quarta.
– Você está vencendo de mim por muito pouco – diz Uriah, enquanto continua a mirar. Ele aperta o gatilho. O bolinho cai da cabeça de Marlene. Ela nem pisca.
– Nós dois ganhamos! – grita ela.
– Você sente saudade da sua antiga facção? – Lynn me pergunta.
– Às vezes – digo. – As coisas eram mais tranquilas por lá. Não era tão exaustivo.
Marlene pega o bolinho do chão e o enfia na boca.
– Que nojo! – grita Uriah.
– O objetivo da iniciação é nos reduzir ao que verdadeiramente somos. Pelo menos, é isso que diz o Eric – diz Lynn. Ela levanta uma das sobrancelhas.
– Quatro diz que o objetivo é nos preparar.
– Bem, eles não costumam se entender.
Eu concordo com a cabeça. Quatro me disse que as projeções de Eric a respeito da Audácia são equivocadas, mas eu gostaria de que ele me dissesse como, então, acha que elas deveriam ser. De vez em quando, consigo captar alguns momentos do que eu acredito que seja, como quando os membros da Audácia festejaram o meu salto do telhado do prédio, ou quando formaram uma rede com os braços para me segurar depois que desci na tirolesa, mas isso não
é o bastante. Será que ele já leu o manifesto da Audácia? Será que é nisso em que ele acredita? Nos atos simples de bravura?
A porta da sala de treinamento se abre. Shauna, Zeke e Quatro entram no exato momento em que Uriah atira em um dos alvos. A bolinha de plástico quica no centro do alvo e rola no chão.
– Bem que eu pensei ter ouvido alguma coisa daqui de dentro – diz Quatro.
– Parece que é o idiota do meu irmão – diz Zeke. – Vocês não deveriam estar aqui tão tarde. Cuidado, ou Quatro pode contar para Eric, e aí vocês vão se ferrar.
Uriah torce o nariz ao olhar para o irmão e guarda a arma de brinquedo. Marlene atravessa a sala, dando mordidas em seu bolinho, e Quatro se afasta da porta para que nós saiamos.
– Você não nos deduraria ao Eric – diz Lynn, olhando desconfiadamente para Quatro.
– Não, eu não faria isso – diz. Quando passo por ele, ele apoia a mão nas minhas costas para me guiar para fora, encostando a palma entre as minhas omoplatas. Eu me arrepio.
Espero que ele não tenha notado.
O grupo desce o corredor. Zeke e Uriah se empurram, Marlene divide o bolinho com Shauna e Lynn caminha na frente de todos. Eu começo a segui-los.
– Espere um pouco – diz Quatro. Eu me viro e olho para ele, imaginando qual versão de Quatro verei agora: o que me dá broncas ou o que escala rodas gigantes comigo. Ele esboça um sorriso, mas isso não altera seu olhar, que parece estar tenso e preocupado.
– Você sabe que aqui é o seu lugar, não sabe? – ele diz. – Seu lugar é conosco. Logo, isso tudo vai terminar, então aguente só mais um pouco, está bem?
Ele coça a parte de trás da orelha e desvia o olhar, como se estivesse envergonhado do que disse.
Eu o encaro. Sinto a batida do meu coração por todo o corpo, até mesmo nos dedos do pé.
Sinto vontade de fazer algo ousado, mas poderia também simplesmente ir embora. Não sei qual opção seria a mais inteligente, ou a mais sensata. Eu não sei nem se me importo com isso.
Estendo a mão e seguro a dele. Seus dedos se entrelaçam nos meus. Não consigo respirar.
Olho para cima, para ele, e ele para baixo, para mim. Ficamos assim por um longo tempo. Então, eu recolho a mão e corro atrás de Uriah, Lynn e Marlene. Talvez agora ele me considere idiota ou estranha. Mas talvez tenha valido a pena.
+++
Sou a primeira pessoa a chegar ao dormitório e, quando outros começam a chegar, deito-me e finjo estar dormindo. Não preciso de nenhum deles, se forem continuar a agir assim sempre que eu me sair bem em alguma coisa. Se conseguir terminar a iniciação, vou me tornar um membro da Audácia e não precisarei mais vê-los.
Não preciso mais deles, mas continuo querendo sua companhia? Cada tatuagem que fiz com eles é um lembrete da nossa amizade, e quase todas as vezes em que ri neste lugar escuro foi por causa deles. Não quero perdê-los. Mas sinto como se já tivesse perdido.
Depois de pelo menos meia hora de pensamentos intensos, deito-me de barriga para cima e abro os olhos. O dormitório está escuro agora, e todos já se deitaram. Devem estar exaustos de tanto me odiar, penso, com um sorriso torto. Além de vir da mais odiada das facções, agora também os estou humilhando.
Levanto-me para beber água. Não tenho sede, mas preciso fazer alguma coisa. Meus pés descalços fazem um som grudento no chão enquanto caminho, e encosto a mão na parede para
me orientar. Há uma lâmpada azul acesa sobre o bebedouro.
Seguro os cabelos sobre um dos ombros e me inclino. Assim que a água encosta em meus lábios, ouço vozes no final do corredor. Me esgueiro para mais perto delas, esperando que a escuridão me mantenha escondida.
– Até agora, não houve nenhum sinal disso. – A voz é de Eric. Sinal de quê?
– Bem, ainda não haveria como você ter certeza – responde alguém. Uma voz feminina; fria e familiar, mas como algo que ouvi em um sonho, e não como a voz de uma pessoa real. – O treinamento de combate não revela nada. As simulações, no entanto, são capazes de revelar quem são os rebeldes Divergentes, se é que há algum. Portanto, teremos que examinar as gravações várias vezes para ter certeza.
A palavra “Divergente” faz com que eu congele. Inclino-me para a frente, com as costas encostadas na pedra, para ver de quem é a voz que me parece tão familiar.
– Não esqueça o motivo que me levou a pedir ao Max que nomeasse você como líder – diz a voz. – Sua prioridade máxima será sempre encontrá-los. Sempre.
– Não esquecerei.
Eu me movimento alguns centímetros para a frente, esperando ainda estar escondida. Seja quem for a dona dessa voz, é ela que está no comando; ela é responsável pela posição de liderança do Eric; é ela que me quer morta. Inclino a cabeça para a frente, esforçando-me para vê-los antes que virem o corredor.
De repente, alguém me agarra por trás.
Tento gritar, mas uma mão cobre minha boca. A mão cheira a sabão e é grande o bastante para cobrir toda a parte de baixo do meu rosto. Eu me debato, mas os braços que me prendem são fortes demais, e mordo um de seus dedos.
– Ai! – grita uma voz rouca.
– Cale-se e mantenha a boca dela coberta. – A voz que diz isso é mais aguda e limpa que outras vozes masculinas. Peter.
Uma venda preta cobre meus olhos, e as mãos de outra pessoa a amarram atrás da minha cabeça. Eu me esforço para respirar. Há pelo menos duas mãos segurando meus braços e me arrastando para a frente, outra nas minhas costas, empurrando-me, e uma outra cobrindo minha boca e evitando que eu grite. Três pessoas. Meu peito dói. Não consigo lutar contra três pessoas sozinha.
– Como será o som de uma Careta implorando por piedade? – diz Peter, soltando uma risadinha. – Vamos, depressa.
Tento me concentrar na mão que cobre minha boca. Deve haver algo de diferente nela que me ajude a identificar de quem é. Descobrir sua identidade é uma maneira de me concentrar em algo. Preciso ocupar meus pensamentos ou entrarei em pânico.
A palma da mão está suada e é macia. Eu cerro os dentes e respiro pelo nariz. O cheiro de sabão me parece familiar. Erva-cidreira e sálvia. O mesmo cheiro que sinto ao redor do beliche do Al. Um peso atinge meu estômago.
Ouço o som de água se chocando contra pedras. Estamos perto do abismo. Provavelmente bem acima dele, pela altura do som. Aperto os lábios um contra o outro, para reprimir um grito. Se estamos acima do abismo, já sei o que eles pretendem fazer comigo.
– Vamos, levantem-na.
Eu me debato, e a pele áspera deles arranha a minha, mas sei que não há nada que eu possa fazer. Grito também, embora saiba que ninguém pode me ouvir daqui.
Conseguirei sobreviver até amanhã. Conseguirei.
As mãos me empurram para os lados e para cima e eu bato com as costas em algo duro e frio. Pela sua largura e curvatura, percebo que é uma grade de metal. É a grade de metal acima do abismo. Respiro com dificuldade enquanto o vapor de água atinge minha nuca. As mãos forçam minhas costas a se dobrarem sobre a grade. Meus pés saem do chão, e meus agressores são a única coisa evitando que eu caia na água.
Uma mão pesada apalpa meus peitos.
– Você tem certeza de que tem dezesseis anos, Careta? Pelo que estou sentindo, você não parece ter mais do que doze.
Os outros garotos riem.
Sinto o gosto amargo de bile na minha garganta e engulo.
– Espera aí, acho que encontrei alguma coisa! – Sua mão me aperta. Mordo a língua para não gritar. Mais risadas.
A mão do Al solta minha boca.
– Pare com isso – grita ele. Reconheço sua voz, grave e inconfundível.
Quando Al me solta, eu me debato novamente e escorrego até o chão. Desta vez, mordo com o máximo de força possível o primeiro braço que encontro. Ouço um grito e cravo os dentes ainda mais, sentindo o gosto de sangue. Algo duro atinge meu rosto. Um calor claro invade minha cabeça. A sensação seria de dor, se a adrenalina não estivesse correndo nas minhas veias como ácido.
O garoto arranca o braço da minha boca e me empurra no chão. Bato com o cotovelo na pedra e levo as mãos à cabeça para arrancar a venda dos olhos. Um pé atinge o lado do meu corpo, forçando o ar para fora dos meus pulmões. Eu arquejo, tusso e tento agarrar o nó atrás da minha cabeça. Alguém segura uma mecha dos meus cabelos e bate com minha cabeça contra algo duro. Um grito de dor explode da minha boca e fico tonta.
Desnorteada, tateio o lado da minha cabeça para encontrar a ponta da venda. Arrasto minha mão pesadamente para cima, levantando a venda, e pisco os olhos. A cena que encontro diante de mim está virada de lado, e balança para cima e para baixo. Vejo alguém correndo em nossa
direção e alguém fugindo; alguém grande: Al. Agarro a grade ao meu lado e puxo o corpo para cima, até conseguir me levantar.
Peter agarra meu pescoço e me levanta, com o dedão cravado sob meu queixo. Seu cabelo, que costuma ser limpo e arrumado, está bagunçado e gruda na testa. Seu rosto pálido está retorcido e os dentes estão cerrados, e ele me segura sobre o abismo. Manchas coloridas começam a surgir nos cantos da minha vista, amontoando-se ao redor do seu rosto, verdes e rosas e azuis. Ele não diz nada. Tento chutá-lo, mas minhas pernas são curtas demais. Meus
pulmões clamam por ar.
Ouço um grito, e ele me solta.
Estico os braços ao cair, arquejando, e minhas axilas se chocam contra a grade. Prendo os cotovelos na grade e solto um grunhido. O vapor da água toca meus calcanhares. O mundo despenca e balança ao meu redor, e alguém está no chão do Fosso: Drew, gritando. Ouço pancadas. Chutes. Gemidos.
Pisco algumas vezes e me esforço para focalizar o único rosto que consigo enxergar. Ele está retorcido de raiva. Seus olhos são azul-escuro.
– Quatro – resmungo.
Fecho os olhos e sinto suas mãos segurando meus braços, logo abaixo dos ombros. Ele me puxa por cima da grade e para junto do seu peito, me envolvendo em seus braços, depois passando o braço por trás dos meus joelhos. Eu apoio o rosto em seu ombro, depois mergulho em um silêncio vazio e repentino.
Autor(a): Fer Linhares
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Abro os olhos e vejo as palavras “Tão Somente Temei ao Senhor” pintadas em umaparede branca. Ouço mais uma vez o som de água corrente, mas desta vez o ruído vem de uma torneira, e não do abismo. Passam-se alguns segundos até que eu consiga ver os contornos das coisas ao redor com mais clareza: as linhas do baten ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa