Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
Aperto a jaqueta ao redor dos meus ombros. Faz muito tempo que não vejo o ar livre.
O sol brilha tenuamente em meu rosto, e observo a minha respiração se condensando no ar.
Pelo menos, consegui uma coisa: convencer Peter e seus amigos de que não sou mais uma ameaça. Só preciso me certificar de que amanhã, quando passar pela minha própria paisagem do medo, eu prove a eles que estão errados. Ontem, fracassar me parecia algo impossível.
Hoje, já não tenho mais tanta certeza.
Passo as mãos pelos meus cabelos. A vontade de chorar passou. Tranço-os e amarro-os com um elástico preso ao meu pulso. Sinto-me mais como eu mesma. Isso é tudo o que eu preciso fazer: lembrar-me de quem sou. E sou alguém que não permite que coisas sem importância, como garotos e experiências de quase morte, entrem no meu caminho.
Solto uma risada e balanço a cabeça. Será que sou isso mesmo?
Ouço o apito do trem. Os trilhos fazem uma volta ao redor do complexo da Audácia, depois continuam para além da minha visão. Onde será que eles começam? Onde será que terminam?
Como será o mundo para além deles? Eu me aproximo.
Quero ir para casa, mas não posso. Eric nos alertou para que não parecêssemos muito apegados aos nossos pais durante o Dia da Visita; portanto, visitar minha casa seria como trair a Audácia, e eu não posso me dar o luxo de fazer isso. Mas Eric não disse que não podíamos visitar pessoas em outras facções diferentes daquelas de onde viemos, e minha mãe realmente me pediu para visitar Caleb.
Sei que não devo sair sem ser supervisionada, mas não consigo evitar. Ando cada vez mais rápido, até que começo a correr. Balançando os braços, sigo o último vagão até que eu consiga agarrar a barra de metal e me puxar para dentro, fazendo uma careta com a pontada de dor que atravessa meu corpo moído.
Uma vez dentro do vagão, deito-me no chão ao lado da porta e vejo o complexo da Audácia se perder na distância. Não quero mais voltar, mas optar pela desistência, por me tornar uma sem-facção, seria a coisa mais corajosa que eu já fiz, e, hoje, sinto-me uma covarde.
O vento lambe meu corpo e se entranha entre meus dedos. Deixo minha mão cair para fora do vagão, permitindo que ela vá de encontro ao vento. Não posso ir para casa, mas posso encontrar parte dela. Caleb faz parte de cada memória da minha infância; é uma parte integral da minha formação.
O trem desacelera à medida que se aproxima do centro da cidade, e eu me levanto e observo os prédios menores se tornando cada vez maiores. Os membros da Erudição vivem em enormes prédios de pedra voltados para o pântano. Seguro a barra de metal e inclino o corpo para fora apenas o bastante para ver aonde os trilhos estão me levando. Eles descem até o nível do solo logo antes de se voltarem para o leste. Respiro o cheiro da calçada molhada e o ar do pântano.
O trem mergulha e desacelera, e eu salto. Minhas pernas tremem com o impacto da minha aterrissagem, e corro alguns passos para recobrar o equilíbrio. Caminho pelo meio da rua, para o sul, em direção ao pântano. O terreno vazio se estende até os limites da minha visão, uma planície marrom colidindo com o horizonte.
Eu me viro para a esquerda. Os prédios da Erudição se agigantam acima de mim, escuros e misteriosos. Como encontrarei Caleb aqui?
Os membros da Erudição mantêm registros; faz parte da natureza deles. Eles devem ter registros dos seus iniciandos. Alguém tem acesso a esses registros; só preciso encontrar essa pessoa. Examino os prédios. Pela lógica, o edifício central deve ser o mais importante. É melhor eu começar por ele.
Há membros da facção por todo lado. As normas obrigam os membros a sempre usar no mínimo uma peça de roupa azul, porque essa cor faz com que o corpo libere químicos calmantes, e “uma mente calma é uma mente lúcida”. A cor também passou a simbolizar a facção, mas parece desagradavelmente clara para mim agora. Estou acostumada à iluminação escassa e a roupas escuras.
Espero atravessar a multidão normalmente, desviando-me dos cotovelos alheios e
murmurando “com licença”, como sempre faço, mas isso não é necessário. Tornar-me alguém da Audácia fez com que eu passasse a chamar atenção. A multidão abre passagem para mim, e seus olhares me acompanham. Eu retiro o elástico do meu cabelo e solto o seu nó antes de atravessar a porta da frente.
Paro logo depois da entrada e inclino a cabeça para trás. O salão é enorme, silencioso, e cheira a páginas cobertas de poeira. O chão de madeira corrida range sob meus pés.
Prateleiras de livros cobrem as paredes em ambos os lados, mas parecem ser mais
decorativas do que qualquer outra coisa, porque há computadores nas mesas no centro da sala, e ninguém está lendo os livros. Eles encaram os monitores com olhos tensos e concentrados.
Eu deveria ter adivinhado que o edifício central da Erudição seria uma biblioteca. Um retrato na parede do outro lado do salão chama minha atenção. Ele tem duas vezes a minha altura e quatro vezes a minha largura e retrata uma mulher com olhos de um cinza líquido, por trás de um par de óculos: Jeanine. Como representante da Erudição, foi ela quem publicou aquele artigo sobre meu pai. Eu já sentia antipatia por ela desde que meu pai começou a reclamar na mesa de jantar, mas agora eu a odeio.
Sob seu retrato, há uma grande placa com as palavras: O CONHECIMENTO LEVA À PROSPERIDADE.
Prosperidade. Para mim, essa palavra tem uma conotação negativa. A abnegação usa-a para descrever a autocomplacência.
Como Caleb pôde escolher ser uma dessas pessoas? As coisas que eles fazem, as coisas que querem, estão todas erradas. Mas ele provavelmente pensa a mesma coisa a respeito da Audácia.
Caminho até a mesa que fica logo abaixo do retrato de Jeanine. O jovem sentado atrás dela não levanta a cabeça ao dizer:
– Em que posso ajudá-la?
– Estou procurando uma pessoa – digo. – Seu nome é Caleb. Você sabe onde posso
encontrá-lo?
– Não tenho permissão de divulgar informações pessoais – responde ele de maneira fria, cutucando o monitor à sua frente com os dedos.
– Ele é meu irmão.
– Não tenho a permi...
Eu dou um forte tapa na mesa, bem na sua frente, e ele acorda do seu torpor, olhando para mim por cima dos óculos. As pessoas ao redor me encaram.
– Eu disse – repito, de maneira curta e grossa – que estou procurando uma pessoa. Ele é um iniciando. Você poderia ao menos me dizer onde posso encontrá-los?
– Dulce? – diz uma voz atrás de mim.
Eu me viro e vejo Caleb com um livro na mão. Seu cabelo cresceu e se dobra sobre suas orelhas, e ele usa uma camiseta azul e um par de óculos retangulares. Embora pareça diferente e eu não possa mais amá-lo, corro até ele o mais rápido que consigo e lanço os braços ao redor de seus ombros.
– Você tem uma tatuagem – diz ele, com a voz abafada.
– Você está usando óculos – retruco. Eu me afasto e estreito o olhar. – Sua visão é perfeita, Caleb. O que você está fazendo?
– É... – Ele olha para as mesas ao redor. – Venha. Vamos sair daqui.
Saímos do prédio e atravessamos a rua. Preciso acelerar o passo para acompanhá-lo. Em frente à sede da Erudição, existe um local que costumava ser um parque. Hoje chamamos o lugar apenas de “Millenium”, e ele não é nada mais que um terreno baldio com várias esculturas de metal enferrujadas. Uma delas tem a forma de um mamute metálico abstrato, e outra se parece com um feijão e é tão grande que pareço uma anã a seu lado.
Paramos sobre o concreto ao redor do feijão de metal, onde membros da Erudição se sentam em pequenos grupos com jornais e livros. Ele tira os óculos e os enfia no bolso, depois passa a mão no cabelo, encarando-me de maneira nervosa. Parece envergonhado. Talvez eu devesse estar também. Estou tatuada, de cabelo solto e vestida com roupas apertadas. Mas isso não me envergonha.
– O que você está fazendo aqui? – pergunta ele.
– Eu queria ir para casa – digo –, e você é o mais próximo disso que eu consegui.
Ele contrai os lábios.
– Não precisa ficar tão feliz em me ver – falo.
– Ei – diz ele, pousando a mão em meu ombro. – Estou muito feliz em vê-la. Só que isso não é permitido. Existem regras.
– Eu não me importo – afirmo.
– Talvez devesse se importar. – Sua voz é gentil; ele me lança seu olhar habitual de desaprovação. – Se eu fosse você, não ia querer me meter em encrenca com sua facção.
– O que você quer dizer com isso?
Sei exatamente o que ele quer dizer. Ele vê minha facção como a mais cruel das cinco, e nada mais que isso.
– Só não quero que você se machuque. Você não precisa ficar tão irritada comigo – diz, inclinando a cabeça para o lado. – O que aconteceu com você lá?
– Nada. Não aconteceu nada comigo. – Fecho os olhos e esfrego a mão na nuca. Mesmo que eu pudesse explicar-lhe tudo o que aconteceu, não iria querer. No momento, não consigo nem juntar forças o suficiente para pensar sobre isso.
– Você acha... – Ele encara os próprios sapatos. – Você acha que fez a escolha certa?
– Eu não acho que havia uma escolha a ser feita – digo. – E você?
Ele olha ao redor. Pessoas nos encaram ao passarem por nós. Ele as encara de maneira nervosa. Ainda está inquieto, mas talvez não seja por causa da sua aparência, ou por minha causa. Talvez sejam eles. Eu seguro seu braço e o puxo para debaixo do arco do feijão de metal. Andamos por baixo da cavidade vazia. Vejo meu reflexo por toda a parte, distorcido pela curva das paredes, e interrompido aqui e ali por manchas de ferrugem e sujeira.
– O que está acontecendo? – pergunto, cruzando os braços. Eu não havia percebido as olheiras sob seus olhos. – O que há de errado?
Caleb apoia a mão na parede de metal. No seu reflexo, um dos lados da sua cabeça parece pequena e amassada, e seu braço parece estar dobrado para trás. Meu reflexo, no entanto, parece pequeno e achatado.
– Algo grande está acontecendo, Dulce. Algo está errado. – Seus olhos estão arregalados e embaciados. – Não sei o que é, mas as pessoas estão andando por aí de maneira estranha, sussurrando entre si, e Jeanine faz discursos sobre a corrupção da Abnegação o tempo todo, quase todos os dias.
– E você acredita nela?
– Não. Talvez. Eu não... – Ele balança a cabeça. – Não sei em que acreditar.
– É claro que você sabe – digo de maneira assertiva. – Você sabe quem são nossos pais.
Você sabe quem são nossos amigos. O pai da Susan, por exemplo. Você acha que ele é corrupto?
– O quanto será que eu sei realmente? O quanto eles me permitiram saber? Nós não podíamos fazer perguntas, Beatrice; nós não podíamos saber das coisas! E aqui... – Ele olha para cima e, no círculo plano e espelhado acima de nós, vejo nossos reflexos minúsculos, do tamanho de unhas. Este, eu penso, é nosso verdadeiro reflexo; é tão pequeno quanto realmente somos. Ele continua. – Aqui, a informação é livre e está sempre disponível.
– Aqui não é a Franqueza. Existem mentirosos aqui, Caleb. Existem pessoas que são tão inteligentes que sabem como manipular você.
– Você não acha que eu saberia se estivesse sendo manipulado?
– Se eles são tão espertos que fazem você acreditar, não. Não acho que você saberia.
– Você não tem ideia do que está falando – diz ele, balançando a cabeça.
– Ah, é. Como eu saberia reconhecer uma facção corrupta? Estou apenas treinando para entrar na Audácia – afirmo. – Pelo menos, sei no que estou me metendo, Caleb. Você está escolhendo ignorar o que soubemos a nossa vida inteira. Que estas pessoas são arrogantes e gananciosas e não o levarão a lugar algum.
Sua voz endurece.
– Acho que é melhor você ir embora, Dulce.
– Será um prazer – respondo. – Ah, não que você vá se importar com isso, mas mamãe me pediu para lhe falar que você deve pesquisar a respeito do soro de simulação.
– Você a viu? – Ele parece magoado. – Por que ela não...
– Porque – digo – a Erudição não permite mais a entrada de membros da Abnegação em seu complexo. Esta informação não estava disponível para você?
Eu o empurro para o lado, afastando-me da cavidade espelhada e da escultura, e começo a descer a calçada. Não devia ter saído de onde estava. O complexo da Audácia é meu lar agora. Pelo menos, lá eu sei exatamente em que pé estou, mesmo que não seja um pé muito estável.
A calçada se esvazia, e eu levanto o rosto para ver o motivo. A alguns metros de mim, dois homens da Erudição estão parados de braços cruzados.
– Com licença – diz um deles. – Você terá que nos acompanhar.
+++
Um dos homens me segue tão de perto que consigo sentir sua respiração na minha nuca. O outro me guia para dentro da biblioteca e por três corredores, até um elevador. Depois da biblioteca, o chão não é mais de madeira, e sim de ladrilhos brancos, e as paredes reluzem como o teto da sala onde fiz o teste de aptidão. O brilho delas reflete nas portas prateadas do elevador, e deixo os olhos semicerrados para conseguir enxergar.
Tento manter-me calma. Repito questões do treinamento da Audácia para mim mesma. O que devemos fazer no caso de sermos atacados por trás? Imagino-me lançando o cotovelo para trás, contra o estômago ou a virilha de alguém e, também, correndo. Gostaria de ter uma arma agora. Estes são pensamentos típicos da Audácia e se tornaram meus pensamentos também.
O que devemos fazer no caso de sermos atacados por duas pessoas ao mesmo tempo?
Sigo o homem por um corredor vazio e reluzente, até um escritório. As paredes são feitas de vidro. Acho que já sei qual facção projetou minha escola.
Uma mulher está sentada atrás de uma mesa de madeira. Eu a encaro. É o mesmo rosto que domina o espaço da biblioteca da Erudição e que está impresso em cada um dos artigos divulgados pela facção. Há quanto tempo será que odeio esse rosto? Não consigo me lembrar.
– Sente-se – diz Jeanine. Sua voz me soa familiar, especialmente quando está irritada assim.
Seus olhos, de um cinza líquido, concentram-se nos meus.
– Prefiro ficar em pé.
– Sente-se – diz ela novamente. Tenho certeza de que já ouvi sua voz antes.
Ouvi-a conversando com Eric no corredor, antes de ser atacada. Ouvi-a falando sobre os Divergentes. Mas ouvi-a outra vez antes disso; ouvi-a...
– Era a sua voz na simulação – digo. – Quer dizer, no teste de aptidão.
Ela é o perigo sobre o qual Maite e minha mãe me alertaram, o perigo de ser Divergente. E ela está sentada bem na minha frente.
– Exatamente. O teste de aptidão é de longe meu maior feito como cientista – responde. – Eu conferi os resultados do seu teste, Dulce. Parece que houve um problema. Ele não foi gravado, e os resultados tiveram que ser cadastrados manualmente. Você sabia disso?
– Não.
– Sabia que é apenas a segunda pessoa na história que teve a Abnegação como resultado e mesmo assim escolheu a Audácia?
– Não – digo, reprimindo minha surpresa. Tobias e eu somos os únicos? Mas o resultado dele foi verdadeiro e o meu foi falso. Então, na realidade, ele foi o único.
Sinto um aperto no estômago ao pensar nele. Sua singularidade não me importa agora. Ele me chamou de patética.
– O que a fez escolher a Audácia?
– O que isso importa? – Tento suavizar minha voz, mas não consigo. – Você não vai me repreender por me afastar da minha facção e procurar meu irmão? “A facção antes do sangue”, certo? – Eu faço uma pequena pausa. – Aliás, por que estou aqui no seu escritório? Você não
deveria ser uma figura importante?
Talvez isso faça com que ela desça um pouco do seu pedestal.
Ela contrai o lábio por um instante.
– Deixarei que a Audácia a repreenda – diz ela, inclinando a cadeira para trás.
Eu apoio as mãos no encosto da cadeira na qual me recusei a me sentar e fecho os dedos com força. Atrás dela há uma janela com vista para a cidade. O trem faz uma curva lenta a distância.
– Quanto ao motivo da sua presença aqui... uma das qualidades da minha facção é a curiosidade – diz ela. – E, ao examinar seus dados, percebi que havia um erro em outra simulação sua. Ela também não foi registrada. Você sabia disso?
– Como você acessou meus dados? Apenas a Audácia tem acesso a eles.
– Como fomos nós da Erudição que desenvolvemos as simulações, temos um... acordo com a Audácia, Dulce. – Ela inclina a cabeça para o lado e sorri para mim. – Só estou preocupada com o funcionamento da nossa tecnologia. Se ela falhou com você, preciso me assegurar de que não voltará a falhar no futuro, entende?
Só há uma coisa que eu entendo: ela está mentindo. Não liga para a tecnologia, mas suspeita de que haja algo de errado com os resultados do meu teste. Como os líderes da Audácia, está farejando um Divergente. E, se minha mãe quer que Caleb pesquise a respeito do soro de simulação, deve ser porque foi a Jeanine que o desenvolveu.
Mas o que há de tão ameaçador na minha habilidade de manipular as simulações? Por que isso importaria logo à representante da Erudição?
Não tenho a resposta para essas perguntas. Mas a maneira com a qual ela me olha me lembra o olhar do cão bravo na sala de aptidão: um olhar perverso e predatório. Ela quer me rasgar em pedaços. Não posso me deitar submissamente agora. Preciso me tornar um cão bravo também.
Sinto o sangue pulsando em minha garganta.
– Não sei como isso funciona – digo –, mas o líquido que injetaram em mim me causou náuseas. Talvez a pessoa que administrou a minha simulação tenha ficado distraída por pensar que eu iria vomitar e se esqueceu de registrar os dados. Também me senti enjoada depois do teste de aptidão.
– Você costuma ter o estômago sensível, Dulce? – Sua voz é como uma navalha. Ela bate com as unhas aparadas no vidro da mesa.
– Desde criança – respondo da maneira mais natural possível. Solto o encosto da cadeira e puxo-a para poder sentar. Não posso parecer nervosa, mesmo que sinta como se minhas entranhas estivessem se contorcendo dentro de mim.
– Você tem ido extremamente bem nas simulações – ela diz. – A que atribui a facilidade com que as completa?
– Sou corajosa – digo, encarando-a. As outras facções veem a Audácia de uma determinada maneira. Impertinente, agressiva, impulsiva. Pretensiosa. Devo agir da maneira que ela espera. Dou um sorriso debochado. – Sou a melhor inicianda que eles têm.
Inclino-me para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. Precisarei elaborar minha mentira um pouco mais para conseguir convencê-la.
– Você quer saber por que escolhi a Audácia? – pergunto. – Porque estava entediada. – Elaborar mais, mais. As mentiras exigem comprometimento. – Eu estava cansada de ser uma mariquinhas boazinha e queria dar o fora da Abnegação.
– Então, você não sente saudades dos seus pais? – pergunta ela com cuidado.
– Você quer saber se eu sinto saudade de levar broncas por me olhar no espelho? Saudade de me mandarem calar a boca na mesa de jantar? – Balanço a cabeça. – Não, não sinto falta deles. Eles não são mais a minha família.
A mentira queima minha garganta ao atravessá-la, ou talvez a sensação venha apenas das lágrimas que estou me esforçando para conter. Imagino minha mãe atrás de mim com um pente e uma tesoura, sorrindo discretamente ao aparar meu cabelo, e sinto vontade de gritar, em vez de insultá-la dessa maneira.
– Então, isso quer dizer... – Jeanine contrai os lábios e faz uma pausa antes de continuar a falar – ...que você concorda com os relatórios que foram divulgados a respeito dos líderes desta cidade?
Os relatórios que descrevem minha família como ditadores corruptos, gananciosos e moralistas? Os relatórios carregados de ameaças sutis e insinuações revolucionárias? Eles me causam náuseas. Saber que foi ela que os divulgou faz com que eu sinta vontade de estrangulála.
Eu sorrio.
– Plenamente – digo.
+++
Um dos lacaios de Jeanine, um homem com uma camisa de gola azul e óculos escuros, me leva de volta ao complexo da Audácia em um elegante carro prateado, de um tipo que eu nunca havia visto antes. O motor praticamente não emite ruídos. Quando pergunto ao homem a respeito do carro, ele me diz que seu funcionamento é à base de energia solar e começa a discorrer longamente a respeito de como os painéis no capô convertem luz solar em energia.
Paro de prestar atenção um minuto depois e volto o olhar para o lado de fora da janela.
Não sei o que farão comigo quando eu voltar. Suspeito de que não será nada agradável.
Imagino meus pés pendurados sobre o abismo e mordo o lábio.
Quando o motorista estaciona ao lado do prédio de vidro sobre o complexo da Audácia, Eric está me esperando na porta. Ele agarra meu braço e me puxa para dentro do prédio sem agradecer o motorista. Aperta os dedos com tanta força que tenho certeza de que ficarei roxa.
Ele se posiciona entre o vão de entrada do Fosso e eu, depois começa a estalar as juntas dos dedos. Fora isso, fica completamente parado.
Eu estremeço involuntariamente.
O som discreto de seus dedos estalando é a única coisa que consigo escutar, além da minha própria respiração, que está cada vez mais acelerada. Quando ele termina de estalar os dedos, entrelaça-os à frente do corpo.
– Bem-vinda de volta, Dul.
– Eric.
Ele caminha na minha direção, posicionando cuidadosamente um pé à frente do outro.
– O que... – Suas primeiras palavras são silenciosas – exatamente – continua ele, mais alto desta vez – você estava pensando?
– Eu... – Ele está tão perto de mim que consigo ver os buracos onde se encaixam seus piercings. – Eu não sei.
– Sinto-me tentado a chamá-la de traidora, Dul – diz ele. – Você não conhece o ditado “facção antes do sangue”?
Já vi Eric fazer e dizer coisas terríveis. Mas nunca o havia visto assim. Ele não é mais um maníaco; está completamente controlado, perfeitamente equilibrado. Cuidadoso e tranquilo.
Pela primeira vez, reconheço o que Eric realmente é: uma pessoa da Erudição disfarçada de membro da Audácia, tão genial quanto sádico; um caçador de Divergentes.
Sinto vontade de fugir.
– Você estava insatisfeita com a vida que está levando aqui? Você, por acaso, se arrepende da escolha que fez? – Eric ergue as duas sobrancelhas cobertas de metal, fazendo com que rugas se formem em sua testa. – Gostaria de que me explicasse o que a levou a trair a Audácia, a você mesma e a mim... – Ele bate contra o próprio peito – ...ao se aventurar no complexo de outra facção.
– Eu... – Respiro fundo. Ele me mataria se soubesse o que sou, tenho certeza disso. Suas mãos se fecham em punhos. Estou sozinha aqui; se algo acontecer comigo, ninguém saberá e ninguém verá.
– Se você não conseguir explicar – diz ele suavemente –, eu talvez seja obrigado a
reconsiderar sua posição na tabela. Ou, já que você parece ser tão ligada à sua antiga facção... talvez eu seja obrigado a reconsiderar a posição dos seus amigos. Talvez a pequena menina da Abnegação que há dentro de você se importe mais com isso.
A primeira coisa que penso é que ele não poderia fazer isso, que não seria justo. Depois, me dou conta de que é claro que ele poderia e que não hesitaria nem um segundo antes de fazêlo.
E ele está certo. Só de pensar que a minha atitude imprudente pode fazer com que alguém seja forçado a deixar uma facção, sinto o meu peito doer de culpa.
Tento mais uma vez:
– Eu...
No entanto, tenho dificuldade em respirar.
De repente, a porta se abre. Christopher entra no salão.
– O que você está fazendo? – pergunta ele ao Eric.
– Vá embora – diz Eric, com a voz mais alta e menos calculada. Agora ele soa mais como o Eric com quem estou acostumada. Sua expressão também muda, tornando-se mais instável e viva. Eu o encaro, impressionada com sua facilidade em mudar de uma expressão para outra, perguntando-me qual será sua estratégia por trás disso.
– Não – diz Christopher. – Ela é apenas uma garota tola. Não há necessidade de arrastá-la até aqui para um interrogatório.
– Apenas uma garota tola. – Eric solta um risada curta. – Se ela fosse apenas uma garota tola não estaria em primeiro lugar, estaria?
Christopher belisca a base de seu nariz e olha para mim pelos espaços entre seus dedos. Ele está tentando me dizer algo. Eu penso rapidamente. Qual conselho Quatro me deu recentemente? A única coisa que consigo pensar é: finja um pouco de vulnerabilidade. Isso já funcionou antes.
– Eu... Eu estava apenas com vergonha e não sabia o que fazer. – Enfio as mãos nos bolsos e encaro o chão. Belisco minha perna com tanta força que lágrimas surgem em meus olhos, e então levanto a cabeça e olho para Eric, fungando. – Eu tentei... e... – Eu balanço a cabeça.
– Você tentou o quê? – pergunta Eric.
– Me beijar – diz Christopher. – E eu a rejeitei, e ela fugiu como uma menininha de cinco anos. Realmente não podemos culpá-la de nada, a não ser de ter agido de maneira estúpida.
Nós dois esperamos.
Eric olha para mim, depois para Christopher, e começa a rir muito alto e por muito tempo, de uma maneira ameaçadora, que me arranha como uma lixa.
– Quatro não é um pouco velho demais para você, Dul? – diz ele, sorrindo novamente.
Passo a mão no rosto como se estivesse enxugando uma lágrima.
– Posso ir embora agora? – pergunto.
– Tudo bem – diz Eric –, mas você está proibida de deixar este complexo novamente sem a supervisão de alguém, entendeu? – Ele se vira para Christopher. – E você... deve se certificar de que nenhum outro transferido deixe este complexo novamente. E que ninguém mais tente beijá-lo.
Christopher revira os olhos.
– Está certo.
Deixo o salão e me encontro ao ar livre novamente, balançando as mãos para me livrar da tensão. Sento-me na calçada e abraço meus joelhos.
Não sei por quanto tempo fico sentada ali, com a cabeça abaixada e os olhos fechados, antes que a porta se abra novamente. Não sei se passaram-se vinte minutos ou uma hora.
Christopher caminha na minha direção.
Eu me levanto e cruzo os braços, esperando a bronca. Dei um tapa nele e depois me meti em encrenca com a Audácia, e sei que ele me dará uma bronca.
– O que foi?
– Você está bem? – Uma ruga aparece entre suas sobrancelhas, e ele toca suavemente a minha bochecha. Eu afasto sua mão com força.
– Bem – digo –, primeiro fui humilhada na frente de todo mundo, depois tive que bater um papo com a mulher que está tentando destruir a minha antiga facção, depois Eric quase expulsou os meus amigos da Audácia, então, acho que a resposta é sim. Parece que o meu dia está sendo maravilhoso, Quatro.
Ele balança a cabeça e olha para o prédio em ruínas à sua direita, que é feito de tijolos e não se assemelha em nada ao elegante pináculo de vidro atrás de mim. Ele deve ser muito antigo. Ninguém mais usa tijolos em construções.
– E por que você se importa tanto? Você pode ser um instrutor cruel ou um namorado preocupado. – Fico tensa ao falar a palavra “namorado”. Eu não queria ter dito isso de maneira tão leviana, mas agora é tarde demais. – Você não pode exercer os dois papéis ao mesmo tempo.
– Não sou cruel – diz ele de maneira severa. – Eu estava protegendo você hoje de manhã.
Como você acha que Peter e seus amigos idiotas reagiriam se soubessem que você e eu estamos... – Ele suspira. – Você nunca venceria. Eles diriam que sua posição é uma consequência do meu favoritismo, e não do seu próprio mérito.
Abro a boca para discutir, mas não sou capaz. Penso em algumas respostas espertas, mas as deixo de lado. Ele tem razão. Meu rosto esquenta, e eu o esfrio com as mãos.
– Você não precisava ter me insultado para provar algo a eles – digo, por fim.
– E você não precisava fugir até seu irmão só porque eu magoei você – ele diz. Ele esfrega a mão na nuca. – Além do mais, funcionou, não funcionou?
– À minha custa.
– Não imaginei que fosse afetar você dessa maneira. – Ele olha para o chão e ergue os ombros. – Às vezes, esqueço que sou capaz de ferir você. Que é possível ferir você.
Eu deslizo as mãos para dentro dos meus bolsos e balanço o corpo para frente e para trás.
Uma sensação estranha toma conta de mim, como uma fraqueza doce e dolorosa. Ele fez o que fez porque acreditava na minha força.
Em casa, Caleb era o irmão forte, porque conseguia esquecer de si mesmo, e porque todas as características que meus pais valorizavam eram naturais a ele. Ninguém jamais confiou tanto na minha força.
Eu me ergo na ponta dos pés, levanto a cabeça e beijo Christopher. Apenas os nossos lábios se tocam.
– Você é genial, sabia? – Balanço a cabeça. – Você sempre sabe exatamente o que fazer.
– Só porque tenho pensado nisso há muito tempo – diz ele, dando-me um beijo rápido em seguida. – Em como eu iria lidar com isso, se eu e você... – Ele recua um pouco e sorri. – Você me chamou de namorado, Dul?
– Não exatamente. – Eu dou de ombros. – Por quê? Você quer que eu chame?
Ele coloca as mãos em meu pescoço e levanta meu queixo com seus dedões, inclinando minha cabeça para trás para encostar sua testa na minha. Por um instante, fica parado assim, com os olhos fechados, respirando o mesmo ar que eu. Sinto a rapidez da sua respiração. Ele parece estar nervoso.
– Quero – diz ele finalmente, e seu sorriso desaparece. – Você acha que o convencemos de que você é apenas uma garota tola?
– Eu espero que sim – digo. – Às vezes, é bom ser pequena. Mas não tenho certeza de que convenci os membros da Erudição.
Os cantos da sua boca se inclinam para baixo, e ele me olha de maneira séria.
– Há algo que eu preciso lhe dizer.
– O quê?
– Agora não. – Ele olha ao redor. – Encontre-me aqui às 23h30. Não diga a ninguém aonde você está indo.
Eu concordo com a cabeça e ele se vira, partindo tão rapidamente quanto chegou.
+++
– Onde você esteve o dia todo? – pergunta Anahí quando entro no dormitório. O quarto está vazio; devem estar todos jantando. – Eu procurei você lá fora, mas não a encontrei. Está tudo bem? Você se meteu em encrenca por ter batido no Quatro?
Eu balanço a cabeça. Só de pensar em contar-lhe a verdade a respeito de onde estive faz com que me sinta exausta. Como poderia explicar o impulso que senti de simplesmente saltar em um trem e visitar meu irmão? Ou a tranquilidade bizarra na voz do Eric enquanto ele me interrogava? Ou o próprio motivo que me levou a estourar e agredir Christopher?
– Eu só precisava sair um pouco. Caminhei por um longo tempo. E não, não estou
encrencada. Ele gritou comigo, eu me desculpei... só isso.
Ao falar, tento manter meus olhos fixos nos dela e as mãos paradas ao lado do meu corpo.
– Que bom, porque preciso lhe dizer uma coisa.
Ela olha para a porta atrás de mim, depois fica na ponta dos pés, examinando todos os beliches, provavelmente para conferir se ainda há alguém por perto. Depois, apoia as mãos nos meus ombros.
– Você consegue ser uma garota por alguns segundos?
– Eu sou sempre uma garota. – Franzo as sobrancelhas.
– Você sabe o que quero dizer. O tipo de garota bobinha e chatinha.
Enrolo uma mecha de cabelo no meu dedo e falo:
– Tá.
Ela abre um sorriso tão grande que consigo ver a sua fileira de dentes de trás.
– Afonso me beijou – diz ela.
– O quê? – pergunto, surpresa. – Quando? Como? O que aconteceu?
– Você até que consegue ser uma garota! – Ela ajeita o corpo, tirando a mão dos meus ombros. – Bem, logo depois do seu pequeno escândalo, nós almoçamos e fomos caminhar perto dos trilhos de trem. Nós estávamos apenas conversando sobre... não lembro sobre o que estávamos conversando. De repente, ele apenas parou, aproximou o rosto de mim, e... me beijou.
– Você sabia que ele gostava de você? – pergunto. – Quer dizer, dessa maneira.
– Não! – Ela ri. – E a melhor parte é que foi apenas isso o que aconteceu. Nós simplesmente continuamos andando e conversando, como se nada tivesse acontecido. Bem, até eu resolver beijá-lo.
– Há quanto tempo você sabe que gosta dele?
– Não sei. Acho que eu nem sabia. Mas aí algumas pequenas coisas... como a maneira que ele me abraçou durante o funeral, ou a maneira como ele abre as portas para mim, como se eu fosse uma menina, e não simplesmente alguém que poderia espancá-lo.
Eu solto uma risada. Sinto uma vontade súbita de contar para ela a respeito do Christopher e de tudo o que aconteceu entre nós. Mas os mesmos motivos que Christopher me deu para ter fingido que nós não estávamos juntos faz com que eu me contenha. Não quero que ela pense que a minha posição na tabela tem qualquer coisa a ver com minha relação com ele.
Por isso, apenas digo:
– Estou feliz por você.
– Obrigada. Estou feliz também. E pensei que ainda demoraria um tempo até conseguir me sentir assim novamente... você sabe.
Ela senta-se na beirada da cama e olha ao redor do dormitório. Alguns dos iniciandos já arrumaram as malas. Logo, iremos nos mudar para apartamentos do outro lado do complexo.
Aqueles que forem escalados para trabalhos governamentais vão se mudar para o prédio de vidro acima do Fosso. Não precisarei me preocupar mais com a possibilidade do Peter me atacar à noite. Não precisarei mais ver a cama vazia do Al.
– Mal consigo acreditar que já está quase no fim. Parece que acabamos de chegar aqui. E, no entanto, parece... que eu não vejo a minha casa há anos.
– Você sente saudades dela? – Eu me apoio na armação da cama.
– Sinto. – Ela dá de ombros. – Mas algumas coisas são iguais. Quer dizer, as pessoas de onde eu venho são tão barulhentas quanto as daqui, e isso é bom. Mas lá as coisas são mais fáceis. Você sempre sabe em que pé está com todo mundo, porque todos simplesmente dizem.
Não existe nenhuma... manipulação.
Eu concordo com cabeça. A Abnegação me preparou para esse aspecto da vida na Audácia.
Os membros da Abnegação não são manipuladores, mas também não são diretos.
– Mas não sei se teria conseguido passar pela iniciação da Franqueza. – Ela balança a cabeça. – Em vez das simulações, lá eles aplicam testes com detectores de mentiras. O dia inteiro, todos os dias. E no teste final... – Ela torce o nariz. – Elas fazem você beber um negócio chamado soro da verdade e se sentar na frente de todos, depois fazem perguntas completamente pessoais. A teoria é que, se você botar para fora todos os seus segredos, nunca mais terá vontade de mentir a respeito de nada. Se seus piores segredos já foram revelados,
por que não ser sincero de uma vez? Não sei quando foi exatamente que juntei tantos segredos. Ser Divergente. Meus medos. O que realmente sinto em relação a minha família e meus amigos, Al, Christopher. A iniciação da Franqueza desencavaria coisas que nem mesmo as simulações são capazes de tocar; ela me
destruiria.
– Parece horrível.
– Eu sempre soube que não ficaria na Franqueza. Quer dizer, tento ser sincera, mas há coisas que você simplesmente não quer que as outras pessoas saibam. Além disso, gosto de ter controle sobre minha mente.
Todos gostam, afinal.
– Bom, deixa para lá – diz ela. Abre o criado-mudo do lado esquerdo de nosso beliche e uma mariposa sai voando de dentro do móvel, batendo suas asas brancas em direção ao rosto dela. Anahí solta um grito tão alto que quase me mata do coração, e começa a estapear o próprio rosto.
– Tira ela de mim! Tira ela de mim!
A mariposa voa para longe.
– Ela já foi embora! – digo. Depois começo a rir. – Você tem medo de... mariposas?
– Elas são nojentas. Aquelas asas aveludadas e os corpinhos idiotas de inseto... – Ela estremece.
Eu continuo rindo. Rio tanto que preciso me sentar e botar a mão sobre a barriga.
– Não tem graça! – grita ela. – Bem... talvez tenha. Um pouco.
+++
Quando encontro Christopher naquela noite, ele não fala nada; apenas segura minha mão e me guia em direção à linha do trem.
Puxa o corpo para dentro de um vagão com uma facilidade impressionante quando o trem passa, depois me puxa para dentro também. Meu corpo se choca com o dele, e meu rosto encosta em seu peito. Seus dedos deslizam pelos meus braços e ele me segura pelos cotovelos enquanto o trem sacode sobre os trilhos de aço. Vejo o edifício de vidro sobre o complexo da
Audácia diminuir atrás de nós.
– O que você precisava me falar? – grito para que ele consiga me ouvir em meio ao uivo do vento.
– Ainda não.
Ele desliza até o chão e me puxa junto, sentando-se com as costas apoiadas na parede enquanto eu o encaro, com as pernas para o lado, sobre o chão empoeirado. O vento solta alguns fios do meu cabelo e joga-os sobre meus olhos. Ele encosta as palmas das mãos no meu rosto, deslizando os dedos indicadores para trás das minhas orelhas, e puxa minha boca até a sua. Ouço o guincho dos trilhos enquanto o trem desacelera, o que quer dizer que devemos estar
nos aproximando do centro da cidade. O ar está frio, mas seus lábios e suas mãos estão quentes. Ele inclina a cabeça e beija a pele logo abaixo do meu queixo. Ainda bem que o ruído do vento está tão alto, abafando o som do meu suspiro.
O vagão sacode, fazendo com que eu perca o equilíbrio, e me apoio com a mão para não cair. De repente, vejo que estou apoiada em seu quadril. Sinto seu osso pressionando a palma da minha mão. Deveria tirá-la dali, mas não quero. Ele me disse certa vez para ser corajosa, mas, embora eu já tenha ficado imóvel enquanto facas eram lançadas na minha direção e tenha pulado do topo de um prédio, nunca pensei que precisaria de coragem nos momentos pequenos da minha vida. E preciso. Eu me movo, jogando uma das pernas sobre as dele e me sentando em seu colo e, com o coração quase saltando pela garganta, eu o beijo. Ele levanta um pouco o corpo e sinto suas mãos em meus ombros. Seus dedos deslizam pela minha espinha e um arrepio segue-os até a parte de baixo das minhas costas. Ele abre um pouco o zíper da minha jaqueta, e aperto as mãos contra minhas pernas para evitar que elas tremam. Eu não deveria estar nervosa. É apenas o Christopher.
O vento frio atinge minha pele exposta. Ele afasta o rosto e examina cuidadosamente as tatuagens logo acima da minha clavícula. Seus dedos deslizam sobre elas e ele sorri.
– Pássaros – diz. – São gralhas? Sempre me esqueço de perguntar.
Tento sorrir de volta para ele.
– São corvos. Um para cada membro da minha família. Você gosta deles?
Ele não responde. Puxa-me para mais perto, encostando os lábios em cada um dos pássaros.
Eu fecho os olhos. Seu toque é leve e delicado. Uma sensação pesada e quente preenche meu corpo, como se alguém estivesse derramando mel dentro de mim, retardando meus pensamentos. Ele encosta a mão no meu rosto.
– Odeio ter que dizer isso, mas nós precisamos levantar agora.
Eu balanço a cabeça e abro os olhos. Nós dois nos levantamos, e ele me puxa até a porta aberta do trem. O vento não está tão forte agora que o trem desacelerou. Já passa da meia-noite, então todas as luzes das ruas estão apagadas, e os prédios erguem-se como mamutes acima da escuridão, depois mergulham novamente para dentro dela. Tobias levanta a mão e aponta para um conjunto de edifícios, tão longe que parecem ser do tamanho de uma unha. Eles são o único ponto luminoso no mar de escuridão ao redor de nós. É o complexo da Erudição, mais uma vez.
– Parece que os regulamentos da cidade não se aplicam a eles porque costumam deixar as luzes acesas a noite inteira.
– Será que ninguém mais notou? – pergunto, franzindo a sobrancelha.
– Tenho certeza de que sim, mas não fizeram nada para impedi-los. Talvez seja porque não querem criar um problema por algo tão insignificante. – Tobias dá de ombros. – Mas comecei a me perguntar o que eles estão fazendo para precisar tanto de luzes à noite.
Ele se vira para mim, reclinando-se na parede.
– Há duas coisas que você precisa saber a meu respeito. A primeira é que, de uma maneira geral, sou extremamente desconfiado com as pessoas – diz ele. – Eu costumo esperar o pior delas. E a segunda coisa é que sou mais habilidoso com computadores do que as pessoas costumam imaginar.
Eu aceno com a cabeça. Ele já havia dito que seu outro trabalho é com computadores, mas ainda tenho dificuldade em imaginá-lo sentado em frente a um monitor o dia inteiro.
– Há algumas semanas, antes do treinamento começar, eu estava no trabalho e encontrei uma maneira de acessar os arquivos protegidos da Audácia. Parece que a Audácia não é tão eficiente quanto a Erudição quando o assunto é segurança – diz ele. – E eu descobri arquivos que pareciam planos de guerra. Ordens pouco veladas, listas de suprimentos, mapas. Coisas desse tipo. E os arquivos haviam sido enviados pela Erudição.
– Guerra? – Afasto o cabelo que cai sobre meu rosto. Escutar o meu pai falando mal da Erudição durante toda a minha vida fez com que eu os encarasse com desconfiança, e minhas experiências no complexo da Audácia fizeram com que eu encarasse todas as autoridades, e até mesmo os seres humanos de uma maneira geral, com desconfiança. Portanto, não fico surpresa em ouvir que uma facção esteja planejando uma guerra.
Lembro-me do que Caleb me disse mais cedo. Algo grande está acontecendo, Dulce. Eu encaro Tobias.
– Guerra contra a Abnegação?
Ele segura minha mão, entrelaçando os dedos nos meus, e diz:
– É, contra a facção que controla o governo.
Um peso cai sobre meu estômago.
– O propósito de todos aqueles relatórios era levantar suspeitas contra a Abnegação – diz
ele, com os olhos fixos na cidade ao redor do vagão. – Parece que a Erudição agora quer acelerar o processo. Não tenho a menor ideia do que fazer a respeito... ou até mesmo do que qualquer um poderia fazer.
– Mas por que a Erudição uniria suas forças às da Audácia? – pergunto.
De repente, me dou conta de algo. Algo que me atinge como um soco na boca do estômago e me remói por dentro. A Erudição não tem armas, e eles não sabem lutar, mas a Audácia sabe.
Encaro Christopher com os olhos arregalados.
– Eles vão nos usar – digo.
– Eu me pergunto como eles planejam nos convencer a lutar – diz ele.
Eu disse ao Caleb que a Erudição sabe como manipular as pessoas. Eles poderiam
convencer alguns de nós a lutar com informações falsas, apelando para a ganância ou de muitas outras maneiras. Mas a Erudição é tão meticulosa quanto manipuladora, e sei que eles não deixariam isso ao acaso. Teriam que se assegurar de que todos os seus pontos fracos estarão protegidos. Mas como?
O vento empurra meu cabelo para a frente do meu rosto, fazendo com que minha visão fique entrecoberta, mas eu não me preocupo em afastá-lo.
– Eu não sei – digo.
Autor(a): Fer Linhares
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Frequentei as cerimônas de iniciação da Abnegação durante todos os anos da minha vida, menos este. É um evento tranquilo. Os iniciandos, que passam trinta dias fazendo trabalhos comunitários antes de se tornarem verdadeiros membros, sentam-se uns ao lado dos outros em um banco. Um dos membros mais velhos lê ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa