Fanfic: Divergente, Insurgente, Convergente (Vondy adp.) | Tema: Série Divergente
Christopher
Oo edifícios em ruínas no setor da Audácia parecem portais para outros mundos. À minha frente, vejo a Pira perfurando o céu.
A pulsação nas pontas dos meus dedos marca a passagem dos segundos. O ar nos meus pulmões ainda parece quente, embora o verão esteja quase acabando. Eu costumava correr e lutar o tempo todo, porque me preocupava com meus músculos. Agora que meus pés já me salvaram muitas vezes, não consigo mais separar os atos de correr e lutar do que eles de fato são: uma forma de escapar do perigo, uma maneira de sobreviver.
Alcanço o edifício e desacelero antes da entrada para recuperar o fôlego. Acima de mim, painéis de vidro refletem a luz em todas as direções. Em algum lugar lá cima, encontra-se a cadeira na qual me sentei durante a simulação deataque, perto da mancha de sangue do pai de Dul na parede. Em algum lugar lá em cima, a voz de Dul penetrou a simulação que me controlava, e senti a mão dela no meu peito, trazendo-me de volta à realidade.
Abro a porta da sala da paisagem do medo e a tampa da pequena caixa preta que estava no meu bolso de trás. Olho para as seringas guardadas dentro dela.
Esta é a caixa que sempre usei, com acolchoado ao redor das seringas; é um símbolo de algo doentio dentro de mim, ou de algo corajoso.
Posiciono a agulha sobre minha garganta, fecho os olhos e aperto o êmbolo. A caixa preta faz um barulho ao desabar no chão, mas, quando abro os olhos, ela já desapareceu.
Estou no telhado do edifício Hancock, perto da tirolesa onde os membros da Audácia desafiam a morte. As nuvens estão escurecidas pela chuva, e o vento enche minha boca quando a abro para respirar. À minha direita, o cabo da tirolesa arrebenta e é lançado para trás, estilhaçando as janelas abaixo.
Meu olhar se fixa na beirada do telhado, até isso ser tudo o que vejo. Consigo ouvir a minha própria respiração, apesar do sopro do vento. Eu me forço a caminhar até a beirada. A chuva desaba com força sobre os meus ombros e a minha cabeça, empurrando-me para baixo. Jogo o meu peso para a frente apenas um pouco e caio, cerrando os dentes para impedir meus gritos, abafados e sufocados pelo meu próprio medo.
Depois de aterrissar, não tenho nem um segundo para descansar antes de as paredes de madeira começarem a se fechar à minha volta, esbarrando em minhas costas, depois na minha cabeça e nas minhas pernas. Claustrofobia.
Aproximo os braços do peito, fecho os olhos e tento não entrar em pânico.
Penso em Eric em sua paisagem do medo, vencendo o terror com uma respiração profunda e lógica. E em Dul, conjurando armas do nada para atacar seus piores pesadelos. Mas não sou Eric e não sou Dul. O que sou? Do que preciso para superar meus medos?
Sei a resposta, é claro: preciso negar a eles o poder de me controlar. A caixa range, depois quebra, e as tábuas desabam no chão de concreto. Fico em pé sobre elas, no escuro.
Amah, meu instrutor de iniciação, ensinou-me que nossas paisagens do medo estão sempre em transformação, modificando-se de acordo com nosso humor e se alterando com os pequenos sussurros dos nossos pesadelos. A minha foi sempre a mesma até algumas semanas atrás. Até que provei a mim mesmo que poderia vencer meu pai. Até que descobri alguém que morria de medo de perder.
Não sei o que verei a seguir.
Fico esperando por um bom tempo, e nada muda. A sala continua escura, o chão continua frio e duro, meu coração continua batendo mais rápido do que o normal. Resolvo conferir o relógio e descubro que ele está no pulso errado.
Costumo usá-lo no pulso esquerdo, não no direito, e a pulseira não é cinza, mas preta.
De repente, noto pelos eriçados nos meus dedos que não estavam lá antes. Os calos nas juntas dos meus dedos desapareceram. Olho para baixo e noto que estou vestindo calça e camiseta cinzentas; minha cintura é mais grossa e meus ombros mais finos.
Levanto os olhos e encaro um espelho que agora se encontra à minha frente.
O rosto que me encara de volta é o de Víctor.
Ele pisca para mim, e sinto os músculos ao redor do meu olho se contraindo ao mesmo tempo, involuntariamente. De repente, os braços dele, ou meus, ou nossos, se lançam na direção do espelho e entram nele, agarrando o pescoço do meu reflexo. Mas então o espelho desaparece, e as mãos dele, minhas, nossas, estão agarradas ao nosso próprio pescoço. Pontos escuros surgem em minha visão. Desabamos no chão, e as mãos apertam o meu pescoço mais forte do que ferro.
Não consigo pensar. Não consigo pensar em uma forma de sair dessa.
Por instinto, solto um grito. O som vibra contra as minhas mãos. Imagino-as como de fato são: grandes, com dedos delgados e juntas calejadas, das horas que passei golpeando o saco de pancadas. Imagino que o meu reflexo é como água correndo sobre a pele de Víctor, substituindo cada pedaço dele por um pedaço meu. Transformo-me na minha própria imagem.
Eu estou sobre o concreto, arfando.
Minhas mãos tremem, e corro os dedos sobre meu pescoço, meus ombros, meus braços. Só para ter certeza.
Eu disse para Dul, no trem a caminho do encontro com Alexandra, há algumas semanas, que Víctor continuava na minha paisagem do medo, mas que havia mudado. Passei muito tempo pensando sobre isso; era algo que invadia meus pensamentos toda noite antes de eu dormir e clamava pela minha atenção toda vez que eu acordava. Sabia que ainda tinha medo dele, mas de forma diferente.
Eu não era mais uma criança com medo da ameaça que meu temível pai representava para minha segurança. Eu era um homem com medo da ameaça que ele representava para o meu caráter, para o meu futuro, para a minha identidade.
Mas sei que até esse medo não se compara ao seguinte. Apesar de saber o que está por vir, preferiria abrir a minha veia e drenar todo o soro do meu corpo a ver aquilo novamente.
Um círculo de luz aparece no concreto diante de mim. Uma das mãos com os dedos dobrados em garra se estica para o feixe de luz, seguida pela outra, depois uma cabeça de cabelos loiros e ensebados. A mulher tosse e se arrasta até o centro, centímetro por centímetro. Tento me mover na direção dela, para ajudá-la, mas estou paralisado.
A mulher vira o rosto na direção da luz, e vejo que é Dul. Sangue escorre dos seus lábios e se acumula em seu queixo. Seus olhos injetados encontram os meus, e ela diz, sem fôlego:
– Socorro.
Ela tosse algo vermelho no chão, e me jogo em sua direção, sabendo, de alguma maneira, que se eu não alcançá-la logo a vida deixará seus olhos. Mãos agarram os meus braços, ombros e peito, formando uma jaula de pele e ossos, mas continuo lutando para alcançá-la. Tento arranhar as mãos que me seguram, mas acabo apenas arranhando a mim mesmo.
Grito o nome dela, e ela tosse outra vez, agora cuspindo mais sangue. Ela grita por ajuda, e eu grito por ela, mas não ouço nada. Não sinto nada, a não ser o meu próprio batimento cardíaco, o meu próprio terror.
Ela desaba no chão, imóvel, e revira os olhos. É tarde demais.
A escuridão desaparece. As luzes voltam. Pichações cobrem as paredes da sala da paisagem do medo, e, diante de mim, vejo as vitrines espelhadas da sala de observação. Nos cantos, câmeras registram cada sessão, tudo exatamente onde deve estar. Meu pescoço e minhas costas estão cobertos de suor. Enxugo o rosto com a barra da camisa e caminho até a porta do outro lado da sala, deixando para trás a minha caixa preta com a seringa e a agulha.
Não preciso mais reviver os meus medos. Tudo o que preciso fazer agora é tentar superá-los.
+ + +
Sei, por experiência, que exibir segurança, por si só, pode fazer uma pessoa conseguir entrar em um lugar proibido. Como as celas no terceiro andar da sede da Erudição.
Mas parece que não é o caso agora. Um homem sem-facção me para com a ponta da sua arma antes que eu consiga alcançar a porta, e fico nervoso, engasgo.
– Aonde está indo?
Seguro a ponta da arma e a afasto do meu braço.
– Não aponte isto para mim. Estou aqui seguindo ordens de Alexandra. Vou visitar um prisioneiro.
– Não estou sabendo de nenhuma visita fora do horário hoje.
Baixo o tom da minha voz para que ele ache que está escutando um segredo.
– Isso é porque ela não quer que a visita seja registrada.
– Chuck! – grita alguém da escada acima de nós. É Therese. Ela faz um gesto com a mão ao descer a escada. – Deixe-o passar. Ele é dos nossos.
Aceno com a cabeça para Therese e sigo em frente. Os destroços foram limpos do corredor, mas as lâmpadas quebradas não foram substituídas, então atravesso trechos escuros, como fileiras de machucados na pele, em direção à cela certa.
Quando alcanço o corredor norte, não vou direto à cela, mas à mulher que está no outro extremo. Ela está na meia-idade, os cantos dos seus olhos estão caídos e a boca, contraída. Sua expressão faz parecer que tudo a exaure, inclusive eu.
– Olá – cumprimento. – Meu nome é Christopher Uckermann. Estou aqui para recolher um prisioneiro, segundo ordens de Alexandra Johnson.
Sua expressão não muda quando ela ouve o meu nome, então, por alguns instantes, não sei ao certo se serei obrigado a deixá-la inconsciente para pegar o que quero. Ela retira uma folha de papel amassada do bolso e a alisa sobre a palma da mão esquerda. Nela, há uma lista com nomes de prisioneiros e o número correspondente de suas celas.
– Nome? – pergunta ela.
– Caleb Prior. 308A.
– Você é o filho de Alexandra, não é?
– Sou. Digo... sim. – Ela parece ser o tipo de pessoa que gosta de respostas
mais formais.
Ela me guia até uma porta de metal cru, com o código 308A. Para que será que ela era usada quando nossa cidade não precisava de tantas celas? Ela digita um código, e a porta se abre.
– Imagino que devo fingir que não sei o que você está prestes a fazer – diz ela.
Ela deve achar que vim matá-lo. Decido deixar que continue acreditando nisso.
– Sim.
– Faça-me um favor e elogie o meu trabalho para Alexandra. Não quero fazer tantos turnos noturnos. Meu nome é Drea.
– Pode deixar comigo.
Ela amassa o papel outra vez e o enfia no bolso ao se afastar. Mantenho a mão na maçaneta até que ela alcança seu posto novamente e se vira de lado, sem olhar para mim. Parece que já fez isso algumas vezes. Quantas pessoas já desapareceram destas celas sob as ordens de Alexandra?
Entro na cela. Caleb Saviñón está sentado a uma mesa de metal, debruçado sobre um livro, com o cabelo amassado em um dos lados da cabeça.
– O que você quer? – pergunta ele.
– Odeio ter que dizer isso... – Faço uma pausa. Há algumas horas, decidi como queria lidar com isso. Quero ensinar uma lição a Caleb. – Para falar a verdade, não odeio tanto assim. Sua execução foi adiantada algumas semanas. Para esta noite.
Isso chama a sua atenção. Ele gira na cadeira e me encara, os olhos agitados
e esbugalhados, como uma presa diante do seu predador.
– Isso é uma piada?
– Não sou muito bom em contar piadas.
– Não. – Ele balança a cabeça. – Não, ainda tenho algumas semanas, não vai ser hoje à noite, não...
– Se calar a boca, darei uma hora para você se acostumar com a informação.
Se não calar a boca, vou deixá-lo inconsciente e atirar em você no beco aqui fora
antes que acorde. Faça a sua escolha agora.
Assistir a alguém da Erudição processando uma ideia é como olhar as engrenagens de um relógio, todas girando, mexendo, ajustando, trabalhando juntas para exercer uma função específica, que, neste caso, é tentar entender a sua morte iminente.
Os olhos de Caleb se voltam para a porta atrás de mim, e ele agarra a cadeira, girando o corpo e a jogando na minha direção. As pernas da cadeira me atingem com força, o que me detém por tempo o bastante para ele conseguir escapar pela porta.
Sigo-o pelo corredor, com os braços doendo onde a cadeira me atingiu. Sou mais rápido do que ele. Dou um tranco em suas costas, e ele cai no chão de cara, sem se proteger. Com os joelhos em suas costas, junto os punhos dele e os prendo em uma algema de plástico. Ele geme, e, quando o levanto, seu nariz está vermelho, encharcado de sangue.
Os olhos de Drea encontram os meus por apenas um segundo, depois se desviam.
Arrasto-o pelo corredor, não pelo caminho por onde vim, mas por outro, em direção à saída de emergência. Descemos um lance estreito de escadas, onde os ecos dos nossos pés se sobrepõem, dissonantes e vazios. Quando alcanço o fim da escada, bato na porta de saída.
Zeke a abre com um sorriso idiota no rosto.
– Não teve problemas com a guarda?
– Não.
– Imaginei que seria fácil passar por Drea. Ela não liga para nada.
– Parece que ela já fez vista grossa outras vezes.
– Isso não me surpreenderia. Este é Saviñón?
– O próprio.
– Por que ele está sangrando?
– Porque é um idiota.
Zeke me oferece uma jaqueta preta com um símbolo dos sem-facção
costurado ao colarinho.
– Não sabia que idiotice fazia o nariz das pessoas sangrarem por conta própria.
Coloco a jaqueta sobre os ombros de Caleb e fecho um dos botões em frente ao seu peito. Ele evita os meus olhos.
– Acho que é um novo fenômeno – digo. – O beco está vazio?
– Eu me certifiquei disso. – Zeke me oferece a sua arma. – Cuidado, ela está carregada. Agora, seria ótimo se você me batesse, para que eu pareça mais convincente quando disser para os sem-facção que você a roubou de mim.
– Está me pedindo para bater em você?
– Ah, até parece que você nunca teve vontade. Bate logo, Quatro.
Eu gosto mesmo de bater nas pessoas. Gosto da explosão de poder e energia e da sensação de que sou invencível porque consigo machucá-las. Mas odeio essa parte de mim mesmo, porque é a parte que está mais despedaçada.
Zeke se prepara, e eu cerro o punho.
– Anda logo, seu maricote.
Decido mirar no queixo, que é duro demais para quebrar, mas mesmo assim vai ficar bem roxo. Eu o golpeio, acertando bem onde quero. Zeke geme, cobrindo o rosto com as mãos. Sinto uma pontada de dor subindo pelo meu braço e sacudo a mão.
– Ótimo. – Zeke cospe na parede do prédio. – Bem, acho que é isso.
– Acho que sim.
– Acho que não o verei novamente, não é? Quer dizer, sei que os outros talvez
voltem, mas você... – Ele se interrompe, mas retoma o raciocínio instantes depois. – Parece que você vai ficar feliz em deixar isso tudo para trás, só isso.
– É, acho que você tem razão. – Encaro os meus sapatos. – Tem certeza de que não quer vir?
– Não posso. Shauna não pode ir de cadeira de rodas para onde vocês vão, e não posso abandoná-la, entende? – Ele toca o queixo de leve, para sentir como
está. – Não deixe Uri beber muito, está bem?
– Claro – respondo.
– Não, é sério – diz ele, e sua voz fica mais grave, como acontece sempre que ele resolve falar sério para variar. – Prometa que vai cuidar dele.
Sempre foi muito claro para mim, desde que os conheci, que Zeke e Uriah eram mais próximos do que a maioria dos irmãos. Eles perderam o pai ainda jovens, e suspeito que desde então Zeke tenha agido como pai e irmão. Não consigo imaginar como deve estar sendo para Zeke vê-lo deixar a cidade, ainda mais agora que Uriah está tão fragilizado pela morte de Marlene.
– Prometo – digo.
Sei que devo ir, mas preciso me demorar um pouco neste momento, sentindo o seu significado. Zeke foi um dos primeiros amigos que fiz na Audácia após sobreviver à iniciação. Depois, ele trabalhou na sala de controle comigo, observando as câmeras e projetando programas idiotas que enunciavam palavras no monitor ou faziam jogos de adivinhação com números. Ele nunca perguntou o meu verdadeiro nome ou o motivo de um iniciando classificado em primeiro lugar acabar trabalhando nos setores de segurança e instrução, não em uma posição de liderança. Ele não exigiu nada de mim.
– Vamos nos abraçar de uma vez – diz ele.
Mantendo uma das mãos agarrada com firmeza ao braço de Caleb, abraço Zeke com o braço livre, e ele faz o mesmo.
Quando nos afastamos, puxo Caleb em direção ao beco, mas não consigo
resistir e grito para Zeke:
– Vou sentir saudades.
– E eu de você, docinho!
Ele sorri, e seus dentes brancos se sobressaem na meia-luz. Eles são a última
coisa que vejo dele antes de virar a esquina e começar a correr na direção do trem.
– Você está indo a algum lugar – diz Caleb, esbaforido. – Você e algumas outras pessoas.
– Sim.
– Minha irmã vai com você?
A pergunta dele acorda uma raiva instintiva dentro de mim, que não será saciada por palavras duras e insultos. Ela só pode ser saciada pelo tapa forte que dou na orelha dele. Ele estremece e se encolhe, preparando-se para um segundo golpe.
Será que era assim que eu ficava quando meu pai me batia?
– Ela não é sua irmã – digo. – Você a traiu. Você a torturou. Arrancou dela a única família que ela ainda tinha. E... para quê? Porque queria guardar os segredos de Jeanine, queria ficar na cidade, são e salvo? Você é um covarde.
– Não sou um covarde! – diz Caleb. – Eu sabia que se...
– Vamos voltar ao acordo no qual você mantém a sua boca calada.
– Tudo bem – concorda ele. – Mas para onde você está me levando, afinal? Você pode me matar aqui mesmo, não é?
Faço uma pausa. Uma forma se move na calçada atrás da gente, seguindo pelo canto de minha visão. Eu me viro e saco a arma, mas a silhueta desaparece dentro de um beco.
Sigo em frente, puxando Caleb e tentando escutar passos atrás de mim.
Pisamos em cacos de vidro. Fico de olho nos edifícios escuros e nas placas de rua penduradas dos postes como folhas de outono que demoraram demais para cair.
Então, alcanço a estação onde vamos pegar o trem e conduzo Caleb por um lance de degraus de metal, subindo até a plataforma.
Vejo o trem se aproximando a distância, terminando de atravessar a cidade.
Houve um tempo em que os trens eram como uma força da natureza para mim, algo que continuava seguindo o seu caminho, independentemente do que fizéssemos dentro dos limites da cidade. Algo pulsante, vivo e poderoso. Agora que conheço os homens e mulheres que os guiam, um pouco desse mistério desapareceu. Mas o que os trens significam para mim nunca desaparecerá. Meu primeiro ato como membro da Audácia foi saltar para dentro de um, e desse dia em diante eles representaram uma fonte de liberdade, oferecendo-me o poder de me mover dentro deste mundo, um contraponto à época em que eu me sentia tão confinado dentro do setor da Abnegação e da casa que me serviu de prisão.
Quando o trem se aproxima, corto a algema de plástico dos pulsos de Caleb com meu canivete e seguro seu braço com firmeza.
– Você sabe fazer isso, não sabe? – pergunto. – Entre no último vagão.
Ele desabotoa a jaqueta e a joga no chão.
– Está bem.
Partimos correndo de uma das pontas da plataforma sobre as tábuas gastas do chão, acompanhando a porta aberta do vagão. Ele não faz menção de agarrar a barra do trem, então eu o empurro na direção dela. Ele tropeça, depois a agarra e puxa o corpo para dentro do último vagão. Estou ficando sem tempo. A plataforma está prestes a acabar. Agarro a barra e lanço meu corpo para dentro do trem, enquanto meus músculos absorvem o puxão para a frente.
Encontro Dul dentro do vagão, com um sorriso pequeno e torto no rosto. Sua jaqueta preta está fechada até o pescoço, emoldurando seu rosto na escuridão.
Ela agarra o meu colarinho, me puxa para perto e me beija. Ao se afastar, ela diz:
– Sempre adorei ver você fazendo isso.
Eu sorrio.
– Este era o seu plano? – pergunta Caleb atrás de mim. – Que ela estivesse
presente quando você me matasse? Isso é...
– Matar? – pergunta Dul, sem olhar para o irmão.
– É, deixei que ele pensasse que estava sendo levado para a execução – digo alto o bastante para que ele consiga ouvir. – Sabe, mais ou menos como ele fez com você na sede da Erudição.
– Eu... era mentira? – O rosto de Caleb, iluminado pela lua, está em choque.
Percebo que os botões da sua camisa estão nas casas erradas.
– É – confirmo. – Na verdade, acabei de salvar a sua vida.
Ele começa a dizer algo, mas eu o interrompo.
– Talvez você não queira me agradecer ainda. Vamos levar você junto com a gente. Para o lado de fora da cerca.
O lado de fora da cerca: o lugar que ele tanto tentou evitar, que o fez se voltar contra a própria irmã. De qualquer maneira, parece-me um castigo pior do que a morte. A morte é tão rápida, tão certa. No lugar para onde estamos indo, nada é certo.
Ele parece assustado, mas não tanto quanto pensei que ficaria. De repente, acho que compreendo suas prioridades: em primeiro lugar, vem a sua vida; em segundo, seu conforto em um mundo criado por ele mesmo; em algum lugar depois dessas coisas, estão as vidas das pessoas que deveria amar. Ele é o tipo de pessoa desprezível que não tem a menor ideia do quanto é desprezível, e insultálo não vai mudar isso; nada vai. Não estou com raiva, apenas pesado, impotente.
Não quero mais pensar nele. Seguro a mão de Dul e a puxo para o outro lado do vagão a fim de que possamos assistir à cidade desaparecer atrás de nós.
Ficamos parados lado a lado diante da porta aberta, cada um segurando uma das barras. Os edifícios criam um padrão escuro e escarpado no horizonte.
– Nós fomos seguidos – digo.
– Tomaremos cuidado – responde ela.
– Onde estão os outros?
– Nos vagões da frente. Achei melhor ficarmos sozinhos. Ou tanto quanto possível.
Ela sorri para mim. Estes são nossos últimos momentos na cidade. É claro que é melhor passá-los sozinhos.
– Realmente vou sentir saudade deste lugar – diz ela.
– É mesmo? – pergunto. – Estou feliz por estarmos indo embora.
– Você não vai sentir saudade de nada? Não tem nenhuma memória boa? – Ela me dá uma cotovelada.
– Está bem. – Eu sorrio. – Tem algumas coisas.
– Alguma que não tenha a ver comigo? – pergunta ela. – Ok, isso soou um pouco egocêntrico. Mas você entendeu.
– Claro, acho que sim – digo, dando de ombros. – Quer dizer, consegui ter uma vida diferente na Audácia, um nome diferente. Eu me transformei no Quatro, graças ao meu instrutor de iniciação. Foi ele quem me deu o apelido.
– Sério? – Ela inclina a cabeça. – Por que não o conheci?
– Ele morreu. Era Divergente. – Dou de ombros mais uma vez, apesar de não me sentir indiferente. Amah foi a primeira pessoa a perceber que eu era Divergente. Mas não conseguiu esconder a própria Divergência e morreu por isso.Ela toca o meu braço com gentileza, mas não diz nada. Eu me movo, desconfortável.
– Viu? – digo. – Há muitas lembranças ruins aqui. Mal posso esperar para ir embora.
Sinto-me vazio, não por tristeza, mas por alívio. Toda a tensão está fluindo para fora do meu corpo. Evely n está naquela cidade, e Marcus, toda a tristeza, os pesadelos, as lembranças ruins e as facções, que me prenderam dentro de uma versão única de mim mesmo. Aperto a mão de Dul.
– Olhe – digo, apontando para um conjunto distante de edifícios. – Lá está o setor da Abnegação.
Ela sorri, mas seus olhos estão marejados, como se uma parte dormente dela lutasse para se libertar, derramando-se de seus olhos. O trem chia sobre os trilhos, uma lágrima escorre pela bochecha de Dul, e a cidade desaparece na
escuridão.
Autor(a): Fer Linhares
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Dul O trem Desacelera quando nos aproximamos da cerca, um sinal da condutora de que devemos saltar em breve. Christopher e eu estamos sentados na porta do vagão, que se move devagar sobre os trilhos. Ele coloca o braço ao redor do meu ombro e encosta o nariz no meu cabelo, respirando fundo. Olho para ele, para a sua clavícula, que es ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 13
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manoellaaguiar_ Postado em 09/10/2016 - 14:43:04
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 06/10/2016 - 22:22:23
Continua ❤️
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manoellaaguiar_ Postado em 04/10/2016 - 18:30:16
Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 21:14:21
Brigadaaa! Continuaaa
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manoellaaguiar_ Postado em 03/10/2016 - 15:53:35
Continuaaa! Faz maratonaaa!
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manoellaaguiar_ Postado em 02/10/2016 - 14:43:08
Eu nunca li o livro convergente pq eu N TO preparada pra aquele negocio que acontece hahahah! Já comprei a quase um ano e ainda tá guardado lá, um dia eu pego ele!
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manoellaaguiar_ Postado em 01/10/2016 - 19:20:24
Tá maravilhosaaa! Já vi esse filme e adorei! E tô amando a adaptação agora
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manoellaaguiar_ Postado em 28/09/2016 - 22:35:16
Cnttt
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manoellaaguiar_ Postado em 27/09/2016 - 20:38:10
Continuaaa
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Postado em 25/09/2016 - 21:24:21
Aaai deusss! Continuaaa