Fanfic: O conto esquecido | Tema: Fantasia
Tenho certeza de que todo mundo tem medo de alguma coisa. Uns tem medo de ratos, outros de baratas, alguns até mesmo do escuro. Sei que existem medos que não conseguimos controlar, um medo absurdamente exagerado, conhecido como fobia. Algumas são mais comuns como a acrofobia, que é a fobia de altura e a aicmofobia, que é a fobia de agulhas de injeção.
Claro que toda fobia deve ser respeitada, mas existem algumas que me fazem rir às vezes.
Anatidaefobia é o medo de ser observado por patos, desculpe-me caso você tenha essa fobia, porém eu realmente acho estranho. Quer dizer, é só um pato, aquele bichinho bonitinho que faz "quaaaac", qual é o problema de ser observado por ele? Só consigo imaginar alguém ligando para a polícia e, após a breve pergunta do policial, a pessoa respondendo com a voz trêmula:
-Estou no parque e os patos estão me observando. Socorro, tenho medo do que eles podem fazer comigo com todas aquelas penas!
Hipopotomonstrosesquipedaliofobia é a fobia de palavras grandes. Até hoje me pergunto por que raios alguém lhe deu esse nome, quer dizer, a pessoa já tem um medo irracional de palavras grandes e ainda tem uma palavra enormemente gigante como nome de sua fobia. Imagine como ela reage quando alguém a pergunta o que ela tem? Deve ser perturbador.
Peço desculpas mais uma vez se você tem alguma dessas fobias que citei. Apenas são algumas das quais não compreendo muito bem e acabam soando estranhas, às vezes cômicas, aos meus ouvidos.
Eu não sei se chega a ser uma fobia, mas tenho medo de estar sozinha. De acordo com o que sei se chama autofobia.
Tenho medo de muitas outras coisas. Tantas que não poderia contar em apenas uma vida.
Então talvez você esteja pensando agora "Bem feito! Ninguém mandou ficar rindo do medo dos outros!", não tiro sua razão, mas aposto que já riu de coisas das quais não deveria.
Sinto-me completamente enjoada e zonza, talvez seja pelo tanto de tempo que estou presa nesse quarto cinzento.
Eu sempre tive uns “ataques demoníacos” –como as freiras dizem. Como se eu, sei lá, ficasse possuída do nada. Eu sei, bem esquisito. Acontece que, definitivamente, eu não tenho ataques demoníacos.
Geralmente acontece quando as pessoas chegam muito perto de mim, mas isso não significa que aconteça sempre que sou tocada.
Lembro-me perfeitamente quando, no meu aniversário de oito anos, uma das meninas do orfanato me deu um abraço ao me desejar um feliz aniversário. É bem previsível o que aconteceu. Eu não escutava nada a não ser as vozes berrando e não via nada a não ser cenas onde eu mal conseguia distinguir o que acontecia.
As freiras disseram que eu gritei, me joguei no chão, que eu bati em quem se aproximava e que chorei muito. Depois disso elas me levaram ao médico que disse que eu sou louca –Não com essas palavras, claro.- e então passaram a me trancar nesse quarto cinza com uma cama de solteiro e uma única e pequena janela com grades.
Minha única companhia é uma boneca de pano feita pela freira Joana, seu nome é Roxinha, por causa do vestidinho roxo que usa.
Eu sei que é um nome bem idiota, mas eu tinha nove anos e acho que crianças de nove anos não se importam muito com nomes de brinquedo.
Eu costumava conversar com essa boneca, tipo, o tempo todo, como se fosse minha filha.
Eu gostaria de ainda ter apenas nove anos. Naquela época era fácil conversar com uma boneca.
Agora eu olhava para Roxinha imaginando que ela me diria “Bom dia mamãe! Quando voltaremos a passear em nossa floresta encantada?”. Nunca. Essa era a resposta. E se não era uma resposta que me deixava feliz então Roxinha deveria fazer outra pergunta. O problema era, qual pergunta ela faria? Eu tenho catorze anos, não nove. Não consigo imaginar uma pergunta que eu mesma pudesse responder- dizendo que quem está respondendo é Roxinha- com algo positivo.
Dois anos. Eu não saio do quarto faz dois anos. Consegue imaginar o quanto isso é torturante?
Às vezes, se eu tinha um bom comportamento, as freiras me deixavam sair do quarto e passar um dia no jardim. Nesses dias eu ia para o lugar com menos crianças: uma enorme árvore no canto direito do jardim.
Aranhas, formigas, abelhas e vários outros bichos faziam parte do meu reino encantado. Um reino onde eu era a rainha, Roxinha era a princesa e os bichos eram, além de súditos, nossa família.
Lembro-me de voltar do jardim e falar para Roxinha: “Logo voltaremos a visitar a floresta filha! Ou talvez a gente se mude para um lugar melhor, com uma floresta mais bonita!”. E então todos os dias ela fazia aquela pergunta e eu sempre respondia que iríamos na floresta logo, mas o tempo foi passando, as visitas da irmã Joana se tornaram menos frequentes e passei a ter pesadelos todas as noites.
Coloquei Roxinha debaixo das cobertas e murmurei um “Durma mais um pouco, você está com cara de doente.”.
Foi muito estranho, eu me senti como se realmente fosse louca.
Peguei o livro de contos de fada que a freira Joana havia me dado em sua última visita. Quanto tempo tinha? Seis meses? Um ano? Eu não faço a mínima ideia.
Quando se vive dia e noite presa entre quatro paredes você perde a noção do tempo. No início eu fazia um risquinho na parede para ter uma ideia de quanto tempo estava passando, mas depois que todas as paredes ficaram cheias de riscos isso meio que virou um passatempo.
Estranho? É o que dá não ter o que fazer.
Todo dia eu fazia as mesmas coisas. Comer, dormir, estudar, tentar regredir e voltar a ter nove anos falando com um ser inanimado, tomar banho, rezar e dormir de novo.
Uma vida como a minha eu não desejaria nem ao meu pior inimigo. Até porque não tenho um.
Eu já fui feliz, na infância, por causa da minha –Quase inexistente- esperança e da minha forte imaginação, mas depois que você cresce e percebe que a vida não é uma historinha que termina com um final feliz as coisas mudam.
As pessoas reclamam de ter irmãos bagunceiros, ou de que seus pais são chatos, e não fazem ideia do quanto eu queria ter pais chatos e irmãos bagunceiros. A vida é mais fácil quando você tem pessoas que te amam ao seu lado.
Fui tirada de meus pensamentos quando irmã Joana invadiu meu quarto. Não pensei duas vezes antes de correr e abraça-la.
-Eu estava com tanta saudade. –Falei tão baixo que nem me escutei direito.
-Eu também estava com saudade meu amor. –Disse acariciando meu cabelo. - Eu trouxe um presente! Experimente, vamos!
Em suas mãos estava uma caixa de uma marca de tênis que eu conhecia. Você deve estar se perguntando “Como assim você conhece uma marca se você vive igual a Rapunzel?”, então, eu consegui roubar o celular de uma moça que me dava aulas. Se isso foi errado? Claro que foi, mas foi por uma boa causa.
-Como ficou? –Perguntei animada. O tênis all star preto de cano longo –Bota longo nisso.- tinha ficado ótimo, eu sabia, mas perguntar a opinião dos outros era um hábito meu. Mesmo que eu sempre perguntasse e desse a resposta dizendo ser oura pessoa...
-ÓTIMO! –Falou um pouco alto demais. –Você gostou minha flor?
-Sim, adorei. –Respondi.
O sorriso já começava a sumir de meu rosto.
-O que foi?
-Eu não posso usar esse tênis. Não faz parte do uniforme do orfanato. As outras freiras não vão concordar.
Isso já tinha acontecido milhares de vezes. Alguém presenteava um órfão com uma roupa ou sapato, porém as freiras o proibiam de usá-lo por causa do maldito uniforme.
Por algum motivo o nosso orfanato tinha uniforme, o que dificultava muito as coisas, já que não aceitávamos doações de roupas por esse motivo.
-Quem disse que não? Eu dei um jeitinho de liberar os sapatos, agora todas as nossas crianças podem usar o sapato que quiserem.
Fiquei tão feliz ao saber daquilo que comecei a pular como uma doida. Bom... Teoricamente eu sou uma.
Irmã Joana riu.
-Fico feliz que tenha gostado. Agora eu tenho que ir Líria.
-Já? –Meu sorriso sumiu. –Por que tão rápido?
-Ah querida, eu só vim te trazer esse presente. Tenho estado muito ocupada com as coisas aqui no orfanato. Prometo que eu volto logo, ok?
Assenti e ela saiu.
Sozinha novamente. Talvez eu esteja condenada a viver assim pelo resto dos meus dias.
Ajoelhei-me para pegar minha mochila velha e surrada que estava debaixo da cama. Ali dentro estava tudo o que eu tinha. Meio deprimente, eu sei.
Peguei meu caderno de textos, quase todas as suas folhas tinham sido usadas. Em cada uma delas uma história diferente.
Abri em uma página aleatória, reconhecendo o texto que eu havia escrito há tanto tempo atrás:
Alguns raios de sol conseguiam entrar pela pequena janela daquele quarto. Era impressionante como algo tão simples mudava toda a aparência do lugar, conferindo-lhe uma alegria escassa, mas que era melhor que nada.
Um lugar amaldiçoado, esquecido pelo tempo, onde a tristeza era presença constante, torturante, petulante.
O pequeno quarto tinha desespero, e medo entranhados em sua composição, um pequeno inferno com apenas um prisioneiro.
Ao entrar ali em um dia como qualquer outro, quando aqueles pequenos raios não conseguiam penetrar na profunda escuridão, qualquer um se sentiria atormentado. E, após a breve visita, se perguntaria o tempo todo como aquela garotinha conseguia conviver com o ar rarefeito e com as sombras assustadoras que se projetavam nas paredes do cubículo. As lembranças do ranger da porta ao ser aberta e do olhar da pequena criança ao implorar em prantos por socorro estariam para sempre presentes em seus pesadelos.
Como se sentia aquela menina? Como sobrevivia? Será que tinha sonhos? Será que, em algum momento, sorria?
Mas ninguém poderia perceber, talvez nem mesmo a própria menina, o brilho que seu coração emanava.
Dizem que para todos existe a esperança, aquela certeza de que o arco íris surgirá depois da tempestade, aquela chama que apenas se apagará no último instante. E, para aquela menina, era isso que os filetes de luz dourada representavam. A esperança.
Sorri com o texto. Era um de meus favoritos, chamava-se “A esperança.”. Era bom lê-lo de vez em quando, lembrar-me que existia esperança para todos, inclusive para mim.
Pus o livro ao meu lado e deitei na cama cinzenta para olhar para o teto cinzento. Uma vida cinzenta para uma garota cinzenta.
Lá fora as outras crianças corriam, eu podia ouvir o som de seus gritos alegres, de seus pés batendo com força no chão empoeirado enquanto fugiam uns dos outros provavelmente durante uma brincadeira idiota. Perguntei-me por que eu não pude fazer o mesmo que eles, por que eu tinha sido condenada a viver num mundo cinzento e o que, afinal, eram essas vozes e imagens que me perseguiam. Concluí que talvez essa minha vida fosse necessária para que alguém tivesse seu final feliz lá fora - Sim, esse alguém são os meus pais.
✽Continua...✽
Autor(a): TrisDosAnjos
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