Fanfic: O Trono Sem Rei | Tema: Vondy - Adaptada
Era evidente que a donzela de cabelos ruivos não saía muito do
castelo. Depois da crise de pânico com o ataque dos traficantes de escravos,
a moça se acalmara, mas ainda olhava com os imensos olhos afogueados
para tudo a sua volta, como se esperasse que a qualquer momento um
perigo mortal se abatesse sobre eles.
Fergus, por sua vez, tinha uma
postura altiva e tentava não demonstrar que se importava com os
companheiros mortos e com o outro levado para uma vida de escravidão e
uma morte prematura. Sua atuação talvez enganasse pessoas menos
atentas, mas ele dera azar.
Blanca, Marcos e Marcel aprenderam a ler as
pessoas com maestria e era evidente para eles que o jovem soldado estava
perturbado. Provavelmente, muitas coisas giravam em torno de sua cabeça
morena. De sua missão dependia a paz entre os reinos. Era muita
responsabilidade para uma cabeça tão jovem.
Enterraram os corpos com grandes pedras. Não podiam deixá-los
ali, simplesmente, mesmo sabendo que o tempo estava contra eles. Dos
bandidos, apenas dois homens pereceram.
Os outros, feridos, haviam
fugido esbaforidos com o reforço inesperado. Havia três soldados mortos e
o cocheiro. Eram tão jovens!... Blanca se perguntou porque mandar
crianças para esse tipo de serviço. Era a escolta para uma princesa!
Deveriam ter soldados mais experientes. Pensou em fazer algumas
perguntas à Fergus, mas desistiu quando viu o rapaz colocando pedras
sobre o túmulo dos amigos com os olhos marejados, tentando enxugar uma
lágrima traidora.
Para recuperar o tempo pedido, exigiram muito dos cavalos,
correndo por um bom tempo. Precisavam chegar com urgência até o fauno
para descobrir onde estavam Dulce, Fernando, Eileen e Chris. Mas não podiam
correr o tempo inteiro. Em dado momento, passaram a ir devagar,
poupando os animais. E com a vagarosidade, o silêncio se tornou muito
mais evidente.
Marcos não gostava de silêncio. Dava tempo para as pessoas
pensarem e, em algumas situações, os fantasmas criados eram muito
maiores do que os defuntos reais. Sabia que todos ali estavam preocupados
com alguma coisa. Por isso, resolveu puxar um assunto.
– Uma coisa me intriga, Marcel!
Marcel o olhou de lado. Sabia que Marcos ia tocar em algum assunto
desagradável, constrangedor ou completamente idiota. Conhecia muito
bem esse tom meio agudo de quem não quer nada do amigo.
– Você chegou alguns minutos depois da gente. Significa que passou
apenas uma noite e um dia nesse mundo... – Marcos se virou para ele com o
cenho franzido de curiosidade. – Então, como é que você conseguiu ficar
noivo em tão pouco tempo?!
A conversa chamou a atenção dos outros que passaram a observar
Marcel. O caminho estava silencioso e apenas o trotar dos cavalos era
ouvido. Marcel esperou por alguma distração que mudasse o rumo da
conversa, mas não aconteceu nada.
– Caí no rio e Oisin me salvou... – disse ele.
O silêncio continuou, como se todo mundo esperasse uma
continuação.
– Aí você falou “Puxa! Nenhuma mulher ficou molhada por mim
antes! Quer casar comigo?” – alfinetou Marcos.
Marcel o fuzilou com os olhos mais uma vez.
– Não – respondeu secamente. – Não foi assim.
– Então o que aconteceu? – perguntou Blanca.
Marcel bufou, sentindo-se encurralado.
– Bem, ela me levou para a Ilha de Tir Nan Og... A Lua estava bem
brilhante e havia um perfume de flores no ar... Nós nos beijamos.
...
...
...
– E??????? – perguntou Marcos, que não aguentava mais aquele
suspense todo.
– Aí nós fizemos amor! – entregou Marcel. – Foi isso! E quando eu vi,
estávamos comemorando o noivado!
– Marcel!!! Seu safado! – riu Blanca.
– Eu não sei o que deu em mim! Parecia que eu estava apaixonado,
não consegui pensar!
Marcos deu uma sonora gargalhada que ecoou pela floresta.
– Marcel comeu o lanche antes da merenda! E agora vai ter que
casar!
Depois de mais meia hora inventando novas piadas para
constranger Marcel, eles decidiram parar e acampar. O sol estava se
despedindo, cobrindo tudo com sua luz avermelhada, e a floresta estava
ficando escura. Pelos cálculos, chegariam na manhã do dia seguinte na
Floresta Perdida e aí só teriam que achar o Fauno Ancião.
Haviam sido
instruídos a não prosseguir de noite. Havia muitos perigos. Além do mais,
nem eles, nem os cavalos, aguentariam prosseguir noite adentro numa
floresta escura. Ou clara. Não fazia diferença.
Fergus e Marcel recolheram gravetos secos, enquanto Marcos e
Blanca molhavam os rostos num regato.
– Estamos quase chegando, Blanca... – disse ele, percebendo o
silêncio da amiga.
– Estou preocupada, Marcos... – disse ela. – ainda de joelhos na
margem, passando as mãos molhadas nos cabelos castanhos e longos.
– Não fique – respondeu ele. – Fernando sabe se cuidar. E ele e Dulce
estão juntos.
– Eu sei. Mas... – ela se virou para Marcos com um olhar de urgência
que ele não sabia se era da mãe, da esposa ou se era totalmente racional. –
Estou me esforçando muito pra não bancar a histérica cuja família foi
raptada, mas está muito difícil não pensar no pior. Fernando não é muito fácil
de ser derrubado, nós sabemos disso, nós já vimos que ele é uma peste! E
mesmo assim, ele FOI derrubado, Marcos. Quando levaram Chris, passaram
por cima de Fernando como uma jamanta! Que chance ele tem de defender as
meninas contra aquelas coisas?!
Ela respirou e olhou para o Sol se pondo nas montanhas ao longe.
– Arrependida? – perguntou Marcos.
– Não... – murmurou ela, depois de algum tempo. – Ao menos, ainda
não... Sei que há muitos perigos aqui, mas não sei se poderíamos continuar
vivendo sabendo que abandonamos o garoto à própria sorte. Esse é o tipo
de decisão que muda tudo, nos acompanharia para sempre, tingindo tudo
de cinza, até que tudo o que somos fosse contaminado. Espero não estar
errada... Sei lá...
Marcos baixou a cabeça por um minuto.
– Você se arrependeu de ter atravessado aquele portal há 18 anos?
Ela se virou para o amigo de novo, dessa vez com um sorriso.
– De ter ido à Loudun?! Jamais! Tudo o que eu tenho é resultado
daquele passo, Marcos, passo que eu jamais teria dado se não fosse por
você!
– Nunca se arrependeu? – insistiu ele, olhando-a nos olhos. – Nem
quando uma flecha se cravou no seu peito? Nem quando achou que tudo
estava terminado?
Blanca pensou na pergunta, sem desviar os olhos dele.
– Não – respondeu ela, com convicção. – Nunca.
– Então você já sabe qual a decisão certa.
Ela sorriu, o coração mais serenado.
– Obrigada, Marcos...
Ele abriu aquele sorriso enorme que ela já não saberia viver sem.
– Nós vamos conseguir! Você vai ver! E teremos muitas histórias pra
contar! Agora, com licença, preciso cuidar de uma princesa!
Marcos encheu o cantil de água e levou para a princesa Maeve, que
estava sentada sob uma árvore brincando distraidamente com um
galhinho.
Não muito longe dali, Marcel e Fergus catavam galhos secos.
Começaram em silêncio, mas não demorou muito para Marcel quebrá-lo.
– Você lutou muito bem, sabia?
Fergus o olhou como se nunca tivesse recebido um elogio na vida.
– Não lutei, não – respondeu asperamente. – Se tivesse lutado bem,
meus companheiros ainda estariam vivos e ainda teríamos uma comitiva
para levar a princesa até seu novo lar.
– Não seja duro demais consigo mesmo – Marcel sabia que era um
pouco clichê, mas nada mais lhe ocorria para dizer ao jovem soldado. –
Vocês dois estão vivos, e ela está viva graças a você. Você vai levá-la em
segurança e tudo isso será só uma... lembrança ruim.
Fergus o olhou com incredulidade e então eles voltaram, carregados
de lenha para a noite. Quando o fogo se acendeu, o Sol já tinha partido e a
floresta mudara de som.
Antes, pássaros voavam em grupos, procurando
seus ninhos para dormir, provavelmente xingando seus vizinhos
passarinhos, o que explicaria o estardalhaço que eles faziam. Agora, grilos
cantavam e ouvia-se aqui e ali um coaxar de sapos. Marcos, Blanca e Marcel
dividiram com o jovem casal sua comida, já que eles haviam perdido tudo
no assalto.
– De onde vocês são? – perguntou Fergus, mastigando um pedaço de
pão.
– Err... Viemos da Vila das Fadas D’Água – respondeu Marcel, que
não sabia se deveriam dizer a verdade sobre eles ou não.
– É mesmo? – tornou o rapaz, parecendo convencido. – Vocês lutam
bem!...
– É que nossa família era pobre – explicou Marcos, atraindo o olhar
dos outros. – A gente tinha que brigar por tudo! Por um espaço na cama,
pelo café da manhã, por um prato de arroz com feijão, pela única escova de
dentes... A pobreza fortalece o homem, meu rapaz, guarde minhas palavras!
– Eu não agradeci apropriadamente...
Eles se viraram para a mocinha ruiva, comendo um pedaço de
queijo.
– Quando chegarmos ao reino de meu... noivo, farei com que sejam
recompensados.
– Não precisa – disse Blanca.
– Blanca! – ralhou Marcos. – Não seja mal educada! Se ela quer nos
recompensar, deixe a moça nos recompensar! Se não aceitarmos, ela pode
até ficar magoada!
A moça baixou a cabeça, olhando para o pedaço de queijo em suas
mãos. Tinha os traços finos de menina e dava pra entender completamente
porque Marcos a estava sempre paparicando.
Ela era aquele tipo de menina
que você tem vontade de cuidar, de levar pra casa, de colocar numa cama
com dossel e... deixá-la dormir, porque se tocá-la, ela pode quebrar. Era
como uma peça de cristal muito bonita que você tem medo até de olhar.
– Há alguma chance de vocês nos levarem direto aonde temos que
ir? – perguntou Fergus.
Talvez fosse a luminosidade da fogueira que crepitava no meio
deles, mas o rapaz parecia pela primeira vez vulnerável. Pouco mais velho
que a moça, ele tinha os traços ainda infantis meio ocultos pelos cabelos
castanhos que lhe caíam pelo rosto.
A pergunta deveria ter parecido uma
oferta, inteligentemente sendo feita logo após a menção de uma
recompensa, mas a verdade é que ela pareceu um pedido.
– Lamento, não podemos – respondeu Blanca.
O rapaz baixou os olhos, anuindo lentamente com a cabeça.
– Nossa família foi sequestrada por trolls – disse Blanca de repente,
achando que, já que o jovem casal não sabia nada sobre eles, mereciam ao
menos saber por que estavam se negando a servir de escolta a uma
princesa. – Não sabemos onde eles estão. Podem estar feridos, podem estar
precisando de ajuda, e precisamos encontrá-los. O Fauno Ancião pode nos
dizer onde eles estão. Por isso precisamos ir pra lá o quanto antes. Vocês
entendem?
Fergus anuiu com a cabeça de novo. Blanca percebeu que ele
parecia sério demais para alguém tão jovem. Deve ter sido um daqueles
bebês sisudos, que observam com um vinco entre os olhos os adultos a sua
volta, esperando que alguém lhe troque as fraldas ou lhe dê comida.
– Tivemos sorte do castelo do Rei do Norte ser na mesma direção e a
Floresta Perdida estar no caminho – continuou Marcel. – Mas como Blanca
disse, não sabemos o que vamos ouvir do Fauno. Não sabemos se
poderemos escoltá-los até seu destino.
– Mas faremos o possível, não é, gente? – disse Marcos em tom
animado. – Não se preocupem, o pior já passou! Tenho certeza de que o
caminho até o castelo do Rei do Norte será bem tranquilo!
Ninguém de fato acreditava naquilo, mas ninguém contestou.
Terminaram de comer e Fergus se ofereceu para ficar de guarda no
primeiro turno.
Quando aquele dia começou, Fernando tinha um looongo caminho pela
frente. Achou que andaria até seus pés caírem, de acordo com o mapa que
Dana o ajudara a desenhar. Ficou feliz de estar em forma, ou aquela viagem
duraria muito mais. No almoço, pararam para comer.
Percebeu que Dana
caprichara na comida, colocando boa quantidade de pão, queijo, frutas,
carne seca e nozes. Percebeu também que ela colocara doces e bolo, o que
deixou a fadinha muito feliz. Fernando se perguntou se Dana já não sabia que
Eileen prosseguiria no caminho com ele, ao invés de ficar em segurança em
sua taberna.
Dana tinha sido uma bênção, um anjo que Deus colocara em seu
caminho. Além de supri-lo com alimentos e pousada numa noite fria, ela
também lhe dera uma espada. Estava jogada num baú junto com outras
coisas estranhas, como uma couraça enferrujada, um cálice, um par de
botas puídas, um lampião e outras coisas que ele nem conseguiu identificar.
Aquele era o baú das “contas pendentes”, como ela chamou. Pessoas que
comem e bebem demais e não têm dinheiro para pagar, ou que começam
brigas e quebram tudo, deixam como paga algum pertence.
Aquela espada
fora deixada por algum bêbado que nunca voltara para recuperá-la. Feliz
em poder se defender de novo – Fernando sentia-se nu sem uma espada
naquele mundo – ele aproveitou a parada para o almoço para analisar
melhor a nova arma.
Ela tinha uma bainha de couro cor de vinho que já vivera tempos
melhores. A espada estava sem brilho, esquecida há tanto tempo no fundo
de um baú. Ele usou a própria manga para limpá-la e ficou feliz com o
resultado. Em alguns minutos, a velha espada estava brilhando de novo. Ela
não era muito pesada, o que facilitava os movimentos, e seu fio estava
ótimo. Era tudo de que ele precisava.
Enquanto a menina comia e ele se concentrava em polir a espada,
sua mente viajou para seus tempos em Loudun, quando andar com uma
espada era perfeitamente normal, mesmo para ele que era um padre.
Espantou-se em se sentir quase eufórico ao poder fazer isso de novo. Ter
uma espada nas mãos naquele momento era completamente diferente de
quando ele, Blanca, Marcos e Marcel treinavam e competiam com outros
malucos por armas antigas. Aquilo era brincadeira, ele sabia. Agora, era de
verdade.
– Quer?
A menina lhe estendeu um pedaço de bolo. Ele aceitou e ela sorriu,
olhando para ele com admiração. Foi quando o semblante de Fernando foi da
euforia para a preocupação. Não era mais o mesmo homem de Loudun. Não
estava muito feliz em ter que usar aquela espada, correndo por aí com uma
criança, tentando salvar outras duas, enquanto sua esposa e amigo estavam
desaparecidos. Agora, ele tinha muito a perder. Colocou a espada de volta
na bainha e continuou o almoço com Eileen.
Comeram e beberam água do cantil, renovando as forças. O céu
estava azul e uma brisa fresca constante dava uma sensação de que tudo
estava bem, embora fosse apenas uma ilusão.
Durante o caminho, Eileen lhe contava o que sabia sobre aquele
mundo, dando-lhe sua visão de tudo que conhecia do alto de sua sabedoria
de seis anos. Fernando não reclamou. Gostava de saber mais sobre o lugar e a
voz da menina, de alguma forma, afastava sua preocupação. Queria se
concentrar no que tinha que fazer, mas a preocupação com a família estava
sempre voltando à sua mente.
A conversa de Eileen o distraía e o ajudava a
permanecer calmo e focado, o que provavelmente também acalmava a
menina.Em dado momento, Fernando e Eileen chegaram numa região
pantanosa. As árvores eram secas e retorcidas e a luz parecia chegar
diluída àquele lugar ermo e triste. Eileen o puxou pela mão que ela nunca
largava.– Não entre aí – disse ela. – É perigoso!
Fernando não precisava do aviso dela para saber que aquele lugar não
era uma escolha sábia. Pegou o mapa de dentro da roupa e olhou,
confirmando o que no fundo já sabia. Aquele era o caminho mais rápido
para chegar na cidade de Luzandefall, de onde estaria a poucos quilômetros
da Floresta Perdida. A extensão do pântano era grande demais para ser
contornada sem que perdesse muitas horas.
Olhou de volta para a menina
que o observava atentamente com os enormes olhos brilhantes. Então,
Fernando respirou fundo, apertou a mão da criança com uma mão e com a
outra segurou o cabo da espada na cintura. E então, seguiu em frente.
Além do clima úmido e da aparência deprimente, a passagem não se
mostrou tão horrível a princípio. Eles caminhavam com atenção, olhando
sempre tudo a sua volta. Sapos pulavam por trás dos arbustos ressecados e
o chão, em alguns pontos, se tornava lodoso.
Pássaros negros observavam os viajantes do alto dos galhos
retorcidos. Até o céu adquirira um tom cinzento. Fernando não pretendia
parar nem sair do seu caminho e esperava que isso fosse o suficiente para
passarem em segurança.
A coisa funcionou nos primeiros trinta minutos.
Uma risada de mulher o fez parar. Olhou em volta, imaginando que
tipo de mulher estaria num lugar como aquele e porque diabos estaria
rindo. Um vulto passou entre as árvores a frente e Eileen gritou.
– Dulce!!! Olha! É Dulce!
O movimento tinha sido rápido demais para Fernando perceber quem
era, mas Eileen parecia ter absoluta certeza do que vira. Tanta certeza, que
soltou a mão dele e correu na direção do vulto.
Fernando gritou seu nome e correu atrás dela, lembrando-se de como
crianças nessa idade conseguem ser perigosamente ágeis e rápidas em
desaparecer. Uma vez, perdera Dulce num shopping. Ela era um pouco
mais velha que Eileen.
Fernando se lembra de ter ficado desesperado e
corrido como um louco por todos os andares, pedindo ajuda e já
imaginando que sua filha estaria nas mãos de serial killers ou um desses
loucos que mostram na televisão. No final, um segurança a entregou ao pai,
que sacudiu a menina irritado, ordenando-lhe que nunca mais fizesse isso.
Foram apenas o que, trinta segundos, um minuto no máximo, e Dulce
simplesmente tinha sumido. Não ia deixar acontecer isso com Eileen.
Manteve os olhos fixos nela, mantendo a corrida para alcançá-la.
Estava quase tocando suas asinhas quando uma bruma baixou no lugar,
deixando-o momentaneamente perdido.
– Eileen! – gritou ele. – Não é Dulce! Agora, pare onde está e me
espere!
Ele aguçou os ouvidos. Nada.
– Eileen! Onde você está?
Sentiu a própria respiração se acelerar. Ela devia ter ficado com
Dana...
Estava parado, cercado pela bruma, sem ouvir nada, até que... ele
ouviu alguma coisa. Aguçou os ouvidos e teve certeza. Ouvia barulho de
água, como se alguém brincasse na água, e a mesma risadinha feminina que
ouvira antes. Com bruma ou sem bruma, correu na direção dos sons,
rezando para não pisar em falso ou cair em algum precipício.
Parou para ouvir melhor. Eileen era inteligente.
Ela teria respondido
ao seu chamado, a menos que não pudesse. O som de água estava mais
perto e a bruma começou a se desvanecer. Então ele pôde ver a horrível
figura de uma mulher vestida em algas ou plantas apodrecidas, os cabelos
longos e verdes grudados nas costas cobertas de caracóis e caramujos. Ela
ria, o rosto horrível contorcido numa careta de prazer, os dentes afiados a
mostra, olhando na direção de suas mãos que seguravam alguma coisa
dentro d’água. Alguma coisa não. Alguém.
Sem pensar duas vezes, Fernando sacou a espada e partiu na direção da
mulher monstruosa. Assim que o viu chegar, a mulher gritou, mostrando
seus dentes afiados e verdes. Em menos de um segundo, sua cabeça voou,
caindo na água, boiando por alguns instantes com a bocarra ainda
escancarada, até finalmente afundar.
Fernando tirou a menina da água. Eileen tossia e chorava ao mesmo
tempo, apavorada, enquanto ele tentava acalmá-la, não deixando que ela
visse o corpo sem cabeça caído na margem.
– Ele matou nossa irmã! – alguém gritou.
Fernando se levantou com a fadinha no colo, assustado. Um coro de
acusações se ergueu junto com ele.
– Jenny Dentes-Verdes! Ele matou Jenny Dentes-Verdes!
– Assassino!
– Ele tem que pagar!
– Vamos fazê-lo pagar!
A última coisa que Fernando precisava naquele momento era de um
litígio judicial de assassinado empacando sua vida. Virou-se para correr,
mas já estava cercado. Não sabia o que eram, mas se aproximavam rápido.
Ainda com a espada na mão, colocou a fada no chão e se preparou para o
primeiro ataque. No entanto, ele não veio.
– Parem! É um Feiticeiro da Lua Negra!
– Um Feiticeiro da Lua Negra!
E o eco da sua falsa identidade reverberou entre as outras criaturas.
E então, algo incrível aconteceu. As criaturas retrocederam.
– Vá embora, Feiticeiro!
– Sim, vá embora!
– Não queremos problemas com sua gente!
– Vá embora!
Fernando se lembrou do motivo de terem lhe dado aquela estranha
túnica negra. Ariene e Danzir disseram que se achassem que ele era um
Feiticeiro da Lua Negra, não os perturbariam. Ele achou que eles estavam
falando de humanos e estranhou que não tivesse funcionado muito bem na
taberna, quando fora confrontado assim que entrou pelo idiota com a
cicatriz no rosto. Agora entendia que a coisa funcionava especificamente
com criaturas encantadas.
Sem esperar nem mais um segundo, pegou a menina no colo e
correu, deixando o sinistro coro para trás.
Continuou correndo até o fôlego acabar. Quando finalmente parou,
não havia mais neblina e já via relva verdejante adiante. Colocou Eileen no
chão e esperou alguns minutos até que pudesse falar de novo. Então
sacudiu a menina, gritando:
– Nunca mais faça isso!!! Me obedeça quando eu mandar você fazer
alguma coisa, ouviu?
Foi o bastante para ela começar a chorar de novo. Fernando se lembrou
de Dulce no shopping e fez o mesmo que fizera daquela vez. Abraçou a
menina e a acalmou, dizendo que estava tudo bem, que estavam seguros
agora.
Secou suas lágrimas e confortou-a com um sorriso. Tentou secá-la
com a barra da manga da própria túnica. Então, tomou-a pela mão e
caminhou em passos rápidos na direção da estrada de terra que levaria à
cidade.
Estavam cansados. Além do estresse do que ocorrera no pântano,
haviam andado o dia inteiro. Na estrada, uma carroça surgiu ao longe.
Fernando pediu uma carona. O velhinho que dirigia a carroça puxada por dois
cavalos fortes analisou os dois estranhos caronistas.
– E então, Latefino? – disse o velhinho, virando-se para trás. – O que
você acha?
Um vira-lata levantou a cabeça na parte de trás da carroça e deu um
latido totalmente desafinado que terminou com um uivo fora de tom. O
velhinho riu e mandou-os subir. Os dois pularam na carroça que carregava
feno e Latefino, um vira-lata branco com manchinhas pretas, lhes fez festa.
Poder descansar os pés fez toda a diferença.
Em menos de duas
horas, chegaram aos arredores da cidade e agradeceram ao bom senhor.
Fernando saltou da carroça e Eileen pulou em seu colo. Ele a segurou no ar e a
colocou no chão, tomando o caminho até a cidade. Já era noite e Fernando
sabia que, embora tivessem comida, não tinham dinheiro. Imaginou que se
pudessem passar a noite em uma casa, ou celeiro, ou qualquer coisa com
um teto, seria ótimo.
Ao longe, viu uma casinha com luzes tremulantes de
lampiões ou velas nas janelas. Teve uma intuição de que lhes dariam
guarida e foi pra lá que foi.
Bateu na porta, torcendo para ser uma mulher a atender. Fernando
sabia muito bem do seu efeito sobre as mulheres e sempre soubera tirar
vantagem disso. Quando a porta se abriu, uma mulher de meia idade, com
os cabelos loiros cascateando pelas costas, surgiu. Fernando abriu seu melhor
sorriso.– Boa noite, senhora! Somos viajantes e não temos onde ficar essa
noite. Será que poderia nos dar guarida?
– Desculpe, não posso.
O sorriso de Fernando foi embora e antes dele pensar sobre estar
perdendo seu “mojo”, como dizia Dulce, percebeu algo estranho. Os olhos
da mulher pareciam assustados. Uma sombra passou pela janela ao lado,
onde cortinas impediam a visão, ao mesmo tempo em que outra sombra
tremulava debaixo da porta.
– Claro, desculpe o incômodo, senhora – disse ele, abrindo
novamente o sorriso e estendendo a mão para um cumprimento cortês.
A mulher estendeu a mão que ele pediu e ele a beijou. A mão estava
tremendo. Então ele deu alguns passos para trás, vendo o desespero brilhar
nos olhos dela. E a porta foi batida com violência.
– Muito bem, mulher! – disse o homem, torcendo o braço da mulher.
– Se continuar se comportando, não vamos matá-la.
– Hoje! – completou o outro, fazendo os outros três homens na casa
rirem.
No meio das gargalhadas, a porta se abriu num rompante. Antes que
entendessem o que estava acontecendo, um homem de túnica preta entrou
brandindo uma espada. Trinta segundos depois, um dos homens
truculentos voou pela janela, estilhaçando vidro para o lado de fora. Os três
que sobraram pegaram suas espadas, enquanto a mulher corria para um
quarto. Eles cercaram Fernando, imaginando que o número superior era o
bastante. Bem, não era.
Fernando desvencilhou-se com facilidade de dois dos golpes e anulou o
terceiro ao atacar com agilidade. Cortou um no braço, outro na perna e
chutou o terceiro no peito, lançando-o para fora pela porta que continuava
aberta. Os homens feridos se entreolharam e então correram o mais rápido
que puderam porta afora.
Ele foi até a mulher que estava abraçada com uma jovenzinha
igualmente assustada e que, pelos traços, devia ser sua filha.
– Vocês estão bem?
A mulher pegou sua mão e começou a beijá-la, enquanto se
debulhava em lágrimas.
– Obrigada, meu senhor! Obrigada!
Ele tentou acalmá-la, dizendo que estava tudo bem, e se
desvencilhou, indo correndo até lá fora. Na entrada, olhou em volta, não
vendo sinal dos bandidos. Deu um assobio e a fadinha veio correndo em
sua direção, saída de trás de uma moita. Ele a pegou no colo com alívio.
– Eu obedeci! – disse a menina com um sorriso.
– Eu sei, meu bem! Obrigado.
Eles entraram. Certamente, já teriam onde passar a noite.
A mulher e a mocinha já estavam de pé quando ele e Eileen
entraram na casa.
– Quem eram esses homens? – perguntou ele, colocando a menina
no chão e levantando uma cadeira que tinha caído durante a briga.
– Ladrões – respondeu a mulher. – Meu marido morreu procurando
ouro numa mina. Eles achavam que ele tinha encontrado. Quando não
encontraram nada, disseram que iam levar Mariane e vendê-la como
escrava.Ela se aproximou dele, os olhos cheios de gratidão.
– Se você não tivesse chegado, não sei o que seria de nós...
Obrigada...
Ela tentou beijar a mão dele de novo, mas ele a impediu. Faziam
muito isso quando ele era padre, acreditando que ele tinha super poderes
ou algo assim. Ele não era mais padre e não acreditava em super poderes.
– Não precisa me agradecer, eu fico feliz em ter podido ajudar. Vocês
estão bem mesmo?
– Só um pouco nervosas, eu acho – respondeu a mulher, pegando um
copo de água que a filha adolescente lhe trazia. – Eu nem sei o seu nome!
– Fernando Espinoza – respondeu ele. – E essa é Eileen.
A mulher sorriu para a menininha agarrada às pernas dele e
olhando-a com seus enormes olhos.
– É uma fada? – perguntou a mulher. – Eu nunca vi uma fada com
asinhas tão pequenas!
– É... É uma longa história... – encurtou Fernando.
– Eu sou Claire. E essa é minha filha Mariane. E seria uma honra se
pudessem passar a noite aqui. Não temos muito luxo, mas temos comida e
cobertores. Disseram que vai esfriar essa noite.
Levantaram algumas cadeiras caídas, cataram os cacos de uma jarra
de água espatifada e em poucos minutos devolveram ao lar uma aparência
mais normal.
Durante o jantar, à base de sopa e pão, Fernando perguntou sobre a
Floresta Perdida. Claire lhe indicou como chegar lá e ele ficou satisfeito em
estar tão perto. Eileen e Mariane terminaram a refeição e deixaram a mesa.
Mariane, que devia ter uns 13 anos, gostara de Eileen e disse que lhe
mostraria sua única boneca. Deixaram os adultos conversando sozinhos na
mesa e mergulharam em seu próprio mundo, onde pessoas não vendem
outras pessoas como escravas.
– Precisa mesmo partir amanhã? – perguntou Claire, um tanto
constrangida por estar sendo tão ousada.
– Preciso – respondeu ele. – Minha filha e o namorado dela estão
sumidos. Preciso encontrá-los.
Ela baixou a cabeça, nitidamente decepcionada. Ele tocou sua mão e
lhe sorriu, tentando lhe passar confiança.
– Vai ficar tudo bem. Aqueles homens não vão mais voltar.
Ela sorriu, e agradeceu novamente com um gesto de cabeça.
Claire deu aos visitantes o quarto da filha, que dormiria com ela.
Entregou cobertores ao homem que salvou sua vida.
– Vocês vão ficar bem? – perguntou ele, percebendo que ela parecia
distante, como se estivesse pensando seriamente em alguma coisa.
– Vamos, sim, obrigada. Vou voltar pra casa dos meus pais com
Mariane.
Fernando franziu o cenho, esperando que ela falasse mais.
– Meu marido está morto, eu não tenho como me sustentar sozinha e
tem havido muitos ataques de bandidos por aqui. Não é seguro ficarmos
sozinhas, entende?
Ele concordou com a cabeça, percebendo porque ela perguntara
esperançosa se ele pretendia ficar um pouco mais.
Ela lhe sorriu e se despediram. Era uma mulher bonita, mas que
parecia ter chorado demais. Lágrimas fazem isso. Dizem que elas lavam a
alma, mas elas acabam lavando muito mais.
Levam a juventude em suas
correntezas, levam a beleza e o brilho. Fernando fechou a porta do seu quarto
e foi até a janela. Olhou as estrelas brilhando no céu incrivelmente negro e
sentiu a brisa fria no rosto. Pensou na dor que Claire deveria estar sentindo
ao perder o marido e pensou em Blanca. O coração se apertou em
saudade... Desejou no fundo de seu coração que Blanca tivesse ficado com
Marcos na Vila das Fadas D’Água, que estivesse esperando por ele quando
ele voltasse, que não tivesse feito nada estúpido. Mas sabia que isso era
utopia. Blanca não ia ficar parada.
Então, sussurrou uma oração pedindo
que os anjos a protegessem. Aquela mulher o mudara. Ela não só salvara
sua vida, mas salvara sua alma. Ao lado dela, ele era uma pessoa muito
melhor. Não podia nem pensar na possibilidade de perdê-la.
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Autor(a): vondynatica
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A noite era fria na cela, o que fez com que Chris e Dulce se aninhassem juntinhos num monte de feno. Ele esfregava os braços dela, tentando aquecê-la um pouco. Ela estava com a cabeça recostada em seu ombro quando se lembrou. – E o seu ombro? Ele nem se lembrava disso. Dulce se virou para ele e abriu sua camisa, preocup ...
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Comentários do Capítulo:
Comentários da Fanfic 8
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vondy_170 Postado em 25/01/2017 - 05:22:26
Livro 3 - https://fanfics.com.br/fanfic/55691/a-cancao-dos-quatro-ventos-finalizada-vondy- adaptada
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vondy_170 Postado em 25/01/2017 - 05:20:31
Livro 1 - https://fanfics.com.br/fanfic/48242/lua-das-fadas-vondy-adaptada
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kaillany Postado em 21/12/2016 - 16:58:13
Continua!!!!
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kes_vondy Postado em 06/12/2016 - 02:26:44
CONTINUA
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candy1896 Postado em 04/12/2016 - 22:58:47
CONTINUA
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candy1896 Postado em 04/12/2016 - 19:50:14
CONTINUA