Fanfics Brasil - O filho Quatro: Histórias da Série Divergente [Terminada]

Fanfic: Quatro: Histórias da Série Divergente [Terminada] | Tema: Histórias da Série Divergente


Capítulo: O filho

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O pequeno apartamento está vazio, o chão ainda com traços das cerdas da vassoura nos cantos. Não possuo nada meu para preencher o espaço, exceto minhas roupas da Abnegação, que enchem o fundo da bolsa ao meu lado. Eu a jogo no colchão desencapado e vasculho as gavetas sob a cama em busca de lençóis.
A sorte na Audácia foi boa para mim, porque eu fiquei em primeiro no ranking, e porque ao contrário dos meus extrovertidos companheiros iniciados, eu queria viver sozinho. Os outros, como Zeke e Shauna, cresceram rodeados pela comunidade da Audácia, e para eles o silêncio e a quietude de viver sozinho seria insuportável.
Faço a cama rapidamente, puxando o alto do lençol, por isso quase não há vincos. O lençol está desgastado em alguns lugares, se pelas traças ou pelo uso anterior, não tenho certeza. O cobertor, um acolchoado azul, cheira a cedro e poeira. Quando abro a bolsa com meus escassos bens, tenho em minha frente a camiseta rasgada da Abnegação, de onde tive que retirar tecido para envolver a ferida em minha mão. Ela parece pequena – duvido que eu coubesse nela caso tentasse vesti-la agora, mas eu nem tento, apenas dobro-a e guardo na gaveta.
Ouço uma batida, e eu digo, “Entre!” pensando que é Zeke ou Shauna. Mas Max, um homem alto de pele escura e dedos machucados, entra em meu apartamento, as mãos dobradas a sua frente. Ele examina o quarto uma vez e enruga o lábio com indignação perante as calças cinza dobradas sobre minha cama. A reação me surpreende um pouco – não há muitos nesta cidade que escolheriam Abnegação como sua facção, mas não há muitos que a odeiam, tampouco. Aparentemente, encontrei um deles.
Fico parado, sem saber o que dizer. Há um líder da facção em meu apartamento.
— Olá — eu digo.
— Desculpe interromper. Estou surpreso que não escolhido o quarto com os seus antigos companheiros iniciados. Você fez alguns amigos, não é?
— Sim — respondo. — Assim apenas me parece mais normal.
— Acho que vai demorar algum tempo para se libertar de sua velha facção — Max passa um dedo no balcão da minha pequena cozinha, olha a sujeira que ficou e então limpa a mão nas calças. Ele me dá um olhar crítico – um que me diz para deixar minha velha facção mais rapidamente.
Se eu ainda fosse um iniciado, poderia ficar preocupado com esse olhar, mas sou um membro da Audácia agora, e ele não pode tirar isso de mim, não importa quão “Careta” eu pareça.
Ele pode?
— Esta tarde, você irá escolher o seu trabalho — Max fala. — Você tem alguma coisa em mente?
— Acho que depende do que está disponível — respondo. — Eu gostaria de fazer algo como ensinar. Como o que Amar fez, talvez.
— Penso que o primeiro do ranking pode ser algo mais do que “instrutor iniciação”, não concorda? — as sobrancelhas de Max se erguem, e noto que uma delas não se move tanto quanto a outra – ela é cruzada por uma cicatriz. — Eu vim porque uma oportunidade surgiu.
Ele puxa uma cadeira da pequena mesa perto do balcão da cozinha, a gira e se senta de frente para o encosto. Suas botas pretas estão cheias de lama marrom-clara e os cadarços estão atados e desgastados nas extremidades. Ele pode ser o Audacioso mais velho que já vi, mas poderia muito bem ser feito de aço.
— Para ser honesto, um dos meus colegas líderes da Audácia está ficando um pouco velho para o trabalho — Max diz.
Sento-me na beira da cama.
— Os quatro de nós restantes pensamos que seria uma boa ideia ter sangue novo na liderança. Novas ideias para novos membros e iniciados na Audácia, especificamente. Essa tarefa é geralmente dada ao líder mais jovem de qualquer maneira, por isso é um bom ajuste. Estávamos pensando em filtrar as turmas mais recentes de iniciados para um programa de treinamento para ver se alguém é um bom candidato. Você é uma escolha natural.
De repente sinto que minha pele é muito apertada para mim. Será que ele está realmente sugerindo que com dezesseis anos eu poderia me qualificar como um líder da Audácia?
— O programa de treinamento vai durar pelo menos um ano — Max continua. — Será rigoroso e testará suas habilidades em uma série de áreas. Nós dois sabemos que você se sairá muito bem na parte da paisagem do medo.
Concordo com a cabeça, sem pensar. Ele não deve notar minha autoconfiança, porque sorri um pouco.
— Você não precisa ir para a reunião da seleção dos trabalhos mais tarde — diz Max. — O treinamento vai começar muito em breve – amanhã de manhã, de fato.
— Espere — eu digo, um pensamento rompendo a confusão em minha mente. — Eu não tenho uma escolha?
— É claro que você tem uma escolha — ele parece intrigado. — Apenas assumi que alguém como você preferisse treinar para ser um líder a passar o dia todo de pé patrulhando uma cerca com uma arma apoiada no ombro, ou palestrando aos iniciados sobre boas técnicas de luta. Mas se eu estava errado...
Não sei porque estou hesitando. Eu não quero passar os meus dias guardando a cerca, patrulhando a cidade, ou até mesmo circulando pelo chão da sala de treinamento. Posso ter aptidão para lutar, mas isso não significa que quero fazê-lo o dia todo, todos os dias. A chance de fazer a diferença na Audácia apela para as partes de Abnegação em mim, as partes que são persistentes, às vezes exigindo atenção.
Acho que eu apenas não gosto quando uma escolha não me é dada.
Balanço a cabeça.
— Não, você não estava errado — limpo a garganta e tento soar mais forte, mais determinado. — Eu quero fazer isso. Obrigado.
— Excelente — Max se levanta e estala seus dedos ociosamente, como se fosse um velho hábito.
Ele estende a mão para eu balançar, e eu o faço, embora o gesto ainda seja desconhecido para mim. A Abnegação nunca tocaria o outro de forma tão casual.
— Venha para a sala de conferência perto do meu escritório amanhã de manhã às oito. Fica na Caverna. Décimo andar.
Ele sai, espalhando pedaços de terra seca do fundo de seus sapatos quando vai embora. Limpo com a vassoura apoiada na parede perto da porta. Não é até que estou empurrando a cadeira de volta para a mesa que percebo: se eu me tornar um líder da Audácia, um representante da minha facção, terei que ficar cara-a-cara com o meu pai novamente. E não apenas uma vez, mas constantemente, até que ele finalmente se aposente na obscuridade da Abnegação.
Meus dedos começam a ficar dormentes. Eu enfrentei meus medos tantas vezes em simulações, mas isso não significa que estou pronto para enfrentá-los na realidade.


 


 


 


 


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— Cara, você perdeu! — Zeke está de olhos arregalados, preocupado. — Os únicos empregos pelo final eram os trabalhos brutos, como esfregar banheiros! Onde você esteve?
— Está tudo bem — eu digo enquanto carrego minha bandeja para nossa mesa perto das portas.
Shauna está lá com sua irmã mais nova, Lynn, e a amiga de Lynn, Marlene. Quando os vi pela primeira vez lá, eu quis virar e ir embora imediatamente – Marlene é alegre demais para mim, mesmo em um bom dia – mas Zeke já tinha me visto, então era tarde demais. Atrás de nós, Uriah corre para nos alcançar, seu prato carregado com mais alimentos do que ele pode, possivelmente, acondicionar em seu estômago.
— Eu não perdi nada – Max veio me ver mais cedo.
Depois que tomamos nossos lugares à mesa, sob uma das brilhantes lâmpadas azuis que pendem da parede, conto-lhes sobre a oferta de Max, cuidando de não fazê-la soar muito impressionante. Acabei de encontrar amigos; não quero criar tensão ciumenta entre nós sem motivo. Quando termino, Shauna apoia o rosto nas mãos e diz para Zeke:
— Acho que deveríamos ter tentado mais durante a iniciação, não é?
— Ou tê-lo matado antes que ele pudesse fazer o teste final.
— Ou os dois — Shauna sorri para mim. — Parabéns, Quatro. Você merece.
Sinto os olhos de todos em mim como distintos e poderosos raios de calor, e me apresso para mudar de assunto.
— Onde vocês acabaram?
— Sala de controle — Zeke responde. — Minha mãe costumava trabalhar lá, e ela já me ensinou mais do que eu vou precisar saber.
— Estou no caminho da liderança da patrulha... ou algo assim — diz Shauna. — Não é o trabalho mais emocionante, mas pelo menos estarei lá fora.
— Sim, vamos ouvi-la falar, no auge do inverno, quando você estiver caminhando através de centímetros de neve e gelo — Lynn comenta amargamente. Ela fura uma pilha de purê de batatas com seu garfo. — É melhor eu me sair bem na iniciação. Não quero ficar presa à cerca.
— Nós não falamos sobre isso? — Uriah fala. — Não diga a palavra com “I” até, no máximo, duas semanas antes de acontecer. Isso me faz querer vomitar.
Eu olho para a pilha de comida em sua bandeja.
— E está se enchendo de comida até os olhos saltarem, no entanto. Isso é bom?
Ele revira os olhos para mim e se inclina sobre a bandeja para continuar comendo. Eu mexo minha própria comida – não tive nenhum apetite desde esta manhã, preocupado demais com o dia seguinte para manter o estômago cheio.
Zeke avista alguém do outro lado do refeitório.
— Eu já volto.
Shauna o assiste atravessar a sala para cumprimentar alguns jovens membros da Audácia. Não parecem muito mais velhos do que ele, mas eu não os reconheço da iniciação, então eles devem ser um ou dois anos mais velhos. Zeke diz algo para o grupo – composto em maior parte por garotas – que as faz ter ataques de riso, e ele cutuca uma das meninas nas costelas, fazendo-a guinchar. Ao meu lado, Shauna assiste furiosamente e erra a própria boca com o garfo, manchando todo o seu rosto com molho de frango. Lynn bufa, e Marlene a chuta – de forma audível – sob a mesa.
— Então — Marlene fala em voz alta. — Você sabe que outras pessoas participarão do programa de liderança, Quatro?
— Parando pra pensar sobre isso, eu não vi Eric lá hoje, também — Shauna observa. — Eu estava esperando que ele tivesse tropeçado e caído no abismo, mas...
Enfio um pedaço de comida na boca e tento não pensar sobre isso. A luz azul faz minhas mãos parecerem azuis, também, como mãos de um cadáver. Eu não falei com Eric desde que o acusei de ser indiretamente responsável pela morte de Amar – alguém reportou a consciência de Amar durante a simulação para Jeanine Matthews, líder da Erudição, e como ex-Erudito, Eric é o suspeito mais provável. Eu não decidi o que farei na próxima vez que tiver que falar com ele, também. Dar uma surra novamente não vai provar que ele é um traidor da facção. Terei que encontrar alguma maneira de conectar suas atividades recentes à Erudição e levar a informação para um dos líderes da Audácia – Max, provavelmente, desde que eu o conheço melhor.
Zeke caminha de volta para a mesa e desliza para seu assento.
— Quatro. O que você vai fazer amanhã à noite?
— Eu não sei — respondo. — Nada?
— Não mais — ele diz. — Você virá comigo em um encontro.
Eu engasgo na próxima garfada de batatas.
— O quê?
— Hum, odeio dizer isto, mano — Uriah comenta — mas supõe-se que você deveria ir sozinho a encontros, não trazer um amigo.
— É um encontro duplo, obviamente — Zeke fala. — Chamei Maria, e ela disse algo sobre arrumar um encontro para a sua amiga Nicole, e dei a impressão de você estaria interessado.
— Qual delas é a Nicole? — Lynn pergunta, esticando o pescoço para olhar para o grupo de meninas.
— A ruiva — Zeke responde. — Então, oito horas. Você está dentro, nem estou pedindo.
— Eu não... — começo.
Olho para a ruiva garota do outro lado da sala. Ela tem pele clara, olhos grandes pintados de preto e veste uma camisa apertada, o que mostra a curva em sua cintura e... outras coisas que minha voz interior da Abnegação diz para não notar. Eu o faço de qualquer maneira.
Nunca estive em um encontro graças aos estritos costumes de minha antiga facção, que envolvia engajar-se em atos de serviços comunitários e talvez – talvez – jantar com a família de outra pessoa e ajudá-los a limpar tudo depois. Eu nunca pensei se eu queria namorar alguém; tal ideia era impossível.
— Zeke, eu nunca...
Uriah franze a testa e cutuca minha bochecha com um dedo. Dou um tapa na mão dele.
— O quê?
— Oh, nada — Uriah responde alegremente. — Você só estava fazendo mais Careta do que o habitual, então pensei que eu poderia checar...
Marlene ri.
— Sim, certo.
Zeke e eu trocamos um olhar. Nós nunca falamos explicitamente sobre não compartilhar a minha facção de origem, mas, tanto quanto eu sei, ele nunca a mencionara a ninguém. Uriah sabe, mas apesar de sua boca solta, ele parece entender quando reter informações. Ainda assim, não sei por que Marlene não percebeu – talvez ela não seja muito observadora.
— Não é grande coisa, Quatro — diz Zeke. Ele come sua última garfada de comida. — Você vai, fala com ela como se ela fosse uma humana normal – o que ela é – e talvez ela te deixe – suspiro – dar a mão para ela...
Shauna levanta-se de repente, a cadeira arrastando no chão de pedra. Ela puxa o cabelo para trás da orelha e caminha em direção ao balcão para devolver a bandeja, a cabeça para baixo. Lynn encara Zeke – o que dificilmente parece diferente da expressão normal dela – e segue a irmã até o outro lado do refeitório.
— Ok, você não tem que dar uma mão a ela. Só a mim — diz Zeke, como se nada tivesse acontecido. — Basta ir, tudo bem? Fico te devendo uma.
Eu olho para Nicole. Ela está sentada em uma mesa perto do balcão onde se devolve a bandeja e está rindo da piada de alguém novamente. Talvez Zeke esteja certo – talvez não seja uma grande coisa, talvez esta seja outra maneira de eu desaprender meu passado de Abnegação e aprender a abraçar meu futuro na Audácia. E, além disso, ela é bonita.
— Ok — eu digo. — Eu vou. Mas se você fizer algum tipo de piada sobre dar uma mão, vou quebrar seu nariz.


 


 


 


 


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Quando volto para o meu apartamento naquela noite, ele ainda cheira a pó e uma pitada de bolor. Acendo uma das lâmpadas, e algo reflete a luz no alto da bancada. Corro minha mão sobre ela, e um pequeno pedaço de vidro pica meu dedo, fazendo-o sangrar. Eu o pesco entre dois dedos e levo para a lata de lixo, em que coloquei um saco nesta manhã.
Mas no fundo da lata está agora uma pilha de cacos com a forma de um copo de vidro.
Um copo que não usei ainda.
Um arrepio passa pela minha espinha, e examino o resto do apartamento em busca de mais coisas fora do lugar.  Os lençóis não estão amassados, nenhuma das gavetas foi aberta, nenhuma das cadeiras parece ter sido movida. Mas eu saberia se tivesse quebrado um copo pela manhã.
Então, quem esteve no meu apartamento?


 


 


 


 


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Eu não sei por que, mas a primeira coisa que as minhas mãos encontram pela manhã, quando me arrasto para o banheiro, é o jogo de corte de cabelo que arrumei com os meus créditos da Audácia ontem. E em seguida, enquanto ainda estou piscando as nuvens de sono dos meus olhos, ligo a máquina e a encosto na cabeça do jeito que tenho feito desde jovem.
Dobro a orelha para frente para protegê-la da lâmina; sei exatamente como torcer e virar o pescoço de modo a ver o máximo possível da parte de trás da cabeça. O ritual acalma os nervos, faz-me sentir focado e estável. Tiro o cabelo aparado dos ombros e do pescoço e os jogo no lixo.
Esta é uma manhã da Abnegação. Uma ducha rápida, um café da manhã simples, limpeza da casa. Exceto que estou vestindo o preto da Audácia – nas botas, calças, camisa e jaqueta. Evito olhar no espelho em meu caminho, e isso me faz cerrar os dentes – sabe quão profundas são essas raízes Caretas, e quão difícil será extirpá-las da minha mente, tão enroscadas como elas são. Deixei aquele lugar por medo e desafio, o que fará com que seja mais difícil de assimilar, mais difícil do que se eu tivesse escolhido a Audácia pelas razões certas.
Eu ando rapidamente em direção ao Abismo, emergindo através de um arco na parede. Fico distante da beirada, embora as crianças da Audácia, gritando e rindo, às vezes corram bem próximas dela, e eu sei que deveria ser mais corajoso que elas. Não tenho certeza se bravura é algo que você adquirir com a idade, como a sabedoria – mas talvez aqui na Audácia a bravura seja a forma mais elevada de sabedoria, o reconhecimento de que a vida pode e deve ser vivida sem medo.
É a primeira vez que me pego refletindo sobre a vida da Audácia, então mantenho o pensamento enquanto subo o caminho que circunda a Caverna. Chego à escadaria que leva ao teto de vidro e me mantenho olhando para cima, para longe do espaço aberto sob mim, assim não começo a entrar em pânico. Mas meu coração está batendo forte na hora em que chego ao topo de qualquer maneira; posso senti-lo até mesmo em minha garganta. Max disse que seu escritório ficava no décimo andar, então pego o elevador com um grupo de Audaciosos indo para o trabalho. Eles não parecem se reconhecer, ao contrário a Abnegação – não é tão importante para eles memorizar nomes e rostos, necessidades e desejos, talvez por isso eles mantêm-se com seus amigos e familiares, formando comunidades ricas, mas separadas dentro de sua facção. Como a que estou formando.
Quando chego ao décimo andar, não tenho certeza de para onde ir, mas então vejo uma cabeça escura virar uma esquina a minha frente. Eric. Eu o sigo, em parte porque ele provavelmente sabe onde está indo, mas, em parte porque quero saber o que ele está fazendo, mesmo que ele não esteja indo para o mesmo lugar que eu. Mas quando dobro a esquina, vejo Max de pé em uma sala conferência que tem paredes de vidro, cercado por jovens integrantes da Audácia. O mais velho tem talvez vinte anos, e o mais novo provavelmente não é muito mais velho que eu. Max me vê através do vidro e acena para eu entrar. Eric se senta perto dele – puxa-saco, penso – enquanto sento na outra ponta da mesa, entre uma menina com uma argola no nariz e um garoto cujo cabelo tem um brilhante tom de verde, que impede que eu olhe diretamente para ele. Eu me sinto simples em comparação – posso ter tatuado as chamas da Audácia em minha lateral durante a iniciação, mas não é como se ela estivesse aparecendo.
— Acho que todo mundo está aqui, então vamos começar.
Max fecha a porta da sala de conferência e para diante de nós. Ele parece estranho em um ambiente tão comum, como se estivesse aqui para quebrar todos os vidros e causar o caos em vez de conduzir esta reunião.
— Você todos estão aqui porque mostraram potencial, em primeiro lugar, mas também porque já exibiram entusiasmo pela nossa facção e por seu futuro.
Eu não sei como fiz isso.
— Nossa cidade está mudando mais rápido agora do que nunca, e a fim de acompanhá-la, teremos que mudar, e muito. Temos que ficar mais fortes, mais corajosos, melhor do que estamos agora. E entre vocês estão as pessoas que podem nos levar até lá, mas vamos ter que descobrir quem elas são. Faremos uma combinação de instrução e testes de habilidades pelos próximos meses, para ensinar o que vocês precisam saber se quiserem se manter no programa, mas também para ver quão rapidamente aprendem.
Isso soa um pouco como algo que a Erudição valorizaria, e não a Audácia – estranho.
— A primeira coisa que vocês farão é preencher esta ficha técnica — diz ele, e eu quase ri.
Há algo ridículo sobre guerreiros da Audácia duros e fortes com uma pilha de papéis que ele chama de “ficha técnica”, mas é claro que algumas coisas tem que ser comuns, porque é mais eficiente dessa forma. Ele passa a pilha em torno da mesa, juntamente com um pacote de canetas.
— Isso tudo nos dirá mais sobre vocês e nos dará um ponto de partida pela qual medir seu progresso. Portanto, é de seu interesse ser honesto e não tentar parecer melhor do que é.
Eu me sinto inquieto, olhando para a folha de papel. Preencho o meu nome, que é a primeiro pergunta, e a minha idade, que é a segunda. A terceira questão pede minha facção de origem, e a quarta, meu número de medos. A quinta quer saber quais são eles. Eu não sei como descrevê-los. Os dois primeiros são fáceis – altura, confinamento – mas e o próximo? E o que eu devo escrever sobre o meu pai, que tenho medo de Víctor Uckermann? Eventualmente eu rabisco perder o controle para o meu terceiro medo e ameaças físicas em espaços confinados para o meu quarto, sabendo que isso está longe de ser verdade.
Mas as próximas questões são estranhas, confusas. Elas são declarações, ardilosamente formuladas, em que tenho que concordar ou discordar. Está tudo bem roubar se for para ajudar alguém. Bem, isso é fácil o suficiente – concordo. Algumas pessoas são mais merecedoras de recompensas do que outras. Talvez. Isso depende das recompensas. O poder deve ser dado apenas para aqueles que querem ganhá-lo. Circunstâncias difíceis formam pessoas mais fortes. Você não sabe quão forte uma pessoa realmente é, até ela ser testada. Olho em volta da mesa para os outros. Algumas pessoas parecem intrigadas, mas ninguém parece como eu – perturbado, quase com medo de circular uma resposta abaixo de cada afirmativa.
Eu não sei o que fazer, então marco “Concordo” em cada uma e devolvo a minha folha como todos os outros.


 


 


 


 


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Zeke e sua acompanhante, Maria, estão pressionados contra uma parede em um corredor ao lado do Abismo. Posso ver suas silhuetas daqui. Parece que eles ainda estão agarrados um no outro como estavam há cinco minutos quando fui lá pela primeira vez, rindo como idiotas o tempo todo. Cruzo meus braços e olho para trás, para Nicole.
— Então — eu digo.
— Então — diz ela, inclinando-se para frente nas pontas dos pés e voltando para trás, colocando o peso nos calcanhares novamente. — Isso é um pouco estranho, certo?
— Sim — respondo, aliviado. — É.
— Há quanto tempo você é amigo de Zeke? Eu não o vi muito por aqui.
— Há algumas semanas. Nós nos conhecemos durante a iniciação.
— Oh — ela diz. — Você era um transferido?
— Hum... — Eu não quero admitir que fui transferido da Abnegação, em parte porque sempre que admito isso, as pessoas começam a pensar que sou nervoso, e em parte porque não gosto de atirar ao vento dicas sobre o meu parentesco quando pode evitá-lo. Eu decido mentir. — Não, eu apenas... ficava na minha antes disso, eu acho.
— Oh — ela estreita os olhos um pouco. — Você deve ter sido muito bom nisso.
— Uma das minhas especialidades — eu digo. — Há quanto tempo você é amiga de Maria?
— Desde que éramos crianças. Ela podia tropeçar e cair e já arranjava um encontro com alguém. Outros de nós não são tão talentosos.
— É — balanço minha cabeça. — Zeke teve que me dar um empurrãozinho para eu vir.
— Realmente — Nicole levanta uma sobrancelha. — Será que ele, pelo menos, te mostrou o que estava por vir?
Ela aponta para si mesma.
— Hã, sim. Eu não tinha certeza se você era do meu tipo, mas pensei que talvez...
— Não faço o seu tipo — de repente ela soa fria.
Eu tento voltar atrás.
— Quero dizer, eu não acho que isso é tão importante — eu falo. — A personalidade é muito mais importante do que...
— Do que minha aparência insatisfatória? — Ela ergue as sobrancelhas.
— Isso não foi o que eu disse. Eu... eu sou realmente terrível nisso.
— Sim — ela concorda. — Você é.
Ela pega a pequena bolsa preta que descansava contra seus pés e a enfia sob o braço.
— Diga Maria que tive que ir para casa mais cedo.
Ela caminha para longe da grade e desaparece em um dos caminhos próximos ao Abismo. Eu suspiro e olho para Zeke e Maria novamente. Posso dizer pelos movimentos fracos que eles ainda não abrandaram o namoro. Aperto as mãos contra a grade. Agora que nosso encontro duplo tornou-se um estranho encontro em forma de triângulo, deve estar tudo bem eu ir.
Vejo Shauna saindo do refeitório e aceno para ela.
— Não é esta noite o seu grande encontro com Ezekiel? — pergunta ela.
— Ezekiel — repito, balançando a cabeça. — Esqueci que esse era o nome dele na verdade. Sim, o meu encontro apenas acabou.
— Essa é boa — diz ela, rindo. — Durou quanto, dez minutos?
— Cinco — corrijo, e eu me pego rindo muito. — Aparentemente eu sou insensível.
— Não — ela diz com falsa surpresa. — Você? Mas você é tão sentimental e doce!
— Engraçadinha. Onde está Lynn?
— Ela começou a discutir com Hector. Nosso irmão mais novo — diz ela. — E eu os tenho ouvido fazer isso por, oh, pela vida inteira. Então saí. Pensei em ir para a sala treinamento, fazer algum exercício por lá. Quer ir?
— Sim — respondo. — Vamos.
Nos dirigimos para a sala de treinamento, mas então percebo que teremos que passar pelo mesmo corredor que Zeke e Maria estão ocupando para chegar lá. Tento parar Shauna com uma mão, mas é tarde demais, ela vê os dois corpos pressionados juntos, seus olhos arregalados. Ela para por um momento, e eu ouço ruídos de beijo que desejaria não ter ouvido. Então ela se move pelo corredor novamente, andando tão rápido que eu tenho que correr para alcançá-la.
— Shauna...
— Sala de treinamento — diz ela.
Quando chegarmos lá, ela vai imediatamente para o saco de pancadas, e eu nunca a vi golpear tão forte antes.


 


 


 


 


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— Embora possa parecer estranho, é importante para o alto nível da Audácia entender como alguns programas funcionam — diz Max. — O programa de vigilância na sala de controle é algo óbvio – um líder da Audácia muitas vezes terá que acompanhar as coisas que acontecem na facção. Depois, há os programas da simulação, que você tem que entender a fim de avaliar os iniciados da Audácia. Além do programa de rastreamento da moeda, que mantém o comércio corrente em nossa facção sem problemas, entre outros. Alguns programas são bastante sofisticados, o que significa que você terá que aprender habilidades computacionais facilmente, se você ainda não a tem. Isso é o que vamos fazer hoje.
Ele aponta para a mulher que está a seu lado esquerdo. Reconheço-a do jogo de Desafio. Ela é jovem, com mechas roxas em seu cabelo curto e mais piercings do que posso facilmente contar.
— A Lauren aqui lhes ensinará um pouco do básico, e depois iremos testá-los — diz Max. — Lauren é uma de nossas instrutoras de iniciação, mas em seu tempo livre ela atua como uma técnica de informática na sede da Audácia. É uma pequena parte Erudita dela, mas deixamos isso passar por uma questão de conveniência.
Max pisca para ela, e ela sorri.
— Vá em frente — diz ele. — Estarei de volta em uma hora.
Max sai, e Lauren bate as palmas uma vez.
— Certo — ela diz. — Hoje falaremos sobre como funciona a programação. Aqueles de vocês que já tem alguma experiência com isso, por favor, sintam-se livres para se adequar. O resto é melhor você manter o foco, porque eu não sou de repetir. É como aprender uma língua – memorizar as palavras não é o suficiente; você também tem que entender as regras e porque elas trabalham dessa maneira.
Quando eu era mais jovem, me voluntariei nos laboratórios de informática do edifício dos Níveis Superiores para cumprir as minhas horas de dever com a facção – e para sair da casa – e aprendi a pegar um computador desmontado e remontá-lo novamente. Mas nunca aprendi sobre programação. A próxima hora passa em um borrão de termos técnicos que mal consigo acompanhar. Tento anotar algumas observações em um pedaço de papel que encontrei no chão, mas ela está indo tão rápido que é difícil para a minha mão manter o mesmo ritmo dos ouvidos, de modo que eu abandono o esforço depois de alguns minutos e apenas tento prestar atenção. Ela mostra exemplos do que está falando em uma tela na parte dianteira da sala, e é difícil não se distrair com a vista das janelas atrás dela – desse ângulo a Caverna mostra o horizonte da cidade, os pinos do Eixo perfurando o céu, o pântano que espreita entre o vislumbre dos edifícios.
Eu não sou o único que parece oprimido – os outros candidatos sussurram entre si freneticamente, pedindo definições que eles perderam. Eric, no entanto, se senta confortavelmente em sua cadeira, desenhando nas costas da mão. Sorrindo. Eu reconheço aquele sorriso. É claro que ele já sabe de tudo isso. Deve ter aprendido na Erudição, provavelmente quando era criança, ou então ele não pareceria tão presunçoso.
Antes que eu possa realmente registrar a passagem do tempo, Lauren pressiona um botão para a tela retirar-se para o teto.
— Na área de trabalho do seu computador, vocês encontrarão um arquivo marcado como “Teste de programação” — ela diz. — Abra-o. Ele irá levá-los a um exame cronometrado. Você passará por uma série de pequenos programas e deve marcar os erros que acha que são a causa do mau funcionamento. Podem ser coisas realmente grandes, como a ordem do código, ou coisas realmente pequenas, como uma palavra mal colocada ou marcada. Vocês não têm que corrigi-los agora, mas terá que ser capaz de identificá-los. Haverá um erro por programa. Comecem.
Todo mundo começa a clicar freneticamente em seus monitores. Eric se inclina para mim e diz:
— Será que a sua casa Careta tinha mesmo um computador, Quatro?
— Não — respondo.
— Bem, veja, é assim que você abre um arquivo — diz ele com um toque exagerado em sua tela. — Veja, se parece com papel, mas na verdade é apenas uma imagem em uma tela – você sabe o que é uma tela, certo?
— Cale a boca — eu digo enquanto abro o teste.
Encaro o primeiro programa. É como aprender uma língua, eu digo para mim mesmo. Tudo tem que começar na ordem certa e terminar na ordem inversa. Apenas certifique-se de que tudo está no lugar certo.
Eu não começo no início do código, em vez disso faço o meu caminho para baixo – procuro o núcleo mais interno do código dentro de todo o invólucro. Lá, noto que a linha de códigos termina no lugar errado. Eu marco o local e pressiono o botão com uma seta, que me permitirá continuar o exame se eu estiver certo. A tela muda, me apresentando um novo programa.
Ergo minhas sobrancelhas. Devo ter absorvido mais do que eu pensava.
Eu começo o próximo da mesma forma, me movendo do centro do código para o exterior, checando o topo do programa e o fim, prestando atenção à cotação marcas, períodos e barras invertidas. Procurar por erros de código é estranhamente reconfortante, apenas uma maneira de ter certeza de que o mundo ainda está na mesma ordem em que deveria estar, e desde que esteja, tudo vai correr bem.
Eu esqueço todas as pessoas ao meu redor, até mesmo a linha do horizonte além de nós, esqueço sobre o que o término deste exame dirá. Só concentrar no que está em minha frente, no emaranhado de palavras em meu monitor. Percebo que Eric termina em primeiro lugar, muito antes de qualquer outra pessoa parecer pronta para concluir seu exame, mas eu tento não me preocupar. Mesmo quando ele decide ficar ao meu lado olhando por cima do meu ombro enquanto eu trabalho.
Finalmente, toco no botão de seta e uma nova imagem aparece. EXAME COMPLETO, diz.
— Bom trabalho — diz Lauren, quando ela passa para ver o meu monitor. — Você é o terceiro a terminar.
Eu me viro para Eric.
— Espere — eu digo. — Você não estava prestes a me explicar o que é uma tela? Obviamente eu não tenho conhecimentos de informática o suficiente, então eu realmente preciso de sua ajuda.
Ele olha furioso para mim, e eu sorrio.


 


 


 


 


                                                           + + +


 


 


 


 


A porta do meu apartamento está aberta quando volto. Apenas alguns centímetros, mas eu sei que a fechei antes de sair. Abro-a com a ponta do tênis e entro com o coração batendo forte, esperando encontrar um intruso vasculhando minhas coisas, embora eu não tenha certeza de quem – um dos lacaios de Jeanine em busca de evidências de que eu seja diferente da mesma forma que Amar era, ou talvez Eric, procurando uma maneira de me emboscar. Mas o apartamento está vazio e inalterado.
Inalterado, exceto pelo papel sobre a mesa. Eu e pego lentamente, como se pudesse explodir em chamas ou se dissolver no ar. Há uma mensagem escrita nele em uma caligrafia pequenas e inclinada.


No dia em que mais odiou
No momento em que ela morreu
No lugar onde você saltou pela primeira vez.


No início as palavras são um absurdo para mim, acho que elas são uma piada, algo deixado aqui para me provocar, e funciona, porque sinto-me cambaleante. Sento em uma das cadeiras frágeis, duro, sem mover os olhos do papel. Li-o uma e outra vez, e a mensagem começa a tomar forma em minha mente.
No lugar onde você saltou pela primeira vez. Isso deve significar a plataforma de trem em que subi depois de ter acabado de entrar para a Audácia.
No momento em que ela morreu. Só há uma “ela” a que se poderia referir: minha mãe. Minha mãe morrera na calada da noite, quando eu acordara, o corpo já tinha ido embora, levado por meu pai e seus amigos da Abnegação. Sua hora de morte foi estimada em torno das duas horas da manhã, dissera ele.
No dia em que mais odiou. Essa é a mais difícil – se refere a um dia do ano, um aniversário ou um feriado? Nenhum desses está próximo, e não vejo por que alguém deixaria um bilhete com tanta antecedência. Deve referir-se a um dia da semana, mas que dia da semana eu mais odeio? Isso é fácil – dias de reunião do conselho, porque o meu pai ficava fora até tarde e voltava para casa de mau humor. Quarta-feira.
Quarta-feira, duas da manhã, na plataforma de trem perto do Eixo. É esta noite. E só há uma pessoa no mundo que saberia todas essas informações: Víctor.


 


 


 


 


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Eu estou apertando o pedaço de papel em minha mão fechada em punho, mas não consigo senti-lo. Minhas mãos estão formigando e dormentes desde que pensei pela primeira vez em seu nome.
Deixei a porta do apartamento aberta, os meus sapatos estão desamarrados. Eu me movo ao longo das paredes do Abismo, sem perceber quão alto estou. Corro até a escada para a Caverna, sem me sentir tentado a olhar para baixo. Zeke mencionou de passagem a localização da sala de controle alguns dias atrás. Só espero que ele esteja lá agora, porque vou precisar de sua ajuda se eu quiser acessar as filmagens do corredor do lado de fora do meu apartamento. Eu sei onde está à câmera, escondida no canto onde eles acham que ninguém vai notar. Bem, eu notei.
Minha mãe costumava observar essas coisas também. Quando andávamos pelo setor da Abnegação, só nós dois, ela me mostrava as câmeras, escondidas em bolhas de vidro escuro ou fixas nas bordas dos edifícios. Ela nunca dizia nada sobre elas, ou parecia preocupada, mas ela sempre sabia onde elas estavam, e quando passava por elas, fazia questão de olhar diretamente para a câmera, como se dissesse: Eu também vi você. Então eu cresci procurando, explorando, prestando atenção nos detalhes ao meu redor.
Subi de elevador até o quarto andar, em seguida, segui as indicações até a sala de controle. É um corredor curto, e na curva, a porta estava escancarada. Uma parede de telas me recebe – algumas pessoas estavam sentadas atrás dos monitores em suas mesas de trabalho, e depois há outras mesas ao longo das paredes, onde mais pessoas se sentam, cada um com uma tela própria.
Uma filmagem era trocada a cada cinco segundos, mostrando diferentes partes da cidade – os campos da Amizade, as ruas ao redor do Eixo, o complexo da Audácia, até mesmo o Mart Impiedoso, com seu grande átrio.  Vislumbro o setor de Abnegação em uma das telas, em seguida, volto a procurar por Zeke. Ele está sentado em uma mesa na parede direita, digitando algo em uma caixa de diálogo na metade esquerda de sua tela, enquanto filmagens do Abismo aparecem na metade direita. Todos na sala estão usando fones de ouvido – ouvindo, eu presumo, a tudo o que eles deveriam estar assistindo.
— Zeke — chamo baixinho.
Alguns dos outros olham para mim, como se estivessem me repreendendo por me intrometer, mas ninguém diz nada.
— Ei! — ele diz. — Estou feliz que tenha vindo, eu estou entediado. O que há de errado?
Ele olha do meu rosto para o meu punho, ainda cerrado em torno do papel. Eu não sei como explicar, então nem tento.
— Eu preciso ver as filmagens do corredor do lado de fora do meu apartamento, desde as ultimas quatro horas ou mais. Você pode ajudar?
— Por quê? O que aconteceu? — Zeke me pergunta.
— Tinha alguém andando por lá, e quero saber quem — respondo.
Ele olha em volta, verificando se alguém estava vendo. Ou ouvindo.
— Olha, eu não posso fazer isso, ainda não estamos autorizados a puxar coisas específicas a menos que vejamos algo estranho, está tudo em loop.
— Você me deve um favor, lembra-se? — insisto. — Eu jamais pediria se não fosse importante.
— É, eu sei.
Zeke olha em volta novamente, em seguida, fecha a caixa de diálogo que tinha aberto e abriu outra. Eu observo o código que ele digita para procurar as filmagens certas, e estou surpreso ao descobrir que entendo um pouco disso, após a lição do dia. Uma imagem aparece na tela, de um dos corredores da Audácia perto do refeitório. Ele clica, e outra imagem aparece, esta do interior da do refeitório; a próxima é do estúdio de tatuagem, e em seguida, o hospital. Ele continua percorrendo o complexo da Audácia, e vejo as imagens enquanto elas vão passado, mostrando vislumbres momentâneos de vida comum na Audácia, as pessoas brincando com seus piercings enquanto esperam na fila por roupas novas, gente praticando socos na sala de treinamento. Vejo em um lampejo Max no que parece ser o seu escritório, sentado em uma das cadeiras, uma mulher em frente a ele. Uma mulher com cabelos loiros amarrados para trás em um nó apertado. Coloco a mão no ombro de Zeke.
— Espere — o papel em minha mão parece um pouco menos urgente. — Volte.
Ele o faz, e confirmo o que eu suspeitava: Jeanine Matthews está no escritório de Max, com uma pasta em seu colo. Suas roupas são totalmente coladas ao corpo, sua postura reta. Pego os fones de ouvido de Zeke, e ele fecha a cara para mim, mas não me para.
As vozes de Jeanine e de Max estão baixas, mas ainda posso ouvi-los.
— Eu os rebaixei a seis — Max está dizendo. — Eu diria que é muito bom para o... o quê? O segundo dia?
— Isto é ineficiente — Jeanine fala. — Nós já temos o candidato. Eu asseguro. Esse sempre foi o plano.
— Você nunca me perguntou o que eu achava do plano, e está é a minha parte — Max diz secamente. — Eu não gosto dele, e não quero passar todos os meus dias trabalhando com alguém de quem não gosto. Então você terá que me deixar pelo menos, tentar encontrar alguém que atenda a todos os critérios...
— Tudo bem — Jeanine estava pressionando sua pasta contra o estômago. — Mas quando você não conseguir isso, espero que admita. Não tenho paciência para orgulho da Audácia.
— É claro, porque a Erudição é mesmo muito humilde — Max responde amargamente.
— Ei — Zeke sussurra. — Meu supervisor está olhando, me devolva os fones.
Ele puxa os fones das minhas orelhas com força, me machucando um pouco no processo, fazendo-as arder.
— Você tem que sair daqui ou vou perder meu emprego — Zeke diz.
Ele parece sério e preocupado. Eu não me oponho, apesar de não ter descoberto o que precisava saber – foi minha própria culpa ele ter se distraído de qualquer maneira.
Saio da sala de controle, minha mente disparando, metade de mim ainda apavorado com a ideia de que meu pai esteve no meu apartamento, que ele queira que eu o encontre sozinho em uma rua abandonada no meio da noite, a outra metade confusa com o que acabei de ouvir. Nós já temos o candidato. Eu asseguro. Eles devem ter falado sobre o candidato à liderança de Audácia. Mas por que é que Jeanine Matthews está preocupada com quem será apontado como o próximo líder da Audácia?
Faço o caminho de volta para o meu apartamento sem prestar atenção, em seguida, me sento na beira da cama e olho para a parede oposta. Eu fico pensando, pensamentos distintos, mas igualmente frenéticos. Por que Víctor quer se encontrar comigo? Por que a Erudição está envolvida na política da Audácia? Será que Víctor quer me matar sem testemunhas, ou ele quer me alertar sobre alguma coisa? Ou me ameaçar...? Quem era o candidato de quem eles estavam falando?
Pressiono as mãos na testa e tento me acalmar, embora eu sinta cada pensamento nervoso como uma pontada na parte de trás da minha cabeça. Eu não posso fazer nada sobre Max e Jeanine agora. O que tenho que decidir agora é se irei ao encontro desta noite.
Esse é o dia que mais odiei. Eu nunca soube que Marcus notava em mim, sabia das coisas que eu gostava ou detestava. Parecia que ele só me via como alguém inconveniente, alguém irritante. Mas não aprendi algumas semanas atrás que ele sabia que as simulações não funcionariam em mim, e tentou me ajudar a ficar fora de perigo? Talvez, apesar de todas as coisas horríveis que ele fez e disse para mim, haja uma parte dele que é na verdade o meu pai, talvez seja essa a parte dele que está me convidando para esse encontro, e ele está tentando me mostrar, me dizendo que me conhece, que sabe o que eu odeio, o que amo, o que temo. Eu não sei por que esse pensamento me enche de esperança, mesmo eu tendo o odiado por tanto tempo. Mas talvez, assim como há uma parte dele que é realmente meu pai, talvez haja também uma parte de mim que é realmente seu filho.


 


 


 


 


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Ainda sinto o calor do sol saindo da calçada à uma e meia da manhã, quando deixo o complexo da Audácia. Posso senti-lo em meus pés. A lua está encoberta pelas nuvens, por isso as ruas estão mais escuras do que o habitual, mas eu não tenho medo do escuro, ou das ruas, não mais. Essa é uma das coisas que se pode aprender sendo um iniciado da Audácia.
Respiro o cheiro de asfalto quente e vou andando lentamente, meu tênis batendo no chão. As ruas que cercam o setor da Audácia da cidade estão vazias. Minha vida solitária está cada vez mais separada de todo o mundo, diferente das outras pessoas que se parecem com uma matilha de cães dormindo. Percebo que é por isso que Max parecia tão preocupado com a minha vida solitária. Se eu estou realmente na Audácia, eu não deveria querer que a minha vida se misturasse com a deles tanto quanto possível, não deveria procurar maneiras de me afundar na vida da facção até que nós fôssemos totalmente inseparáveis?
Eu considero tudo isso enquanto corro. Talvez ele esteja certo. Talvez eu não esteja fazendo um trabalho muito bom de integração; talvez eu não esteja me esforçando o suficiente. Continuo em um ritmo constante, vendo as placas das ruas ao passar por elas, tentando manter o controle de onde estou indo. Sei que quando eu alcançar o anel de edifícios haverá pessoas por aquele lado, porque posso ver suas sombras se movendo ao redor das luzes contra a janela. Passo a caminhar sobre os trilhos do trem, a madeira das treliças estendendo-se muito à frente de mim e curvando-se para longe da rua.
O Eixo cresce cada vez mais aos meus olhos enquanto me aproximo. Meu coração está batendo muito rápido, mas não acho que seja pelo fato de eu estar correndo. Paro bruscamente quando chego à plataforma do trem, e enquanto estou ao pé da escada, recuperando o fôlego, eu me lembro de quando escalei pela primeira aqueles degraus, o mar de Audaciosos vaiando e se movendo em volta de mim, me empurrando para frente. Foi fácil ser carregado por seu ímpeto. Mas eu tenho que continuar agora. Começo a subir, meus passos ecoando no metal, e quando chego ao topo, verifico meu relógio. Duas horas.
Mas a plataforma está vazia.
Ando de um lado para o outro, para garantir que nenhuma sombra fique escondida em cantos escuros. Ouço trem à distância, e faço uma pausa para olhar os faróis que se aproximam. Eu não sabia que os trens funcionavam a esta hora – toda a energia na cidade deveria ser desligada depois da meia-noite para economizar energia. Eu me pergunto se Víctor pediu à facção por um favor especial. Mas por que ele viajaria de trem? O Víctor Uckermann que conheço nunca se atreveria a se associar tão intimamente com a Audácia. Ele preferiria andar pelas ruas com os pés descalços.
A luz do trem pisca, apenas uma vez, antes de passar pela plataforma. Ele freia e balança, andando devagar, mas sem parar, e vejo alguém saltando do segundo ao último carro, enxuta e ágil. Não Víctor. Uma mulher. Eu aperto o papel mais forte na minha mão, e mais forte, até que meus dedos doem. A mulher caminha em minha direção, e quando ela está a poucos metros de distância, eu posso vê-la. Longos cabelos crespos. Nariz proeminente em forma de gancho. Calça preta da Audácia, camisa cinza da Abnegação, botas marrons da Amizade. O rosto dela é alinhado, gasto, fino. Mas eu sei quem é ela, eu nunca poderia esquecer seu rosto: minha mãe, Alexandra Uckermann.
— Christopher.
Ela segura a respiração, de olhos arregalados, como se estivesse tão espantada comigo como eu estou com ela, mas isso é impossível. Ela sabia que eu estava vivo. Mas eu me lembro da urna contendo as cinzas dela em cima da lareira do meu pai, marcada com suas impressões digitais. Eu me lembro do dia em que acordei em um grupo grande da Abnegação enquanto meu pai estava na cozinha e como todos eles olharam para cima quando eu entrei, e como Víctor me explicou, com simpatia, mesmo eu sabendo que ele não sentia nada, que a minha mãe tinha passado, no meio da noite, pelas complicações do início de trabalho de parto e então um aborto.
Ela estava grávida? Eu me lembro de perguntar.
É claro que ela estava, filho. Ele se virou para as outras pessoas na nossa cozinha. Ele está apenas chocado, é claro. Algo normal, com um acontecimento desses.
 Eu me lembro de estar com um prato cheio de comida, na sala de estar, com um grupo da Abnegação murmurando em torno de mim, toda a vizinhança arrumando a casa e ninguém dizia nada para me consolar.
— Eu sei que isso deve ser... chocante para você — ela fala.
Quase não reconheço sua voz; é mais baixa, forte e dura do que em minhas lembranças dela, e é assim que sei que os anos mudaram-na. São muitas coisas administrar, muitos sentimentos fortes para controlar, e então, de repente, eu não sinto absolutamente nada.
— Você deveria estar morta — eu digo categórico.
É uma coisa estúpida de se dizer. A coisa mais estúpida de se dizer a sua mãe quando ela volta dos mortos, mas é uma situação estúpida.
— Eu sei — ela diz, e acho que ela está com lágrimas nos olhos, mas está escuro demais para ter certeza. — Eu não estou morta.
— Obviamente — a voz que vem da minha boca é sarcástica, casual. — Alguma vez você esteve mesmo grávida?
— Grávida? Foi isso o que eles te disseram, alguma coisa sobre morrer no parto? — Ela balança a cabeça. — Não, eu não estava. Eu estava planejando a minha fuga há meses. Eu precisava desaparecer. Pensei que ele poderia lhe dizer quando tivesse idade suficiente.
Deixei escapar uma risada curta, quase um rosnado.
— Você achou que Víctor Uckermann admitiria que sua esposa o deixou? Admitiria para mim?
— Você é o filho dele — Alexandra respondeu, franzindo a testa. — Ele te ama.
Em seguida, toda a tensão da última hora, das últimas semanas, dos últimos anos se erguem dentro de mim, é muito para se conter, e eu realmente rio. Mas soa estranho, mecânico. Isso me assusta, mesmo que seja a minha própria risada.
— Você tem o direito de estar com raiva por ter sido enganado... — ela começa. — Gostaria de estar com raiva, também. Mas Christopher, eu tive que sair, eu sei que você entende o por que... — Ela chega perto de mim, e eu seguro seu pulso para afastá-la.
— Não toque em mim!
— Tudo bem, tudo bem — ela coloca as mãos para cima e se afasta.
— Mas você entende, você tem que entender.
— Entender o quê? Que você me deixou sozinho em uma casa com um maníaco sádico?
Parece que algo dentro dela está entrando em colapso. Suas mãos caem para os lados, como dois pesos. Seus ombros caem. Até mesmo seu semblante cai, enquanto tudo repercute em sua expressão e eu não sei o que dizer, o que devo dizer.
Cruzo os braços e coloco os ombros para trás, tentando parecer tão grande e forte e o mais duro possível. É mais fácil agora, no escuro da Audácia, do que jamais foi no cinza da Abnegação, e talvez seja por isso que eu escolhi a Audácia como um refúgio. Não por maldade, ou para ferir Víctor, mas porque eu sabia que esta vida iria me ensinar uma maneira de ser mais forte.
— Eu... — ela começou.
— Pare de desperdiçar meu tempo. O que estamos fazendo aqui? — Lanço o bilhete amassado no chão entre nós e levanto as sobrancelhas para ela. — Faz sete anos desde que você morreu, e você nunca tentou fazer essa revelação dramática antes, então o que há de diferente agora?
No início, ela não responde. Em seguida, ela se reconstrói, visivelmente, e diz:
— Nós, sem facção, gostamos de manter um olho nas coisas. Coisas como a Cerimônia de Escolha. Desta vez, os nossos observadores me disseram que você escolheu Audácia. Eu teria ido atrás de você, mas eu não quis arriscar. Eu me tornei um... um tipo de líder para os sem facção, e é importante eu não me expor.
Sinto aquele gosto azedo.
— Bem, que ótimo… Que pais importantes eu tenho. Eu sou muito sortudo.
— Isto não é como você acha — diz ela. — Não há nem mesmo uma pequena parte de você feliz em me ver novamente?
 — Feliz em te ver novamente? Eu mal me lembro de você, Alexandra. Vivi minha vida toda sem você.
Sua feição se contorce. Acertei na ferida dela. Estou feliz por isso.
— Quando você escolheu a Audácia — ela continua lentamente. — Eu sabia que era hora de vir até você. Sempre planejei encontrá-lo depois que você escolhesse e estivesse em sua própria facção, de modo que eu poderia convidá-lo a se juntar a nós.
— Me juntar a vocês — repeti. — Me tornar um sem facção? Por que eu iria querer isso?
— Nossa cidade está mudando, Chrstopher.
É a mesma coisa que Max disse ontem.
— Os sem facção estão se unindo, e por isso a Audácia e a Erudição também. Em breve, todos terão de escolher um lado, e eu sei que você preferiria estar conosco. Acho que você pode realmente fazer a diferença com a gente.
— Você sabe com qual deles eu preferiria estar. Realmente. Eu não sou um traidor de facção. Eu escolhi Audácia; que é aonde eu pertenço.
— Você não é um daqueles idiotas em busca de perigo — ela exclama — assim como você não era um robô Careta sufocado. Você pode ser maior do que qualquer um, maior do que qualquer facção.
— Você não tem ideia do que eu sou ou do que posso ser. Eu fui o primeiro classificado dos iniciados. Eles querem que eu seja um líder da Audácia.
— Não seja ingênuo — ela diz, estreitando os olhos para mim. — Eles não querem um novo líder; eles querem um peão que possam manipular. É por isso que Jeanine Matthews frequenta a sede de Audácia, é por isso que ela continua plantando servos em sua facção para se informar sobre os seus comportamentos. Você não percebeu que ela parece estar ciente das coisas que acontecem e das mudanças na formação de Audácia, como uma nova experiência? Como se a Audácia fosse mudar algo assim.
Amar nos disse que as paisagens do medo não costumavam vir em primeiro lugar na iniciação da Audácia, que era algo novo que eles estavam tentando. Um experimento. Mas ela está certa; Audácia não é de fazer experimentos. Se eles estivessem realmente preocupados com praticidade e eficiência, eles não se incomodariam em nos ensinar a atirar facas.
E depois tem Amar, que acabou morto.
Eu não fui aquele que acusou Eric de ser um informante? Eu já não suspeitava há semanas que ele ainda estava em contato com a Erudição?
— Mesmo que você esteja certa — eu digo, e toda a energia maliciosa sai de mim. Eu me aproximo dela. — Mesmo que você esteja certa sobre a Audácia, eu nunca iria me juntar a você — tento manter minha voz estável e continuo. — Eu nunca mais quero te ver novamente.
— Eu não acredito em você — ela diz baixinho.
— Não me importa em que você acredita.
Eu passo por ela, indo em direção à escada por onde subi para chegar até a plataforma. Ela grita atrás de mim:
— Se você mudar de ideia, qualquer mensagem dada a um dos sem facção chagará até mim.
Eu não olho para trás. Corro pelas escadas e pelas ruas, para longe da plataforma. Eu nem sei se estou indo na direção certa, só o que quero é estar o mais longe possível dela.


 


 


 


 


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Eu não durmo.
Ando em volta do meu apartamento, inquieto. Tiro os restos da minha vida da Abnegação das minhas gavetas e despejo tudo no lixo, a camisa rasgada, as calças, os sapatos, as meias, até o meu relógio. Em algum ponto, por volta do nascer do Sol, lanço o barbeador elétrico contra o chuveiro da parede, e ele se quebra em várias partes.
Uma hora depois do amanhecer, vou para o estúdio de tatuagem. Maite já está lá, bem, “lá” pode ser uma palavra muito forte, porque seus olhos estão inchados de sono e sem foco, e ela está apenas fazendo o seu café.
— Há alguma coisa errada? — ela pergunta. — Eu não estou realmente aqui. Tenho de ir a uma corrida com o Bud, aquele maníaco.
— Espero que possa abrir uma exceção — digo-lhe.
— Não são muitas pessoas que vêm aqui com pedidos de tatuagens urgentes — ela comenta.
— Há uma primeira vez para tudo.
— Está certo — ela se senta, mais desperta agora. — Alguma coisa em mente?
— Você tinha um desenho quando fomos ao seu apartamento há umas semanas. Eram os símbolos de todas as facções juntas. Ainda o tem?
Ela endurece.
— Você não devia ter visto aquilo.
Eu sei por que não devia ter visto, o porquê de ela não querer torná-lo público. O desenho sugere tendências a outras facções, em vez de afirmar a supremacia da Audácia, como se supõem que as tatuagens fazem.
Membros da Audácia já estabelecidos preocupam-se demais com a aparência dos Audaciosos, e eu não sei o que acontece, que tipo de coisas acontecem às pessoas que podem ser chamadas de – traidores de facção – mas é por isso que estou aqui.
— Esse é o ponto — digo. — Quero a tatuagem.
Pensei sobre isso no caminho de casa, quando lembrava no que a minha mãe dizia uma e outra vez: Você pode ser maior do que qualquer um, maior do que qualquer facção. Pensei que para que eu fosse maior do que qualquer facção, eu teria que deixar este lugar e as pessoas que me acolheram como se fosse uma das suas; teria que desculpá-las e deixar de ser consumido pelo seu estilo de vida e crenças.
Mas eu não tenho que sair, e não tenho que fazer nada que eu não queira. Posso ser mais do que qualquer facção aqui na Audácia; talvez eu seja algo mais, e é tempo de mostrar isso.
Maite olha em volta, os seus olhos saltam em direção à câmera no canto, uma em que eu reparei quando entrei. Ela é do tipo que também repara nas câmeras.
— É apenas um desenho estúpido — ela diz em voz alta. — Vamos lá, você está claramente chateado – nós podemos falar sobre isso, encontrar algo melhor para você fazer.
Ela aponta para a parte de trás do estúdio, depois do depósito, para o seu apartamento. Nós passamos pela cozinha em mau estado até à sala de estar, onde os seus desenhos ainda estão espalhados pela mesa na mesa do café.
Ela procura no meio das páginas até que encontra um desenho como aquele de que eu falava, as chamas da Audácia, as mãos em concha da Abnegação, as raízes da árvore da Amizade crescendo por baixo do olho da Erudição, que está equilibrado por baixo da balança da Franqueza. Todos os símbolos das facções organizados uns sobre os outros.
Ela o ergue, e eu aceno.
— Eu não posso fazer isto num lugar onde as pessoas vão ver o tempo todo — ela me fala. — Isso faria com que você fosse um alvo ambulante. Um suspeito de ser traidor de sua facção.
— Eu a quero nas minhas costas — explico. — Cobrindo a minha espinha.
As feridas do último dia com meu pai estão agora curadas, mas quero me lembrar de onde elas estavam; quero me lembrar do que escapei enquanto for vivo.
— Você realmente não faz as coisas por metade, é claro — ela suspira. — Vai levar muito tempo. Várias sessões. Nós vamos ter que fazê-las aqui, depois do expediente, porque eu não vou deixar aquelas câmeras captarem, mesmo que eles não se deem ao trabalho de olhar para cá na maior parte do tempo.
— Tudo bem.
— Sabe, o tipo de pessoa que tem esta tatuagem provavelmente é daquelas que deveriam se manter escondidas — ela diz, olhando-me pelo canto do olho. — Ou então alguém começará a pensar que ela é Divergente.
— Divergente?
— É uma palavra que nós temos para as pessoas que estão conscientes durante as simulações, que se recusam a ser caracterizadas — Maite me explica. — Uma palavra que não se fala sem cuidado, porque essas pessoas normalmente morrem de maneiras misteriosas.
Ela está com os cotovelos apoiados nos joelhos, casualmente, enquanto desenha a tatuagem que quero para o papel de transferência. Os nossos olhos se encontram, e eu percebo: Amar. Amar estava consciente durante as simulações, e agora está morto.
Amar era Divergente.
Assim como eu.
— Obrigada pela aula de vocabulário — digo-lhe.
— Sem problemas — ela volta ao seu desenho. — Tenho a impressão de que gosta de se colocar em perigo.
—E?
— Nada, é só uma grande qualidade da Audácia, para alguém que obteve Abnegação no teste de aptidão — a boca dela se contrai. — Vamos começar. Vou deixar um bilhete para Bud; ele pode correr sozinho só desta vez.


 


 


 


 


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Talvez Maite esteja certa. Talvez eu goste de me por em perigo; talvez haja um traço masoquista dentro de mim que usa a dor para lidar com a dor. A leve queimação que me segue no meu dia seguinte no treinamento de liderança certamente torna mais fácil me focar no que estou prestes a fazer, em vez da indiferença da minha mãe, a sua voz baixa e da maneira como a empurrei para longe de mim quando ela tentou me confortar.
Nos anos seguintes à sua morte, eu costumava sonhar que ela voltaria à vida no meio da noite, passaria a mão pelo meu cabelo e diria algo confortante mas sem sentido, como Vai ficar tudo bem ou Vai ficar melhor algum dia. Mas depois parei de me permitir sonhar, porque era mais doloroso tê-la em imaginação e lidar com o que estava na minha frente. Ainda agora não quero imaginar como seria reconciliar-me com ela, como seria ter uma mãe. Estou demasiado velho para ouvir disparates reconfortantes. Demasiado velho para acreditar que tudo vai ficar bem.
Verifico o topo do curativo que aparece pelo meu colarinho para ter a certeza de que está seguro.
Maite esboçou os primeiros dois símbolos esta manhã, Audácia e Abnegação, que vão ser maiores que os outros, porque são a facção que escolhi e a facção para a qual tenho aptidão, respectivamente – ao menos, penso que tenho aptidão para Abnegação, mas é difícil para mim ter certeza. Ela me disse para mantê-los escondidos. As chamas de Audácia é o único símbolo que fica à vista quando estou vestido com a camiseta, e eu não estou em posição de tirar a minha camisa em público muitas vezes, por isso duvido que seja um problema.
Todos os outros já estão na sala de conferência, e Max está falando com eles. Sinto uma espécie de cansaço imprudente enquanto passo pela porta e sento no meu lugar. Alexandra estava errada sobre muitas coisas, mas não estava errada sobre Audácia – Jeanine e Max querem liderar Audácia, eles querem um peão, e é por isso que estão selecionando os mais novos de nós, porque os jovens são mais fáceis de ser controlados e modelados. Eu não vou ser controlado e modelado por Jeanine Matthews. Não vou ser um peão, nem para eles, nem para a minha mãe e muito menos para o meu pai; não vou pertencer a ninguém senão a mim próprio.
— Que bom que pôde se juntar a nós — Max comenta. — Esta reunião perturbou o seu sono?
Os outros riem, e Max continua.
— Como estava dizendo, hoje eu gostaria de ouvir as suas ideias de sobre como melhorar a Audácia – a visão que vocês têm para a nossa facção nos próximos anos. Vou me juntar a vocês em grupos por idade, os mais velhos primeiro. O resto de vocês pense em algo bom para dizer.
Ele sai com os três candidatos mais velhos. Eric está exatamente à minha frente, e reparo que ele tem mais metal na cara do que da última vez que o vi – agora tem argolas entre as sobrancelhas. Em breve ele vai se parecer mais com uma almofada de alfinetes do que com um ser humano. Talvez esse seja o ponto – estratégia. Ninguém que olhar para para ele agora o confundiria com um Erudito.
— Os meus olhos me enganam, ou você se atrasou para a reunião porque foi fazer uma tatuagem? — ele diz, apontando para o canto do curativo que está visível por cima do meu ombro.
— Perdi a noção do tempo. Parece que um monte de metal se agarrou à sua cara recentemente. Seria melhor ver isso.
— Engraçado. Não tinha a certeza de que alguém com a sua história poderia possivelmente desenvolver um senso de humor. O seu pai não parece do tipo que o permite.
Sinto uma pontada de medo. Ele está muito perto de dizer o meu nome na frente dessa sala cheia de gente, e ele quer que eu saiba que ele conhece meu nome, e que pode usá-lo contra mim sempre que quiser.
Não consigo fingir que não me incomoda. A dinâmica de poder mudou, e não posso fazê-la mudar novamente.
— Acho que sei quem te disse isso — falo.
Jeanine Matthews sabe o meu nome e o meu sobrenome. Ela deve ter-lhe contado.
— Eu tinha quase certeza — ele diz numa voz baixa. — Mas as minhas suspeitas foram confirmadas através de uma fonte confiável, sim. Você não é tão bom em esconder segredos como pensa, Quatro.
Eu o ameaçaria, lhe diria que se ele revelasse o meu nome para os integrantes da Audácia, eu revelaria as suas ligações com a Erudição. Mas não tenho nenhuma prova, e a Audácia não gosta da Abnegação mais do que da Erudição, de qualquer maneira.
Recosto-me na cadeira e espero.
As outras filas saem quando são chamadas, e rapidamente somos os únicos que restam. Max faz o seu caminho pelo corredor e acena para nós da porta, sem uma palavra. Nós o seguimos até seu escritório, que reconheço pelas filmagens da reunião de ontem com a Jeanine Matthews. Uso a memória dessa conversa para me preparar pelo o que vem a seguir.
— Então — Max dobra as suas mãos em cima da escrivaninha, e de novo estou impressionado sobre como é estranho vê-lo num ambiente limpo e formal.
Ele pertence a uma sala de treinamento, batendo em um saco de pancadas, ou ao lado do Abismo, inclinando-se sobre a rede. Não sentado em uma mesa de madeira rodeado de papéis.
Olho pela janela do complexo para o setor da Audácia da cidade. Alguns metros mais longe consigo ver a borda do buraco por onde pulei quando escolhi a Audácia, e o telhado em que estava pouco antes disso. Eu escolhi a Audácia, falei à minha mãe ontem. É aonde pertenço.
Será mesmo a verdade?
— Eric, vamos começar por você — Max diz. — Tem ideias para o avanço e desenvolvimento da Audácia?
— Tenho — Eric se senta. — Penso que precisamos fazer algumas mudanças, e que elas deveriam começar durante a iniciação.
— Que tipo de mudanças tem em mente?
— A Audácia sempre foi ligada a um espírito competitivo — Eric diz. — A competição nos faz melhor; revela o melhor, a nossa parte mais forte. Penso que a iniciação deve promover esse espírito de competição mais do que faz atualmente, para produzir os melhores iniciados possíveis. Agora os iniciados só competem contra o sistema, esforçando-se por um determinado resultado para seguirem em frente. Eu acho que eles deveriam competir uns contra os outros por lugares na Audácia.
Não consigo evitar; eu me viro e o encaro. Um número limitado de membros? Numa facção? Depois de apenas duas semanas de treino de iniciação?
— E se eles não conseguirem um lugar?
— Eles tornam-se sem facção — ele responde. Engulo uma risa irônica. Eric continua: — Se nós acreditamos que a Audácia é realmente a facção superior, que os seus objetivos são mais importantes do que os objetivos das outras facções, então se tornar um de nós deveria ser uma honra e um privilégio, não um direito.
— Você está brincando? — pergunto, incapaz de me conter por mais tempo. — As pessoas escolhem uma facção porque os seus valores são os mesmos que os valores dessas facções, não porque eles já são peritos no que a facção ensina. Estaria expulsando pessoas da Audácia só porque não são fortes o suficiente para saltar de um trem ou vencer uma luta. Favoreceria os maiores, mais fortes e impiedosos mais do que os pequenos, inteligentes e corajosos – não melhoraria a Audácia de todo.
— Tenho certeza de que os pequenos e inteligentes estariam melhor na Erudição, ou com vestimentas cinzentas — Eric diz com um sorriso torto. — E não acho que você esteja dando aos nossos potenciais novos membros da Audácia crédito suficiente, Quatro. Este sistema favoreceria os mais determinados.
Olho para Max. Espero que ele não se pareça impressionado pelo plano do Eric, mas ele parece.
Ele está inclinado para frente, com foco no rosto perfurado de Eric como se isso o inspirasse.
— Este é um debate interessante — Max diz. — Quatro, como você melhoraria a Audácia, senão fazendo a iniciação mais competitiva?
Balanço a cabeça, olhando para a janela outra vez. Você não é um daqueles idiotas em busca de perigo, a minha mãe me disse.
Mas essas são as pessoas que Eric quer na Audácia: idiotas que procuram o perigo. Se Eric é um lacaio de Jeanine Matthews, então porque Jeanine iria encorajá-lo a propor este tipo de plano?
Oh. Porque estúpidos, tolos em busca de perigo são mais fáceis de controlar, mais fáceis de manipular. Obviamente.
— Eu melhoraria a Audácia promovendo uma bravura verdadeira em vez de estupidez e brutalidade — eu digo. — Retire os lançamentos das facas. Prepare as pessoas física e mentalmente para defender os fracos dos fortes. Isso é o que nosso manifesto incentiva – atos comuns de bravura. Acho que devemos voltar a ser assim.
— E depois todos damos as mãos e cantamos juntos, certo? — Eric revira os olhos. — Você quer transformar a Audácia na Amizade.
— Não. Eu quero ter a certeza de que ainda sabemos pensar por nós mesmos, pensar mais além da próxima onda de adrenalina. Ou apenas pensar, ponto. Dessa maneira não podemos ser controlados pelo exterior.
— Soa bastante como a Erudição para mim — Eric observa.
— A habilidade de pensar não é exclusiva de alguém Erudito — replico. — A habilidade de pensar em situações estressantes é supostamente o que as paisagens do medo deviam desenvolver.
— Muito bem, muito bem — Max diz, erguendo as suas mãos. Ele parece preocupado. — Quatro, lamento dizer isto, mas você soa um pouco paranoico. Quem iria nos controlar, ou tentaria fazer isso? As facções coexistem pacificamente há mais tempo do que possa acreditar, não há razão para mudar isso.
Abro a boca para dizer que ele está errado, que no segundo em que deixou Jeanine Matthews se envolver nos assuntos da nossa facção, no segundo em que a deixou plantar transferidos Eruditos leais no nosso programa de iniciação, no segundo em que ele começou a se consultar com ela sobre quem nomear como o próximo líder de Audácia, ele comprometeu o sistema de freios e contrapesos que nos permitiu coexistir pacificamente por tanto tempo. Mas então percebo que dizer-lhe essas coisas seria acusá-lo de traição, e revelaria o quanto sei.
Max olha para mim, e consigo perceber o desapontamento em seu rosto. Eu sei que ele gosta de mim – gosta mais de mim do que de Eric, pelo menos. Mas a minha mãe estava certa ontem – Max não quer alguém como eu, alguém que consiga pensar por si mesmo, desenvolver a sua própria ideia. Ele quer alguém como Eric, que vai ajudá-lo a estabelecer as novas normas da Audácia, que vai ser fácil de manipular simplesmente porque ele ainda está na sombra de Jeanine Matthews, alguém com quem Max está estreitamente aliado.
A minha mãe apresentou-me duas opções ontem: ser um peão da Audácia, ou tornar-me um sem facção. Mas há uma terceira opção: não ser nenhum dos dois. Ser dono de mim mesmo, não seguir ninguém. Viver fora do radar, livre. Isso é o que eu realmente quero – derrubar todas as pessoas que querem me moldar e manipular, um por um, e aprender a me formar e moldar a mim mesmo.
— Para ser honesto, senhor, eu não penso que este seja o lugar certo para mim — digo calmamente. — Eu lhe disse quando me perguntou pela primeira vez que eu gostaria de ser um instrutor, e penso que estou percebendo mais e mais que é aonde eu pertenço.
— Eric, poderia nos dar licença por um minuto, por favor? — Max pede.
Eric, que mal consegue conter a sua alegria, acena e sai. Eu não o vejo sair, mas eu apostaria todos os meus créditos que ele está dando pequenos saltinhos enquanto volta pelo corredor.
Max levanta-se e senta-se ao meu lado, na cadeira em que Eric ocupava.
— Espero que não esteja dizendo isso por eu ter-lhe dito que é paranoico — Max diz. — Eu estava apenas preocupado com você. Temo que a pressão esteja sendo demais, fazendo com que deixe de pensar claramente. Eu continuo a pensar que é um forte candidato para a liderança. Você se encaixa perfeitamente no perfil que procuramos, demonstrou proficiência com tudo o que temos lhe ensinado – e por trás disso, muito francamente, você é bem mais simpático do que os outros candidatos promissores, o que é importante num ambiente de trabalho unido.
— Obrigado — respondo. — Mas você tem razão, a pressão está me afetando. E a pressão se eu fosse realmente um líder seria muito pior.
Max acena tristemente.
— Bem — ele acena novamente. — Se gostaria de ser um instrutor de iniciação, arranjarei isso para você. Mas esse é um trabalho sazonal – onde gostaria de ser colocado no resto do ano?
— Eu estava pensando talvez na sala de controle. Descobri recentemente que gosto de trabalhar com computadores. Acho que não faria patrulhas com tanto gosto.
— Tudo bem — Max diz. — Considere-o feito. Obrigado por ser honesto comigo.
Levanto-me, e sinto um alívio. Ele parece preocupado, simpático. Não desconfia de mim, nem dos meus motivos ou paranoia.
— Se alguma vez mudar de ideia, não exite em me falar. Nós sempre poderíamos usar alguém como você.
— Obrigado — agradeço, e mesmo pensando que ele é o maior traidor de facção que já conheci, e provavelmente é responsável em parte pela morte de Amar, não consigo evitar, mas sinto-me um pouco agradecido por ele me deixar ir tão facilmente.


 


 


 


 


                                                             + + +


 


 


 


 


Eric está a minha espera quando viro a esquina. Enquanto tento passar por ele, ele agarra-me o braço.
— Tome cuidado, Uckermann — ele murmura — se alguma coisa sobre o meu envolvimento com a Erudição escapar, você não vai gostar do que vai te acontecer.
— Você também não vai gostar do que vai te acontecer, se alguma vez voltar a me chamar por esse nome novamente.
— Em breve serei um dos seus líderes — Eric me lembra, sorrindo — e acredite em mim, eu vou manter um olho muito, mas muito perto de você e em como vai implementar os meus novos métodos de treinamento.
— Ele não gosta de você, sabe? Max, quero dizer. Ele prefere ter outra pessoa qualquer em vez de você. Ele não vai te dar nem um centímetro de espaço. Então, boa sorte com a sua trela curta.
Tiro o meu braço das suas mãos e caminho até aos elevadores.


 


 


 


 


                                                             + + +


 


 


 


 


— Nossa — Shauna diz. — Esse é um mau dia.
— Sim.
Ela e eu estamos sentados perto do fosso com os nossos pés sobre a borda. Descanso a cabeça contra as barras de metal que nos impede de cair para as nossas mortes, e sinto os pingos de água contra os meus tornozelos quando uma das ondas grandes bate na parede.
Eu lhe contei sobre ter desistido do programa de liderança e da ameaça de Eric, mas não falei sobre a minha mãe. Como é que se diz a alguém que a nossa mãe voltou dos mortos?
Durante toda a minha vida, alguém tem tentado me controlar. Marcus era o tirano na nossa casa, e nada acontecia sem a sua permissão. E depois Max queria recrutar-me como o seu puxa-saco da Audácia. E até a minha mãe tinha um plano para mim, que eu me juntasse a ela quando alcançasse certa idade para trabalhar contra o sistema de facções que ela tem algo contra, por qualquer razão. E quando pensava que tinha escapado de todos os controladores, Eric fez questão de me lembrar de que se ele se tornasse um líder, ele me vigiaria.
Tudo o que tenho, percebo, são os pequenos momentos de rebelião que sou capaz de controlar, tal como quando estava na Abnegação, recolhendo os objetos que encontrava na rua. A tatuagem que Maite está fazendo para mim nas costas, aquela que pode declarar que sou Divergente, é um desses momentos. Vou ter que procurar por mais disso, mais breves momentos de liberdade num mundo que se recusa a permiti-lo.
— Onde está Zeke? — pergunto.
— Eu não sei — ela responde — não tive muita vontade de estar com ele recentemente.
Olho para o lado, para Shauna.
— Você poderia apenas dizer-lhe que gosta dele, sabe. Eu honestamente penso que ele não tem ideia.
— Isso é óbvio — ela diz, resmungando. — Mas e se for isto o que ele quer – apenas passar um tempo com cada uma? Eu não quero ser uma dessas garotas com quem ele fica.
— Eu duvido seriamente que seria assim. Mas é justo.
Ficamos sossegados por uns segundos, os dois olhando para o curso da água lá embaixo.
— Você será um bom instrutor — ela observa. — Foi bom ao me ensinar.
— Obrigado.
— Aí estão vocês — Zeke diz por trás de nós. Ele traz uma grande garrafa cheia de um líquido qualquer meio castanho, segurando-a pelo gargalo. — Vamos. Encontrei uma coisa.
Shauna e eu nos entreolhamos damos de ombros, então o seguimos pelas portas do outro lado do Abismo, aquelas por onde passamos depois de termos saltado para a rede pela primeira vez. Mas em vez de nos levar para a rede, ele nos leva por outra porta – a fita adesiva do bloqueio puxada para baixo – e por um corredor com um lance de escadas.
— Devemos subir... Ai!
— Desculpe, eu não sabia que ia parar — Shauna diz.
— Esperem, já está quase...
Ele abre a porta, apontando uma lanterna fraca para que possamos ver onde estamos. Estamos do outro lado do Abismo, vários metros por cima da água. Por baixo de nós, o fosso parece não terminar, e as pessoas perto da grade são sombras pequenas e escuras, impossíveis de distinguir à distância.
Eu rio. Zeke acabou de nos liderar para outro pequeno momento de rebelião, provavelmente sem querer.
— Como é que encontrou este lugar? — Shauna pergunta com uma admiração óbvia enquanto pula para uma das pedras mais baixas.
Agora que estou aqui, vejo um caminho que nos levaria para cima pela parede, se quiséssemos caminhar até o outro lado do abismo.
— Aquela garota, Maria — Zeke explica. — A mãe dela trabalha na manutenção do Abismo. Eu não sabia que havia tal profissão, mas há.
— Ainda está se encontrando com ela? — Shauna pergunta, tentando ser casual.
— Não — Zeke diz. — Todas as vezes que eu estava com ela, queria estar com os meus amigos em vez dela. Não é um bom sinal, certo?
— Não — Shauna concorda, e ela parece mais alegre do que antes.
Desço com mais cuidado para a rocha em que Shauna está. Zeke senta-se ao lado dela, abrindo a garrafa e passando-a para nós.
— Ouvi que estava fora do treinamento — Zeke diz quando a passa para mim. — Pensei que talvez precisasse de uma bebida.
— Aham — concordo, e então tomo um gole.
— Considere este ato de embriaguez em público um grande... — ele faz um gesto obsceno em direção ao teto de vidro acima do Abismo. — Você sabe, para Max e Eric.
E para Evelyn, penso, enquanto tomo outro gole.
— Vou trabalhar na sala de controle enquanto não estiver treinando os iniciados.
— Fantástico — Zeke diz. — Será bom ter um amigo lá. Agora ninguém fala comigo.
— Parece minha antiga facção — falo e começo a rir. — Imagine um período inteiro de almoço em que ninguém olha sequer para você.
— Ui. Bem, aposto que está feliz por estar aqui agora, então.
Tiro-lhe a garrafa novamente e bebo mais um gole enorme. O álcool queima, e limpo a boca com as costas da mão.
— Yeah. Estou.
Se as facções estão se despedaçando, como minha mãe quer que eu acredite, esse não é um mau lugar para vê-las desmoronar. Pelo menos aqui eu tenho amigos para me fazer companhia enquanto isso acontece.


 


 


 


 


                                                           + + +


 


 


 


 


Acabou de escurecer, e estou com meu capuz para esconder o rosto enquanto corro através da área de sem facção da cidade, junto à fronteira do setor da Abnegação. Tive que ir até a escola para me orientar, mas agora me lembro de onde estou, onde corri naquele dia em que invadi um armazém sem facção em busca de uma brasa morrendo.
Alcanço a porta que atravessei quando saí, e bato nela com os nós dos dedos. Consigo ouvir as vozes mesmo por trás dela e cheiro de comida exala de uma das janelas abertas, onde a fumaça do fogo do interior sai para o beco. Ouço passos, enquanto alguém vem ver o que a batida significa.
Desta vez, o homem está usando uma camisa vermelha da Amizade e calças pretas da Audácia. Ele ainda tem uma toalha dobrada no bolso de trás, como da última vez que falei com ele. Ele abre a porta apenas o suficiente para olhar para mim, e não mais que isso.
— Bem, veja quem fez uma mudança — diz ele, olhando as minhas roupas de Audácia. — A que devo esta visita? Sentiu falta da minha encantadora companhia?
— Você sabia que a minha mãe estava viva quando me conheceu. Foi por isso que me reconheceu, porque passou algum tempo com ela. Assim você sabia sobre o que ela disse de a inércia estar levando-a para a Abnegação.
— Sim — o homem concorda. — Não pensei que fosse da minha conta ser aquele a dizer-lhe que ela ainda está viva. Está aqui para exigir uma desculpa, ou algo do gênero?
— Não. Estou aqui para entregar uma mensagem. Vai entregar a ela?
— Sim, claro. Vou vê-la nos próximos dias.
Ponho a mão no bolso e tiro um papel dobrado. E lhe entrego.
— Vá em frente e leia, eu não ligo. E obrigado.
— Sem problemas — ele diz. — Quer entrar? Está parecendo mais como um de nós do que com um deles, Uckermann.
Balanço a cabeça.
Faço o meu caminho pelo beco, e antes de virar na esquina, eu o vejo abrir a carta para lê-la, que diz:


Alexandra,
Algum dia. Mas ainda não.
– 4


P.S.: estou feliz por não estar morta.




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Autor(a): Fer Linhares

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