Fanfics Brasil - O traidor Quatro: Histórias da Série Divergente [Terminada]

Fanfic: Quatro: Histórias da Série Divergente [Terminada] | Tema: Histórias da Série Divergente


Capítulo: O traidor

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Outro ano, outro Dia de Visita.
Dois anos atrás, quando fui iniciado, eu fingia que meu próprio Dia de Visita não existia, ficava enfiado na sala de treinamento com um saco de areia. Fiquei lá por tanto tempo que cheirei a pó e suor por dias. Ano passado, o primeiro ano que ensinei os iniciados, fiz a mesma coisa, apesar de Zeke e Shauna terem me convidado para passar o dia com suas famílias.
Este ano eu tenho coisas mais importantes do que acertar um saco de pancadas e ficar pensando em minha disfunção familiar. Vou para a sala de controle.
Passo pela Caverna ignorando os encontros chorosos e as gargalhadas. As famílias podem sempre se encontrar no Dia da Visita, mesmo se forem de facções diferentes. Mas, com o passar do tempo, eles param de vir. “Facção antes do sangue”, apesar de tudo. A maioria das vestimentas misturadas que vejo veem de famílias transferidas: a irmã de Alfonso, que é da Erudição, está vestida com um azul claro, os pais de Peter, que são da Franqueza, estão vestidos de preto e branco. Por um momento, observo os pais dele, e me pergunto se foram eles que o fizeram a pessoa que é hoje. Mas, na maior parte do tempo, pessoas não são fáceis de explicar, penso. Era para eu estar em uma missão, mas parei perto do Abismo, pressionando a grade. Pedaços de papel flutuam na água. Agora que eu sei onde está a porta escondida por entre as rochas, consigo a vê-la de longe. Sorrio um pouco pensando em quantas noites passei com Zeke ou Shauna, de vez em quando conversando, às vezes apenas sentados ouvindo o som da água se movendo.
Ouço passos se aproximando e olho por cima do meu ombro. Dul está vindo na minha direção, envolta pelos braços vestidos de cinza de uma mulher da Abnegação. Blanca Saviñón. Eu enrijeço, desesperado para escapar – e se Blanca me reconhecer, souber de onde vim? E se ela falar, aqui, no meio de todas essas pessoas?
Ela não poderia me reconhecer. Eu não me pareço com o garotinho magricela e cabisbaixo que ela conheceu.
Quando está perto o suficiente, ela estende a mão.
— Olá, meu nome é Blanca. Sou a mãe de Dulce.
Dulce. Esse nome é totalmente errado para ela. Pego a mão de Blanca e a sacudo. Nunca me acostumei com o aperto de mão da Audácia. É muito imprevisível – você nunca sabe o quanto apertar, quantas vezes sacudir.
— Quatro — eu digo. — É um prazer conhecê-la.
— Quatro — Natalie diz e sorri. — É um apelido?
— Sim — respondo e logo mudo de assunto. — Sua filha está indo bem aqui. Eu a tenho supervisionado.
— Isso é bom de ouvir. Sei algumas coisas sobre a iniciação da Audácia e fiquei preocupada com ela.
Olho rapidamente para Dul. Há cor em suas bochechas – ela parece feliz, ver sua mãe faz bem a ela. Pela primeira vez, agradeço totalmente o quanto ela mudou desde que a vi pela primeira vez, se equilibrando na plataforma de madeira, o olhar frágil, como se o impacto na rede devesse tê-la esmagado. Ela já não parece frágil, com as manchas roxas em seu rosto e a nova firmeza no jeito com que ela anda, como se estivesse preparada para qualquer coisa.
— Você não deveria se preocupar — digo para Blanca.
Dul olha para longe. Acho que ela continua brava comigo por ter atirado a faca contra ela e cortado sua orelha. Acho que não a culpo realmente.
— Você me parece familiar por algum motivo, Quatro — Blanca observa.
Eu até pensaria que seu comentário foi vago se não fosse pelo jeito como está olhando para o meu rosto, como se estivesse me revistando.
— Eu não posso imaginar por que — digo do modo mais frio possível. — não tenho o hábito de me associar com a Abnegação.
Ela não reage da forma que eu esperava, com raiva ou medo. Ela simplesmente ri.
— Algumas pessoas o fazem por esses dias. Não levo isso para o lado pessoal.
Se ela me reconheceu, não parece que vai dizer alguma coisa. Tento relaxar.
— Bom, deixarei-as com sua reunião.


 


 


 


 


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Em minha tela, as câmeras de segurança mudam do lobby da Caverna à margem do buraco entre os edifícios, a entrada dos iniciados da Audácia. Uma multidão está reunida em volta do buraco, subindo e descendo dele, testando a rede.
— Não está muito animado com o Dia da Visita?
Meu supervisor, Gus, está parado ao lado do meu ombro, tomando uma xícara de café. Ele não é muito velho, mas há um lugar onde falta cabelo no topo de sua cabeça. Ele mantém o resto de seu cabelo curto, até mais curto que o meu. Suas orelhas estão esticadas em volta de grandes alargadores.
— Pensei que não o veria até a iniciação acabar.
— Pensei que eu poderia fazer algo produtivo.
Em minha tela, todos saem do buraco e se encostam em um dos prédios. Uma sombra escura se aproxima alguns passos da borda do telhado, bem em cima do buraco, corre um pouco, e salta. Meu estômago pula como se fosse eu caindo, e a figura desaparece depois do pavimento. Eu nunca vou me acostumar a ver isso.
— Eles parecem estar se divertindo — Gus fala, tomando um gole de seu café. — Bom, você é sempre bem vindo a trabalhar quando não foi escalado, mas não é um crime ter um pouco de diversão descuidada, Quatro.
Ele vai embora enquanto eu digo:
— É, foi o que me disseram.
Olho em volta da sala de controle. Está quase vazia – no Dia da Visita, poucas pessoas são escaladas para trabalhar, normalmente os mais velhos. Gus está debruçado na frente de seu monitor. Dois outros estão ao lado dele, olhando para as suas telas com seus fones de ouvido. E há a mim. Digito um comando para abrir uma gravação que salvei semana passada. Ela mostra Max em seu escritório, sentado na frente de seu computador. Ele cutuca o teclado com o dedo indicador caçando as teclas certas. Muitas pessoas da Audácia não sabem digitar muito bem, especialmente Max, que passou grande parte de sua vida na Audácia patrulhando os setores dos sem facção com uma arma ao seu lado – ele nunca deve ter imaginado que um dia teria que usar um computador. Chego perto da tela para me certificar de que os números que peguei mais cedo estão certos. Se estiverem, eu tenho a senha da conta de Max escrita em um papel que está dentro do meu bolso.
Desde que soube que Max está trabalhando com Jeanine Matthews, comecei a suspeitar que eles tinham alguma coisa a ver com a morte de Amar, e tenho procurado um jeito de investigar mais fundo. Quando o vi digitando sua senha no outro dia, eu a anotei.
084628. Sim, os números parecem certos. Volto para as câmeras de segurança ao vivo novamente e rodo por todas elas até achar a que mostra o escritório de Max. Para Gus e os outros não verem, deixo a imagem aparecer apenas em minha tela. As imagens das câmeras de segurança de toda a cidade sempre são divididas entre as pessoas que estão na sala de controle, então nós não estamos todos olhando para as mesmas imagens. Nós só devemos puxar as imagens do feed geral, como essa, por alguns segundos se precisarmos olhar mais perto, mas não vou demorar muito. Saio da sala em direção aos elevadores.
Este nível da Caverna está quase vazio – todo mundo saiu. Assim será mais fácil de fazer o que planejei. Aperto os botões do elevador que vão me levar até o décimo andar, e ando propositalmente na direção do escritório de Max. Eu descobri que quando você está sendo furtivo, é melhor não parecer que está sendo furtivo. Dou tapinhas no pen drive em meu bolso enquanto ando e viro para o corredor na direção do escritório de Max. Cutuco a porta com o meu pé para abri-la – mais cedo, depois de ter me certificado de que ele tinha ido fazer as preparações para o Dia da Visita, subi até aqui e selei a fechadura. Fecho a porta silenciosamente atrás de mim, sem acender as luzes, e me aproximo de sua mesa. Não movo a cadeira para me sentar, não quero que ele veja que alguma coisa em sua sala mudou quando voltar.
A tela pede uma senha. Minha boca está seca. Pego o papel do meu bolso e o pressiono na mesa enquanto digito a senha.
084628. A tela muda. Não posso acreditar que funcionou.
Rápido. Se Gus descobrir que eu saí, que estou aqui, não sei o que eu falaria, que desculpa poderia dar que soaria razoável. Insiro o pen drive e transfiro o programa que coloquei nele mais cedo. Eu pedi para Lauren, uma das técnicas e amiga instrutora de iniciação, um programa que faria um computador se tornar o espelho de outro, com a desculpa de que eu queria pregar uma peça em Zeke quando estivéssemos no trabalho. Ela ficou feliz em ajudar – outra coisa que descobri, é que a Audácia está sempre disposta a pregar uma peça, e raramente procura uma mentira. Com alguns simples toques nas teclas, o programa é instalado e armazenado em algum lugar do computador de Max que tenho certeza que ele nunca se preocuparia em olhar. Coloco o pen drive de volta em meu bolso, junto com o pedaço de papel com a senha e saio da sala sem deixar minhas digitais na parte de vidro da porta.
Isso foi fácil, eu penso, enquanto ando em direção aos elevadores novamente. De acordo com o meu relógio, isso só levou cinco minutos. Posso dizer que eu só estava no banheiro se alguém perguntar.
Quando volto para a sala de controle, Gus está parado em frente ao meu computador, encarando minha tela. Eu congelo. Há quanto tempo será que ele está ali? Ele me viu invadindo a sala de Max?
— Quatro — Gus diz, soando sério. — Por que você isolou esta imagem? Você não pode pegar imagens que estão fora do feed geral, você sabe disso...
— Eu... — Minta! Minta agora! — Eu pensei ter visto alguma coisa — termino falhamente. — Nós podemos isolar as imagens, ver se há algo fora do normal.
Gus se move em minha direção.
— Então por que acabei de te ver nesta tela, saindo do mesmo corredor?
Ele aponta para o corredor na tela. Minha garganta aperta.
— Eu pensei ter visto alguma coisa, então subi para investigar. Me desculpe, eu só queria me mover um pouco.
— Se você vir algo do normal de novo, siga o protocolo. Informe seu supervisor, que é... Quem mesmo?
— Você — respondo, engasgando um pouco. Não gosto de ser pressionado.
— Correto, vejo que você consegue acompanhar. Honestamente, Quatro, depois de um ano trabalhando aqui, não deveria ter tantas irregularidades em seu desempenho. Nós temos regras muito claras aqui, e tudo o que você tem a fazer é segui-las. Este é o seu último aviso. Ok?
— Ok.
Eu fui punido algumas vezes por ter puxado imagens do feed geral para assistir os encontros de Jeanine Matthews e Eric. Isso nunca me deu alguma informação útil, e eu quase sempre fui pego.
— Bom — sua voz se ameniza. — Boa sorte com os iniciados. Você pegou os transferidos de novo este ano?
—Sim. Lauren ficou com os nascidos na Audácia.
— Ah, que pena. Eu esperava que você conhecesse minha irmãzinha — Gus diz. — Se eu fosse você, iria lá fora pegar um pouco de ar. Nós estamos bem aqui. Apenas deixe a sua parte de imagens de segurança voltar para o feed geral antes de ir.
Ele caminha de volta para o seu computador e eu relaxo o maxilar. Nem percebi que estava fazendo isso. Meu rosto está latejando, e desligo meu computador e deixo a sala de controle. Não consigo acreditar que me safei dessa. Agora, com o programa instalado no computador de Max, posso vasculhar cada um dos arquivos da privacidade relativa da sala de controle. Posso descobrir exatamente o que Jeanine Matthews está planejando.


 


 


 


 


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Naquela noite, sonho que estou andando nos corredores da Caverna. Estou sozinho, mas os corredores não acabam, a paisagem nas janelas não muda – as linhas de trem se curvando em volta de prédios altos, o sol queimando por entre as nuvens. Sinto como se tivesse andado por horas, e quando acordo, levanto com um estalo, como se nunca tivesse dormido. Ouço uma batida na porta, e uma voz gritando.
— Abra!
Isso se parece mais com um pesadelo do que aquele do qual acabei de escapar – tenho certeza que são soldados da Audácia vindo até a minha porta porque descobriram que eu sou Divergente, ou que estou espionando Max, ou que entrei em contato com a minha mãe sem facção no ano passado. Todas as coisas que falam “traidor de facção”. Soldados da Audácia estão vindo para me matar – mas ao andar até a porta, percebo que se fossem mesmo me matar, eles não estariam fazendo tanto barulho no corredor. E, além disso, é a voz de Zeke.
— Zeke — eu digo quando abro a porta. — Qual é o seu problema? Estamos no meio da noite.
Há uma linha de suor em sua testa, e ele está sem folego. Ele deve ter corrido até aqui.
— Eu estava trabalhando no expediente noturno na sala de controle — Zeke responde. — Alguma coisa aconteceu no dormitório dos transferidos.
Por alguma razão, meu primeiro pensamento é para ela, seus olhos selvagens me encarando no fundo da minha memória.
— O quê? — pergunto. — Com quem?
— Falo enquanto andamos.
Calço os meus sapatos, coloco a jaqueta e o sigo pelo corredor.
— O cara da Erudição. Loiro — Zeke fala.
Eu suprimo um suspiro de alívio. Não foi ela. Nada aconteceu a ela.
— Alfonso?
— Não, o outro.
— Edward.
— Sim, Edward. Ele foi atacado. Esfaqueado.
— Morto?
— Vivo. O acertaram no olho.
Eu paro.
— No olho?
Zeke faz sim com a cabeça.
— Para quem você contou?
— Para o supervisor da noite. Ele foi falar para Eric, e Eric disse que cuidaria disso.
— Claro que sim.
Eu desvio para a direita, para longe do dormitório dos transferidos.
— Para onde você está indo?
— Edward já está na enfermaria? — Ando de costas enquanto falo.
Zeke faz que sim com a cabeça.
— Então vou ver Max.


 


 


 


 


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O complexo da Audácia não é tão grande a ponto de eu não saber onde as pessoas moram. O apartamento de Max fica enfiado bem abaixo dos corredores do complexo, perto de uma porta que se abre para os trilhos de trem do lado de fora. Marcho em direção aos trilhos seguindo as luzes azuis de emergência que são recarregadas pelos nossos geradores solares. Dou um soco na porta de metal com o meu punho, acordando Max do mesmo jeito que Zeke me acordou. Ele abre a porta alguns segundos depois, descalço, e seus olhos estão vazios.
— O que aconteceu?
—Um dos meus iniciados teve o olho esfaqueado — eu digo.
— E você veio até aqui? Ninguém informou Eric?
— Sim. É sobre isso que quero conversar com você. Se importa se eu entrar?
Eu não espero por uma resposta – passo por ele e caminho até a sua sala de estar. Ele acende as luzes, iluminando o lugar mais bagunçado que eu já vi na vida, copos e pratos usados em cima da mesa de café, todas as almofadas do sofá bagunçadas, o chão cinza com poeira.
— Quero que a iniciação volte a ser o que era antes de Eric a tornar mais competitiva. E o quero ele fora da minha sala de treinamento.
— Não me diga que você acha que é culpa de Eric um dos iniciados ter se machucado.
— Sim, a culpa é dele, claro que é dele! — respondo o mais alto que posso. — Se eles não estivessem lutando por uma das 10 vagas, não estariam tão desesperados. Eles estão prontos para atacar um ao outro! Ele os tem tão amarrados e na linha, é claro que uma hora iriam explodir!
Max está quieto. Ele parece aborrecido, mas não está me chamando de ridículo, o que já é um começo.
— Você não acha que o iniciado que fez isso deveria levar a culpa? — Max diz. — Não acha que ela ou ele é o culpado e não Eric?
  —É claro que ele, ela, tanto faz, deveria ser responsabilizado. Mas isso nunca teria acontecido se Eric...
  —Você não pode dizer isso com tanta certeza.
— Eu posso dizer isso com a certeza de uma pessoal racional.
— Eu não sou racional? — Sua voz está baixa, perigosa, e de repente eu me lembro de que Max não é só o líder da Audácia que gosta de mim por algum motivo inexplicável – ele é o líder da Audácia que está trabalhando com Jeanine Matthews, aquela que apontou Eric, aquele que provavelmente tem alguma coisa a ver com a morte Amar.
— Não foi o que eu quis dizer — falo, tentando ficar calmo.
— Você deveria ser mais cuidadoso ao se expressar — Max diz, se movendo para mais perto de mim. —Ou alguém vai começar a achar que você está insultando os seus superiores.
Eu não respondo. Ele se move para mais perto.
— Ou questionando os valores de sua facção — ele completa, e seus olhos voam para o meu ombro, onde as chamas da minha tatuagem da Audácia saem pra fora da minha camisa.
Eu escondo os símbolos das cinco facções em minha espinha desde que os fiz, mas, por algum motivo, neste momento, estou apavorado de que Max saiba sobre eles. Saiba o que eles significam – que não sou um membro da Audácia perfeito; sou alguém que acredita que mais de uma virtude deveria ser priorizada; que sou Divergente.
— Você teve a sua chance de se tornar um membro da Audácia — Max aponta. — Poderia ter evitado este incidente e não ter recuado como um covarde. Mas você o fez. Agora terá que encarar as consequências.
Seu rosto está mostrando sua idade. Existem linhas em seu rosto que não estavam lá no ano passado, e sua pele está ficando marrom acinzentada, como se tivesse esfregado cinzas na pele.
— Eric está tão envolvido na iniciação porque você recusou seguir ordens ano passado...
Ano passado, na sala de treinamento, eu parei as lutas antes que os ferimentos fossem muito sérios, contrariando os comandos de Eric, que dizia que a luta só acaba quando uma pessoa não pode mais continuar. Quase perdi a minha posição de instrutor de iniciação como resultado; eu teria perdido se Max não tivesse se envolvido.
—... e eu queria te dar outra chance de fazer o certo, com monitoramento constante — Max continua. — Você está falhando nisso. Foi longe demais.
O suor que surgiu na minha corrida até aqui ficou frio. Ele dá um passo para trás e abre a sua porta novamente.
— Dê o fora do meu apartamento e vá lidar com os seus iniciados. Não me deixe vê-lo sair da linha novamente.
— Sim, senhor — respondo baixo, e saio.


 


 


 


 


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Vejo Edward na enfermaria bem cedo de manhã, quando o sol está nascendo, brilhando contra o vidro do Abismo. Sua cabeça está enrolada com bandagens brancas, ele não está se movendo, não está falando. Eu não digo nada para ele, apenas sento do lado de sua cabeça e vejo os minutos passarem no relógio na parede.
Eu tenho sido um idiota. Pensei ser invencível, que o desejo de Max de me ter como colega líder nunca me trairia. Deveria ter pensado melhor. Tudo o que Max sempre quis era um fantoche – isso foi o que minha mãe me disse.
Eu não quero ser um fantoche. Mas não sei o que deveria ser em vez disso.


 


 


 


 


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O cenário de Dul Saviñón que está na tela é estranho e quase bonito, o céu é amarelo esverdeado, grama amarela se estende por quilômetros por todas as direções. Assistir a paisagem do medo de outra pessoa é estranho. Intimidador. Eu não me sinto bem em forçar outras pessoas a serem vulneráveis, mesmo que eu não goste delas. Todo ser humano tem direito de ter segredos. Assistir aos medos dos meus iniciados, um após o outro, faz eu me sentir como se minha pele estivesse sendo raspada com lixas.
Na simulação de Dul, a grama amarela está perfeitamente parada. Se o ar não fosse paralisante, eu poderia dizer que é um sonho, não um pesadelo – mas o ar mostra apenas uma coisa para mim, uma tempestade está a caminho.
Uma sombra se move pela grama, e um grande pássaro preto pousa no ombro dela, cravando as garras em sua blusa. As pontas dos meus dedos formigam, me lembrando de quando encostei em seu ombro quando ela entrou na sala de simulação, como tirei seus cabelos do caminho para aplicar a injeção de simulação em seu pescoço. Idiota. Descuidado.
Ela acerta o pássaro preto com força, e então tudo acontece de uma vez. Trovões; o céu escurece, não com nuvens de tempestade, mas com pássaros, uma grande massa deles, se movendo em conjunto. O som do grito dela é o pior som do mundo, desesperado – ela está desesperada por ajuda e eu estou desesperado para ajudá-la, mesmo sabendo que o que estou vendo não é real. Os corvos continuam vindo, sem descanso, em volta dela, afogando-a viva em penas pretas. Ela grita por ajuda e eu não posso ajudá-la, eu não quero assistir isso, não quero ver mais nenhum segundo.
Mas então ela começa a se mover, ela está deitando na grama, cedendo, relaxando. Se ela está sentindo dor, não está mostrando; ela apenas fecha seus olhos e se rende, e isso é pior do que ouvi-la gritar por ajuda, de algum modo.
E então acaba.
Ela se balança para frente da cadeira de metal estapeando seu corpo para retirar os pássaros, pensando que ainda não tinham ido embora. Então ela se enrola como uma bola e esconde o rosto.
Eu levanto a mão para tocar o seu ombro, para acalmá-la, e ela soca a meu braço com força.
— Não me toque!
— Acabou — eu digo, estremecendo – ela bateu mais forte do que percebeu. Ignoro a dor e passo a mão por seus cabelos, porque eu sou idiota, e inapropriado, e idiota... — Dul.
Ela apenas se balança para frente para trás, acalmando-se.
— Dul, eu vou levar você de volta para os dormitórios, ok?
— Não! Eles não podem me ver... Não assim...
Isso é o que o novo sistema do Eric cria: um ser humano corajoso que acabou de derrotar um de seus piores medos em menos de cinco minutos – pessoas normais levam pelo menos o dobro do tempo – mas ela está aterrorizada para voltar para o corredor, ser vista como fraca ou vulnerável. Dul é audaciosa, natural e simples, mas está facção não é mais a Audácia.
— Ah, acalme-se — eu digo, parecendo mais irritado do que queria. — Eu vou levá-la pela porta dos fundos.
— Eu não preciso que você...
Posso ver as mãos dela tremendo mesmo depois de recusar minha oferta.
— Bobagem — respondo.
Pego-a pelos braços e a ajudo a ficar de pé. Ela esfrega os olhos ao mesmo tempo em que eu ando até a porta dos fundos. Amar uma vez me levou por esta porta, tentando me levar de volta ao dormitório mesmo eu não querendo sua ajuda, do mesmo jeito que ela provavelmente não quer a minha agora. Como é possível viver a mesma história de pontos de vista diferentes? Ela arranca o braço do meu e se vira para mim.
— Por que você fez isso comigo? Qual foi o ponto disso, hein? Eu não estava ciente de que, quando escolhi Audácia, estava me inscrevendo para semanas de tortura!
Se ela fosse qualquer outra pessoa, qualquer outro iniciado, eu já teria gritado com ela por insubordinação milhares de vezes. Eu teria me sentido ameaçado pelas suas constantes investidas contra mim, e tentaria silenciar sua rebeldia com crueldade, do jeito que fiz com Anahí no seu primeiro dia de iniciação. Mas Dul ganhou meu respeito quando foi a primeira a pular; quando me desafiou durante sua primeira refeição; quando não foi dissuadida pelas minhas respostas desagradáveis; quando falou por Al e ficou com o olhar fixo no meu enquanto eu atirava facas contra ela.
— Você achou que superar a covardia seria fácil?
— Isso não é superar a covardia! Covardia é como você decide ser na vida real, e na vida real, eu não seria bicada por corvos até a morte, Quatro!
Ela começa a chorar, mas eu fui golpeado com força pelo o que ela disse para me sentir desconfortável com as suas lágrimas. Ela não está aprendendo as lições que Eric quer que ela aprenda. Ela está aprendendo outras coisas, muito mais inteligentes.
— Eu quero ir pra casa — ela diz.
Eu sei onde as câmeras estão no corredor. Espero que nenhuma delas esteja gravando o que falo.
— Aprender a pensar no meio do medo é uma lição que todos, até a sua família Careta, precisa aprender.
Eu duvido de muitas coisas da iniciação da Audácia, mas a simulação de medo não é uma delas; elas são o melhor jeito de uma pessoa se comprometer com seus próprios medos e dominá-los, melhor do que atirar facas ou lutar.
— Isso é o que estamos tentando lhe ensinar. Se você não pode aprender, precisa dar o fora daqui, porque não queremos você.
Estou sendo duro com ela porque sei que ela aguenta. E também porque não sei ser de outro jeito.
— Eu estou tentando. Mas eu falhei. Eu estou falhando.
Eu quase rio.
— Quanto tempo você acha que passou nessa alucinação, Dul?
— Eu não sei. Meia hora?
— Três minutos — respondo. — Você conseguiu ser três vezes mais rápida do que os outros iniciados. O que quer que você seja, você não é um fracasso.
Você pode ser Divergente, eu penso. Mas ela não fez nada para mudar a simulação, então talvez ela não seja. Talvez ela só seja corajosa.
Eu sorrio para ela.
— Amanhã você se sairá melhor, você vai ver.
— Amanhã?
Ela está mais calma agora, eu toco suas costas, bem no meio de seus ombros.
— Qual foi a sua primeira alucinação? — ela me pergunta.
— Não era um o quê era mais um quem.
Enquanto falo isso, penso que deveria apenas ter falado o primeiro obstáculo na minha paisagem de medo, medo de altura, mesmo não sendo isso o que ela perguntou. Quando estou perto dela, não consigo controlar o que falo do jeito que faço quando estou perto de outras pessoas. Eu digo coisas vagas porque é o mais próximo de não falar, minha mente se confunde pela sensação de seu corpo por baixo de sua blusa.
— Isso não é importante.
— E você acabou com aquele medo agora?
— Ainda não.
Nós estamos na porta do dormitório. O caminho até aqui nunca foi tão rápido. Coloco as mãos em meus bolsos para não fazer nada estúpido com elas de novo.
— Talvez nunca supere.
— Então eles não vão embora?
— Às vezes vão. E às vezes novos medos os substituem. Mas ficar sem medo não é o ponto. Isso é impossível. Isto é para aprender a como controlar seu medo, e como ser livre dele, esse é o ponto.
Ela acena com a cabeça. Eu não sei por que ela veio para cá, mas se eu fosse adivinhar, diria que ela escolheu a Audácia por causa da liberdade. A Abnegação teria sufocado o brilho dela até ele desaparecer. A Audácia, mesmo com os seus defeitos, fez com que o seu brilho tímido se tornasse uma chama.
— De qualquer forma — eu falo — seus medos raramente são o que parecem ser na simulação.
— O que você quer dizer?
— Bem, você realmente tem medo de corvos? — Dou um sorriso irônico. — Quando você vê um, você corre gritando de medo?
— Não. Eu acho que não.
Ela se move para mais perto de mim. Eu me sentia mais seguro quando existia mais espaço entre nós. Ainda mais perto, eu penso em tocar nela, e minha boca fica seca. Eu quase nunca penso nas pessoas dessa forma, em garotas dessa forma.
— Então do que eu realmente tenho medo?
— Eu não sei. Só você pode saber.
— Eu não sabia que a Audácia seria tão difícil.
Estou feliz por ter outra coisa pra pensar, outra coisa em vez de como seria fácil encaixar minha mão no arco de suas costas.
— Não foi sempre assim, me disseram. Ser da Audácia, quero dizer.
— O que mudou?
— A liderança. A pessoa que controla a formação define o padrão de comportamento da Audácia. Seis anos atrás, Max e os outros líderes mudaram o método de treinamento. Os métodos se tornaram mais competitivos e mais brutais.
Seis anos atrás, a proporção de combate era menor e não incluía combate sem proteção alguma. Os iniciados usavam protetores acolchoados. A ênfase era em se tornar forte e capaz, e fazer amizade com outros iniciados. E mesmo quando eu era um iniciado, era melhor do que é hoje – um potencial ilimitado para iniciados se tornarem membros, lutas que acabavam quando alguém pedisse para parar.
— Disseram que era para testar a resistência das pessoas. E isso mudou as prioridades da Audácia como um todo. Aposto que você pode adivinhar quais os novos líderes que protegem isso.
É claro que ela acerta na hora
— Então, se você ficou em primeiro lugar no seu ranking, qual foi a classificação de Eric?
— Segundo.
— Então ele foi a segunda escolha para a liderança. E você era a primeira.
Perceptiva. Não sei se eu era a primeira opção, mas com certeza seria uma opção melhor do que Eric.
— O que te faz dizer isso?
— A maneira como Eric estava agindo no jantar da primeira noite. Com ciúmes, embora ele tenha o que quer.
Eu nunca pensei em Eric desse jeito. Com ciúmes? De quê? Eu nunca tirei nada dele, nunca aparentei ser uma ameaça real para ele. Mas talvez ela tenha razão – talvez eu nunca tenha visto quão frustrado ele é por ser o segundo colocado, logo atrás de um transferido da Abnegação, depois de todo o seu trabalho duro, ou talvez eu tenha sido o favorito de Max para a liderança mesmo depois de Eric ter sido especificamente apontado para pegar o papel de líder.
Ela seca o rosto.
— Pareço que estive chorando?
A pergunta parece quase engraçada para mim. Suas lágrimas desapareceram tão rápido quanto vieram, e agora seu rosto está sério de novo, olhos secos, cabelos arrumados. Como se nada tivesse acontecido –como se ela nem tivesse gasto três minutos se afogando em terror. Ela é mais forte do que eu fui.
— Hmmm.
Eu inclino mais para perto, fingindo que estou examinando, mas então não é mais uma brincadeira, eu estou bastante perto e nós estamos compartilhando o ar de nossa respiração.
— Não, Dul... Você parece... — busco uma expressão da Audácia. — Resistente como um prego.
Ela sorri um pouco. Então eu faço o mesmo.


 


 


 


 


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— Hey — Zeke diz sonolento, inclinando a cabeça contra o braço. — Quer assumir o controla para mim? Eu praticamente preciso de fita para manter os meus olhos abertos.
— Desculpe, eu só preciso usar o computador. Você sabe que são apenas nove horas, certo?
Ele boceja.
— Eu me canso quando estou entediado. Está quase na hora da substituição, no entanto.
Eu amo a sala de controle durante a noite – há apenas três pessoas monitorando as imagens, de modo que a sala é silenciosa exceto pelo zunido dos computadores. Através das janelas vejo apenas uma lasca da lua; todo o resto é escuro. É difícil encontrar a paz no complexo da Audácia, e este é o lugar onde eu a encontro na maioria das vezes.
Zeke se volta para sua tela. Sento-me em um computador alguns assentos mais a frente dele, e viro a tela para longe da sala. Então faço o login, usando a conta falsa que criei há vários meses para que ninguém fosse capaz de rastrear até de mim. Uma vez que estou logado, abro o programa espelho que me permite usar o computador de Max remotamente. Leva um segundo para funcionar, mas quando abre, é como se eu estivesse sentado no escritório de Max, usando na mesma máquina que ele. Eu trabalho de forma rápida e sistemática. Ele rotula suas pastas com números, então não sei o que cada uma irá conter. A maioria é benigna, listas de membros da Audácia ou programações de eventos. Eu as abro e fecho em segundos.
Eu me aprofundo nos arquivos, pasta após pasta, e então encontro algo estranho. A lista de suprimentos, mas as fontes não envolvem alimentos, tecido ou qualquer outra coisa que eu esperaria do mundo da Audácia – a lista é para armas. Seringas. E algo marcado Soro D2. Posso imaginar apenas uma coisa que faria a Audácia requerer tantas armas: um ataque. Mas a quem?
Verifico a sala de controle de novo, meu coração martelando. Zeke está jogando um jogo de computador que ele fez para si mesmo. O segundo operador da sala de controle está caído para um lado, os olhos semicerrados. O terceiro mexe seu copo de água à toa com o canudo, olhando para fora das janelas. Ninguém está prestando atenção em mim.
Abro mais arquivos. Depois de alguns esforços desperdiçados, acho um mapa. Está marcado principalmente com letras e números, então no início não sei o que ele está mostrando.
Então abro um mapa da cidade no banco de dados da Audácia para compará-los, e ao encostar na cadeira percebo que ruas o mapa de Max está focalizando.
O setor da Abnegação.
O ataque será contra a Abnegação.


 


 


 


 


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Deveria ser óbvio, é claro. A quem mais Max e Jeanine se preocupariam em atacar? Eles são vingativos em relação a Abnegação, sempre foram. Eu deveria ter percebido quando a Erudição liberara a história sobre meu pai, o monstruoso marido e pai. A única coisa verdadeira que escreveram, tanto quanto posso dizer.
Zeke cutuca minha perna com o pé.
— Mudança de turnos. Hora de dormir?
— Não — eu digo. — Preciso de uma bebida.
Ele se anima visivelmente. Não é toda noite que decido abandonar minha existência estéril e solitária por uma noite de Audácia indulgente.
— Eu estou com você — diz ele.
Fecho o programa, a minha conta, tudo. Tento deixar as informações sobre o ataque à Abnegação trás, também, até eu possa descobrir o que fazer com elas, mas me persegue por todo o caminho até o elevador, através do lobby, e para baixo nos caminhos para o fundo do abismo.


 


 


 


 


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Estou acompanhando a simulação com um pesado sentimento na boca do estômago. Desligo-a dos fios e a ajudo a levantar. Ela ainda está se recuperando da sensação de quase afogamento, sacudindo as mãos e respirando profundamente. Eu fico observando-a por um momento, e não sei como dizer o que preciso dizer.
— O quê? — ela pergunta.
— Como você fez aquilo?
— Fazer o quê?
— Quebrar o vidro.
— Eu não sei.
Eu aceno, e ofereço-lhe a minha mão. Ela se levanta sem nenhum problema, mas evita meus olhos. Eu verifico os cantos da sala em busca de câmeras. Há uma, exatamente onde pensei que seria ter, exatamente a nossa frente. Seguro o cotovelo dela e levo-a para fora da sala, para um lugar onde eu sei que não será observada, o ponto cego entre dois pontos de vigilância.
— O que foi? — ela quer saber, irritada.
— Você é Divergente.
Não fui muito bom para ela hoje. Ontem à noite eu a vi com seus amigos pelo Abismo, e um lapso de julgamento – ou sobriedade – me levou a chegar perto demais, para dizer-lhe que ela estava bonita. Preocupo-me que eu tenha ido longe demais. Agora estou ainda mais preocupado, mas por razões diferentes.
Ela quebrou o vidro. Ela é Divergente.
Ela está em perigo.
Ela para. Em seguida, ela afunda contra a parede, adotando uma aura quase convincente descontração.
— O que é Divergente?
— Não se faça de idiota — eu digo. — Eu suspeitei da última vez, mas dessa vez é óbvio. Você manipulou a simulação, você é Divergente. Eu vou deletar a gravação, mas a menos que você queira acabar morta no fundo do Abismo, você vai descobrir uma forma de esconder isso durante as simulações! Agora, se me der licença.
Volto para a sala de simulação, fechando a porta atrás de mim. É fácil excluir as filmagens, apertando apenas algumas teclas e o registro está limpo. Eu verifico seu arquivo, certificando-me de que a única coisa que há lá são os dados da primeira simulação.
Terei que descobrir uma maneira de explicar aonde os dados desta sessão foram parar. Uma boa mentira, uma que Eric e Max irão realmente acreditar. Com pressa, pego meu canivete e o encaixo entre os painéis que cobrem a placa-mãe do computador, retirando-os. Então vou para o corredor, até o bebedouro, e encho a boca com água.
Quando volto para a sala de simulação, cuspo um pouco da água no vão entre os painéis. Puxo minha faca para longe e espero. Um minuto mais tarde, a tela fica escura. O complexo da Audácia é basicamente uma caverna gotejante – vazamentos de água acontecem o tempo todo.


 


 


 


 


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Eu estava desesperado.
Enviei uma mensagem através do mesmo homem sem-facção que usei como mensageiro da última vez que eu quis entrar em contato com minha mãe. Arrumei um jeito para encontrá-la dentro do último carro do trem 1015 da Audácia. Presumo que ela saberá como me encontrar.
Sento-me com as costas contra a parede, um braço enrolado em torno de um dos meus joelhos, e vejo a cidade passar. Os trens noturnos não se movem tão rápido como os diurnos entre as estações. É mais fácil observar como os edifícios mudam quando o trem se aproxima do centro da cidade, como eles ficam mais altos, porém estreitos, os pilares de suporte de vidro, ao lado de estruturas de pedra mais antigas.
Como uma cidade em camadas sobrepostas. Alguém corre ao lado do trem quando ele atinge o lado norte da cidade. Eu me levanto, segurando uma das alças ao longo da parede.
Alexandra cambaleia para dentro do vagão usando botas da Amizade, um vestido Erudito e uma jaqueta da Audácia. Seu cabelo está preso para trás, fazendo com que ela pareça ainda mais dura.
— Olá — diz ela.
— Oi.
— Toda vez que eu o vejo você está maior — ela comenta. — Acho que não há nenhum motivo para me preocupar que você não esteja comendo bem.
— Eu poderia dizer o mesmo para você — respondo — mas por diferentes razões.
Eu sei que ela não está comendo bem. Ela é uma sem facção, e a Abnegação não está fornecendo o máximo de ajuda como costuma fazer, com a Erudição caindo sobre eles.
Vou para trás e pego a mochila que eu trouxe com enlatados coletados da Audácia.
— É apenas sopa e alguns legumes sem graça, mas é melhor do que nada — falo, quando ofereço para ela.
— Quem disse que eu preciso da sua ajuda? — Alexandra pergunta com cuidado. — Eu estou indo muito bem, você sabe.
— Sim, isso não é para você. É para todos seus amigos magrelas. Se eu fosse você, não recusaria comida.
— Eu não estou recusando — ela devolve, pegando a mochila. — Só não estou acostumada a você cuidando de mim. É um pouco desarmante.
— Estou familiarizado com o sentimento — digo friamente. — Quanto tempo se passou antes de você checar a minha vida? Sete anos?
Alexandra suspira.
— Se você me pediu para vir aqui só para começar esta discussão de novo, receio que eu não possa ficar muito tempo...
— Não — interrompo — não, não foi por isso que pedi que viesse aqui.
Eu não queria entrar em contato com ela, mas sabia que eu não poderia contar a qualquer um da Audácia o que eu havia aprendido sobre o ataque à Abnegação.
Eu não sei quão leais à facção e às suas políticas eles são, e eu tinha que dizer a alguém. Da última vez que falei com Alexandra, ela parecia saber coisas sobre a cidade que eu não sabia. Imagino que ela possa saber como me ajudar com isso antes que seja tarde demais.
É um risco, mas não tenho certeza de para onde mais virar.
— Estive de olho em Max — revelo. — Você disse que a Erudição estava envolvida com a Audácia, e estava certa, eles estão planejando algo juntos, Max, Jeanine e quem sabe quem mais.
Conto-lhe o que vi no computador de Max, as listas de material e os mapas. Digo-lhe o que tenho observado sobre a atitude da Erudição em relação à Abnegação, as reportagens, como eles estão envenenando até mesmo a mente da Audácia contra nossa antiga facção.
Quando termino, Evelyn não parece surpresa, ou mesmo com cara de enterro. Na verdade, não tenho ideia de como ler sua expressão. Ela fica quieta por um alguns segundos, e então fala:
— Você viu qualquer indicação de quando isso pode acontecer?
— Não.
— Nada acerca de números? Quão grande é a força que Erudição e Audácia pretendem usar? Onde eles pretendem convocá-la?
— Eu não sei — respondo, frustrado. — Realmente se importa, nada. Não importa quantos eles sejam, eles podem ceifar a Abnegação em segundos. Não é como se eles fossem treinados para se defender, ou se fariam isso se soubessem, de qualquer maneira.
— Eu sabia que algo estava acontecendo — Alexandra diz, franzindo a testa. — As luzes estão acesas na sede da Erudição o tempo todo. O que significa que eles não têm medo de ficar em apuros com os líderes do Conselho, o que... sugere algo sobre sua discordância crescente.
— Ok. Como é que vamos avisá-los?
— Avisar a quem?
— A Abnegação! — respondo com veemência. — Como advertiremos a Abnegação de que eles estão prestes a ser mortos, como avisaremos a Audácia que seus líderes estão conspirando contra o Conselho, como...
Faço uma pausa. Alexandra está parada com as mãos soltas ao lado do corpo, o rosto relaxado e passivo.
Nossa cidade está mudando, Christopher. Foi o que ela me disse quando nos vimos pela primeira vez depois de tanto tempo. Em breve, todos terão de escolher um lado, e eu sei que você preferiria estar conosco.
— Você já sabia — falo lentamente, lutando para processar a verdade. — Você sabia que eles estavam planejando algo assim, e sabia faz um tempo. Está esperando por isso. Contando com isso.
— Eu não tenho amores por minha antiga facção.
— Eu não posso acreditar que você... Eles não são todos Víctors,Alexandra. Eles são indefesos.
— Acha que eles são tão inocentes? — pergunta ela. — Você não os conhece. Eu os conheço, vi como eles realmente são — sua voz é baixa, gutural. — Como você acha que seu pai conseguiu mentir para você sobre mim todos esses anos? Pensa que os outros líderes da Abnegação não o ajudaram a perpetuar essa mentira? Eles sabiam que eu não estava grávida, que ninguém tinha chamado um médico, que não havia corpo. Mas eles ainda disseram que eu estava morta, não é?
Não tinha me ocorrido antes. Não havia nenhum corpo. Sem corpo, mas ainda assim todos os homens e mulheres sentados na casa de meu pai o velaram na terrível manhã e no funeral, e na noite seguinte entraram no jogo de fingir para mim e para o resto da comunidade da Abnegação, dizendo mesmo em seu silêncio: Ninguém nunca nos deixaria. Quem iria querer isso?
Eu não deveria estar tão surpreso ao descobrir que uma facção é tão cheia de mentirosos, mas acho que existem partes de mim que ainda são ingênuas como uma criança.
Não mais.
— Pense nisso — incita Alexandra. — Aquelas pessoas – que tipo de pessoa diria a uma criança que sua mãe está morta apenas para manter as aparências – são as que você quer ajudar? Ou você quer ajudar a removê-las do poder?
Eu achava que sabia. Aquela gente era a inocente Abnegação, com seus atos constantes de serviço e seus gestos deferentes, eles precisavam ser salvos.
Mas aqueles eram os mentirosos que me forçaram a sofrer, que me deixaram sozinho com o homem que me causou dor. Eles deveriam ser salvos?
Não posso olhar para ela, não posso responder. Espero que o trem passe por uma plataforma, em seguida, salto sem olhar para trás.


 


 


 


 


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— Não me leve a mal, mas você parece horrível.
Shauna afunda na cadeira ao lado da minha, trazendo a bandeja para baixo. Parece que a conversa de ontem com minha mãe é um súbito ruído ensurdecedor, e agora todos os outros sons estão abafados. Eu sempre soube que meu pai era cruel. Mas sempre pensei que os outros da Abnegação fossem inocentes; no fundo, sempre pensei em mim como fraco por deixá-los, como uma espécie de traidor de meus próprios valores. Agora parece que não importa o que eu decida, estarei traindo alguém. Se eu avisar a Abnegação sobre os planos de ataque que encontrei no computador de Max, estarei traindo a Audácia. Se não avisá-los, trairei minha antiga facção novamente, de uma forma muito maior do que fiz antes. Eu não tenho escolha, mas tenho que decidir, e o pensamento me faz sentir enjoado.
Enfrento o dia da única maneira que conheço: eu me levantei e fui trabalhar. Coloquei o ranking – que foi uma fonte de controvérsias, comigo defendendo dar um maior peso para a melhoria, e Eric defendendo a consistência. Fui comer. Eu me deixei levar pelos movimentos, deixando a memória dos músculos trabalhar por mim.
— Você vai comer alguma coisa? — Shauna pergunta, apontando para o meu prato cheio de comida.
Dou de ombros.
— Talvez — posso dizer que ela está prestes a perguntar o que há de errado, então introduzo um novo tópico. — Como Lynn está se saindo?
— Você saberia melhor do que eu — ela responde. — Vendo seus medos e tudo o mais.
Corto um pedaço de carne e começo a mastigá-la.
— Como é? — Ela pede com cautela, levantando uma sobrancelha para mim. — Ver todos os medos deles, quero dizer.
— Não posso falar sobre os medos dela. Você sabe disso.
— Essa é uma regra sua, ou da Audácia?
— Será que isso importa?
Shauna suspira.
— Às vezes sinto como se eu nem sequer a conhecesse, isso é tudo.
Terminamos nossas refeições sem falar. Isso é o que eu mais gosto em Shauna: ela não sente a necessidade de preencher os espaços vazios. Quando terminarmos, deixamos o refeitório juntos, e Zeke chama por nós do outro lado do Abismo.
— Ei! — Ele está girando um rolo de fita adesiva no dedo. — Estão a fim de socar alguma coisa?
— Sim — Shauna e eu respondemos em uníssono.
Caminhamos em direção à sala de treinamento, Shauna atualizando Zeke sobre sua semana na cerca:
— Há dois dias, eu, idiota, estava em patrulha e comecei a surtar, jurando que vi algo lá fora... Acontece que era um saco de plástico...
E Zeke desliza o braço nos ombros dela.
Ando silenciosamente e tenho não ficar em seu caminho. Quando nos aproximamos da sala de treinamento, penso ter ouvido vozes no interior. Franzindo a testa, abro a porta com o pé. Lá dentro estão Lynn, Uriah, Marlene, e... Dul. A colisão de mundos me assusta um pouco.
— Pensei ter ouvido algo daqui — eu falo.
Uriah está disparando em um alvo com uma das armas de munição de plástico que a Audácia costuma usar para se divertir – eu sei pelo fato de que ele não tem uma, de modo que aquela deve ser de Zeke – e Marlene está mastigando alguma coisa. Ela sorri para mim e acena quando entro.
— Acontece que é meu irmão idiota — Zeke fala. — Você não deveria estar aqui depois do horário. Cuidado, ou Quatro contará ao Eric, e então você estará praticamente escalpelado.
Uriah enfia a arma em sua cintura, contra a parte baixa de suas costas, sem puxar a trava de segurança. Ele provavelmente vai acabar com um hematoma no traseiro quando a arma disparar de dentro de suas calças. Eu não menciono isso a ele.
Mantenho a porta aberta para eles passaram. Enquanto passa por mim, Lynn diz:
—Você não contaria ao Eric.
— Não, eu não contaria — concordo.
 Quando Dul passa, eu estendo a mão, e ela se encaixa automaticamente no espaço entre sus omoplatas. Eu nem sei se isso foi intencional ou não. Realmente não me importo.
Os outros chegam ao corredor, e nosso plano original de passar um tempo na sala de treinamento é esquecido uma vez que Uriah e Zeke iniciam um briga e Shauna e Marlene compartilham o resto de um muffin.
— Espere um segundo — peço a Dul.
 Ela se vira para mim, preocupada, então eu tento sorrir, mas é difícil sentir vontade de sorrir agora. Notei tensão na sala de treinamento quando pendurei os rankings mais cedo esta noite – nunca pensei que, quando eu estava calculando os pontos para o ranking, talvez devesse diminuir seus pontos para a sua proteção. Teria sido um insulto à sua habilidade nas simulações colocá-la mais abaixo na lista, mas talvez ela preferisse o insulto ao crescente abismo entre ela e seus companheiros transferidos. Mesmo que ela esteja pálida e exausta, e haja pequenos cortes em torno de suas unhas e um olhar vacilante em seus olhos, sei que não é o caso. Essa garota nunca quereria estar protegida no meio dos outros, nunca.
— Você pertence a este lugar, sabe disso? — eu digo. — Você deve ficar conosco. Isso acabará em breve, então só aguente firme, ok?
A minha nuca de repente parece quente, e a coço com uma das mãos, incapaz de encontrar seus olhos, embora eu possa senti-los em mim enquanto o silêncio se alonga. Em seguida, ela desliza os dedos entre os meus, e eu olho para ela, assustado. Aperto-lhe mão, de leve, e isso é registrado através do meu tumulto interior e cansaço como se eu a tivesse tocado meia dúzia de vezes – cada uma um lapso de julgamento – e esta é a primeira vez que ela fez isso de volta. Então ela se vira e corre para alcançar seus amigos.
E eu fico no corredor, sozinho, sorrindo como um idiota.


 


 


 


 


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Tento dormir durante quase uma hora, me revirando debaixo da coberta para encontrar uma posição confortável. Mas parece que alguém trocou meu colchão por um saco de pedras. Ou então minha mente está ocupada demais para eu conseguir dormir.
Eventualmente eu desisto, coloco meus tênis e jaqueta e caminho para a Caverna, como sempre faço quando não consigo dormir. Penso em rodar o programa da paisagem do medo de novo, mas não lembrei de repor meu suprimento de soro de simulação esta tarde, e seria muito arriscado tentar conseguir um agora. Em vez disso, vou para a sala de controle, onde Gus me cumprimenta com um grunhido e os outros dois funcionários nem percebem minha presença.
Não tento olhar os arquivos de Max novamente – sinto como se eu já soubesse tudo o que preciso saber, que algo ruim está para acontecer e eu não faço a mínima ideia de como tentarei impedir.
Preciso contar para alguém, preciso de alguém para compartilhar isso comigo, para me dizer o que fazer. Mas não há ninguém a quem eu confiaria algo como isso. Mesmo os meus amigos que nasceram e foram criados na Audácia; como eu saberia que eles não confiariam em seus líderes? Eu não posso saber.
Por algum motivo, o rosto de Dul vem à minha mente, e lembro quando ela apertou minha mão no corredor.
Eu observo as filmagens, olhando para as ruas da cidade e depois voltando para o complexo da Audácia. A maioria dos corredores está tão escura que eu praticamente não conseguiria ver mesmo que houvesse algo lá. Em meus fones de ouvido, ouço apenas a água correndo ou o zumbido do vento pelos becos. Eu suspiro, apoiando a cabeça na mão, e olhando as imagens mudando, uma após a outra, e deixando-as me levar para um tipo de sono consciente.
— Vá para cama, Quatro — Gus fala do outro da sala.
Eu desperto e concordo com a cabeça. Se eu não estou realmente olhando as imagens, não é uma boa ideia continuar na sala de controle. Saio da minha conta no computador e ando pelo corredor até o elevador, piscando para me manter acordado.
Enquanto caminho pelo hall de entrada, escuto um grito vindo de baixo, vindo do Abismo. Não é um grito normal de um integrante da Audácia, ou o grito de alguém que está assustado, é um tom particular, o tom particular de terror.
Pequenas pedrinhas voam atrás de mim enquanto corro para a beira do Abismo, minha respiração rápida e pesada, mas contínua.
Três pessoas altas e com roupas escuras estão perto do parapeito. Eles estão em volta de uma quarta pessoa, menor, e mesmo que eu não saiba quem eles são daqui de longe, reconheço uma briga quando vejo uma. Ou eu chamaria isso de briga, se não fosse três contra um.
Um dos sujeitos olha em volta, me vê e sai correndo para o outro lado. Quando chego mais perto, vejo que um dos atacantes está segurando a vítima para cima, sobre o parapeito, e grito:
— Ei!
Eu vejo seu cabelo loiro, e dificilmente consigo ver outra coisa depois disso. Eu me choco contra um dos atacantes – Drew, eu posso dizer pela cor de seu cabelo vermelho alaranjado – e o empurro para o parapeito. Eu o acerto uma, duas, três vezes no rosto, e ele cai no chão, e então começo a chutá-lo, e eu não estou raciocinando, não consigo raciocinar de forma alguma.
— Quatro.
Sua voz é baixa, rouca, e é a única coisa que possivelmente poderia me atingir nesse lugar. Ela está apoiada na beira do Abismo, balançando como se fosse um peixe numa vara. O outro, o último atacante, foi embora.
Eu corro até ela, pegando-a por debaixo dos braços, e a puxo da beira do Abismo. Eu a seguro contra meu peito. Ela pressiona o rosto em meu ombro, enrolando os dedos na minha camiseta.
Drew está no chão, desmaiado. Eu o ouço gemer enquanto carrego Dul para longe – não para a enfermaria, onde os outros que foram atrás dela pensariam em ir, mas para o meu apartamento, em um corredor solitário e isolado. Entro no apartamento e a deito em minha cama. Passo meus dedos por seu nariz e clavículas procurando por fraturas, depois checo sua pulsação e me inclino para ouvir sua respiração. Tudo parece normal, estável. Até o machucado na parte de trás de sua cabeça, mesmo que arranhado e sujo de sangue, não parece sério. Ela não está seriamente ferida, mas poderia estar.
Minha mão está tremendo quando eu me afasto dela. Ela não está machucada seriamente, mas Drew pode estar. Eu nem sei quantas vezes o acertei antes de ela chamar meu nome e me despertar. O resto do meu corpo começa a tremer também, e checo se há um travesseiro embaixo de sua cabeça, depois deixo o apartamento para ir ao Abismo. No caminho, tento repassar os últimos minutos em minha mente, tento recordar onde eu acertei, quando e com que intensidade, mas tudo está perdido em uma vertigem de fúria.
Imagino se era assim para ele, lembrando do olhar selvagem e frenético de Víctor toda vez que ele ficava com raiva.
Quando chego até o Abismo, Drew ainda está lá, deitado em uma posição estranha e contorcida no chão. Coloco seu braço sobre meus ombros e meio carrego, meio arrasto o garoto para a enfermaria.


 


 


 


 


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Quando volto para o meu apartamento, imediatamente vou para o banheiro lavar o sangue das minhas mãos – alguns dos meus dedos estão cortados por conta do impacto contra o rosto de Drew. Se Drew estava lá, o outro atacante deveria ser Peter, mas quem era o terceiro? Molly não – a forma era muito alta, muito grande. Na verdade, só há um iniciado daquele tamanho.
Al.
Checo o meu reflexo, esperando ver pequenos pedacinhos de Víctor olhando de volta para mim. Há um corte no canto da minha boca – Drew me atacou de volta em algum momento?
Não importa. Meu lapso de memória não importa. O que importa é que Dul está respirando.
Deixo minhas mãos embaixo da água até que fiquem limpas, depois as seco na toalha e vou até o freezer pegar um saco de gelo. Enquanto eu o levo até Dul, percebo que ela está acordada.
— Suas mãos — ela diz, e é algo ridículo a se dizer, tão estúpido estar preocupada com as minhas mãos quando ela estava pendurada no Abismo pouco tempo atrás.
— Minhas mãos — eu digo, irritado. — Não são da sua conta.
Eu me inclino sobre ela, deslizando o saco de gelo sob sua cabeça, onde senti um inchaço mais cedo. Ela levanta a mão e toca as pontas dos dedos em minha boca.
Nunca pensei que poderia sentir um toque dessa forma, como um choque de energia. Seus dedos são macios, curiosos.
— Dul — eu digo. — Eu estou bem.
— Por que você estava lá?
— Eu estava voltando da sala de controle. Ouvi um grito.
— O que você fez com eles?
— Eu deixei Drew na enfermaria meia hora atrás. Peter e Al correram. Drew alegou que tentavam apenas te assustar. Pelo menos acho que isso era o que ele estava tentando dizer.
— Ele está muito mal?
— Ele vai viver. Em que condições, eu não posso dizer — eu cuspo.
Eu não deveria deixá-la ver esse meu lado, o lado que sente prazer na dor de Drew. Eu não deveria ter esse lado.
Ela alcança o meu braço e o aperta.
— Bom, — ela diz.
Eu olho para ela. Ela tem esse lado também, tem que ter. Eu vi como ela estava quando venceu Molly, como se fosse continuar sem se importar se a oponente estivesse inconsciente ou não. Talvez eu e ela sejamos iguais.
Seu rosto se contorce, e ela começa a chorar. Na maior parte do tempo, quando alguém chora na minha frente, eu me sinto pressionado, como se eu precisasse escapar da presença da pessoa para conseguir respirar. Não me sinto dessa forma com ela. Eu não me preocupo que ela espere muito de mim, ou que ela precise de mim de qualquer forma. Eu sento no chão para ficar da mesma altura que ela e a observo cuidadosamente por um momento. Depois toco seu rosto, cuidadosamente, para não pressionar nenhum dos seus machucados. Passo meu dedão pela sua bochecha. Sua pele está quente.
Eu não tenho a palavra certa para descrever como ela é, mas mesmo agora, com partes do seu rosto inchadas e pálidas, há algo atraente nela, algo que nunca vi antes.
Naquele momento, eu sou capaz de aceitar a inevitável forma de como me sinto, mesmo que não com alegria.
Eu preciso falar com alguém. Eu preciso confiar em alguém. E por qualquer razão que seja, eu sei, eu sei que é ela.
Eu tenho que começar dizendo o meu nome.


 


 


 


 


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Eu me aproximo de Eric na fila do café da manhã, ficando atrás dele com minha bandeja enquanto ele usa uma colher de cabo longo para colocar ovos mexidos em seu prato.
— Se eu te dissesse que um dos iniciados foi atacado na noite passada por outro iniciado — eu digo — você ao menos se importaria?
Ele coloca os ovos em um lado de seu prato, e dá de ombros.
— Talvez eu me importe com o fato de que o instrutor deles não parece ser capaz de controlar seus iniciados — Eric diz enquanto eu pego uma tigela de cereais para mim. Ele olha para os meus dedos cortados. — Eu poderia me importar com esse ataque hipotético se ele fosse o segundo sob as vistas do instrutor... considerando que os nascidos na Audácia não tem esse problema.
— Tensões entre os transferidos são naturalmente mais frequentes – eles não conhecem uns aos outros, ou essa facção, e seus passados são bem diferentes — eu digo. — E você é o líder deles, não deveria ser responsável por mantê-los sob controle?
Ele coloca um pedaço de torrada perto de seus ovos mexidos com um pegador. Então se inclina para perto do meu ouvido e diz:
— Você está andando sobre gelo fino, Christopher — ele sussurra. — Discutindo comigo na frente dos outros. “Perdeu” os resultados de simulações. Sua óbvia inclinação para os iniciantes mais fracos do ranking. Até Max concorda agora. Se houve um ataque, não acho que ele ficará muito feliz com você, e ele talvez não se oponha quando eu sugerir que você seja removido de seu posto.
— Então você seria o instrutor dos iniciados uma semana antes do final da iniciação.
— Eu posso terminá-la eu mesmo.
— Só posso imaginar como ela seria sob sua supervisão — eu digo, estreitando meus olhos. — Nós nem precisaríamos fazer nenhum corte. Todos eles morreriam ou desertariam por conta própria.
— Se você não for cuidadoso, não precisará imaginar nada — ele chega ao final da fila e se vira para mim. — Ambientes competitivos criam tensões, Quatro. É natural que a tensão precise ser liberada de alguma forma. — Ele sorri um pouco, esticando a pele entre seus piercings. — Um ataque certamente nos mostraria, em uma situação no mundo real, quem são os mais fortes e os mais fracos, você não acha? Nós não precisaríamos nos basear nos resultados, dessa forma. Poderíamos fazer uma decisão mais informada de quem não pertence à Audácia... Se um ataque acontecesse.
A implicação é clara: como sobrevivente do ataque, Dul seria vista como mais fraca do que os outros iniciantes, e propensa à eliminação.
Eric não correria para ajudar a vítima, mais facilmente ele votaria por sua expulsão da Audácia, como fez antes de Edward sair por conta própria. Não quero que Dul seja forçada a ser uma sem-facção.
— Certo — eu digo calmamente. — Bem, então é bom que nenhum ataque tenha acontecido recentemente.
Eu derramo um pouco de leite em cima do meu cereal e ando para a minha mesa. Eric não vai fazer nada com Peter, Drew ou Al, e não posso fazer nada sem pisar fora da linha e sofrer as consequências. Mas talvez – talvez eu não tenha que fazer isso sozinho. Coloco minha bandeja entre Zeke e Shauna e digo:
— Preciso da ajuda de vocês com uma coisa.


 


 


 


 


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Depois que a explicação sobre a paisagem do medo termina e todos os iniciados serem liberados, puxo Peter para o canto da sala de observação, perto da sala de simulação. Essa sala contém fileiras de cadeiras, prontas para os iniciados sentarem enquanto esperam sua vez para fazer o teste final. Ela também contém Zeke e Shauna.
— Nós precisamos ter uma conversinha — eu digo.
Zeke anda até Peter, e o empurra contra a parede de concreto com uma força alarmante. Peter bate a parte de trás da cabeça e estremece.
— E aí? — Zeke diz, e Shauna anda até eles, girando uma faca em sua mão.
— O que é isso? — Peter pergunta. Ele não parece nem um pouco com medo, mesmo quando Shauna pega a lâmina pelo cabo e pressiona a ponta em sua bochecha. — Tentando me assustar? — ele zomba.
— Não — respondo. — Tentando deixar algo claro. Você não é o único que tem amigos que querem fazer algum mal.
— Eu não acho que instrutores de iniciação devam fazer ameaças, não é? — Peter me olha com as sobrancelhas erguidas, um olhar que eu talvez confundiria com inocência se eu não soubesse como ele realmente é. — Terei que perguntar ao Eric, só para ter certeza.
— Eu não o ameacei — replico. — Eu não estou nem tocando em você. E de acordo com as imagens desta sala que estão guardadas nos computadores da sala de controle, nós nem estamos aqui agora.
Zeke ri como se não pudesse aguentar mais. Foi ideia dele.
— Quem está te ameaçando sou eu — Shauna diz, quase em um rosnado. — Mais uma interrupção e terei que lhe ensinar uma lição sobre justiça. — Ela segura a ponta da faca sobre seu olho, e a empurra para frente vagarosamente, aproximando a ponta de sua pupila. Peter congela, mal se mexendo até para respirar. — Olho por olho. Arranhão por arranhão.
— Talvez Eric não ligue se você fizer mal aos seus colegas — Zeke diz, — mas nós ligamos, e há vários na Audácia como nós. Pessoas que não acham que você deveria tocar um dedo em companheiros de facção. Pessoas que ouvem fofocas, e as espalham como fogo vivo. Não vai demorar muito para contarmos a elas que tipo de verme você é, ou para elas fazerem sua vida ficar bem, bem difícil. Sabe como é, na Audácia, reputações tendem a permanecer por um longo tempo.
— Nós vamos começar com todos os seus chefes em potencial — Shauna diz. — Os supervisores na sala de controle – Zeke pode falar com eles; os líderes lá fora na cerca – eu fico com eles. Maite conhece todos no Abismo – Quatro, você é amigo da Maite, não é?
— É, sou sim — confirmo. Eu chego mais perto de Peter, e inclino a cabeça. — Você talvez seja capaz de causar dor, novato... mas nós podemos te causar uma miséria a longo prazo.
Shauna afasta a faca do olho de Peter.
— Pense nisso.
Zeke solta a camiseta de Peter, ainda sorrindo. De alguma forma, a combinação da ferocidade de Shauna e a alegria de Zeke é estranha o suficiente para ser ameaçadora.
Zeke acena para Peter, e nós vamos embora juntos.
— Você queria que a gente fale com as pessoas de qualquer forma, né? — Zeke me pergunta.
— Ah sim — eu digo. — Definitivamente. Não só sobre Peter. Drew e Al também.
— Talvez, se ele sobreviver à iniciação, eu tropece acidentalmente nele e ele acidentalmente caia no Abismo — Zeke reflete esperançosamente, fazendo um gesto de mergulho com a mão.


 


 


 


 


                                                             + + +


 


 


 


 


Na manhã seguinte, há uma multidão reunida perto do Abismo, todos muito quietos e tranquilos, embora o cheiro do café da manhã chame todos nós em direção ao refeitório. Eu não tenho que perguntar por que eles estão reunidos.
Isso acontece quase todo ano, estou dizendo. Uma morte. Como Amar, repentina, terrível e devastadora. Um corpo içado do Abismo como um peixe no anzol. Normalmente alguém jovem – um acidente, por causa de um ato audacioso que deu errado, ou talvez não um acidente, uma mente ferida pela escuridão, pela pressão, pelo preço de ser da Audácia.
Eu não sei como me sentir com essas mortes. Culpado, talvez, por não ver a dor eu mesmo. Doloroso, que outras pessoas não conseguem achar outro jeito de fugir.
Ouço o nome do falecido falado à frente, e ambas emoções me atacam com força.
Al. Al. Al.
Meu iniciado – minha responsabilidade e eu falhei, e estive tão obcecado por pegar Max e Jeanine, ou acusando Eric por tudo, ou com a minha indecisão sobre avisar a Abnegação. Não – nenhuma dessas coisas tanto quanto essa: eu me distanciei deles para minha própria proteção, quando deveria estar atraindo-os para fora dos lugares escuros daqui e para aqueles mais leves. Rindo com amigos nas pedras do Abismo. Tatuagens tarde da noite depois de uma rodada de Desafio. Um mar de abraços depois das posições serem anunciadas. Essas são as coisas que eu poderia tê-lo mostrado – mesmo que não o tivesse ajudado, eu deveria ter tentado.
Eu sei de uma coisa: depois de a iniciação desse ano acabar, Eric não precisará tentar com tanto afinco me expulsar dessa posição. Eu já terei saído.


 


 


 


 


                                                            + + +


 


 


 


 


Al. Al. Al.
Por que todos precisam morrer para se tornarem heróis na Audácia? Por que nós precisamos deles para isso? Talvez eles sejam os únicos que podemos encontrar em uma facção de líderes corruptos, colegas competitivos e instrutores cínicos. Pessoas mortas podem ser nossos heróis porque elas não podem nos desapontar depois; só podem melhorar ao longo do tempo, enquanto nos esquecemos mais e mais deles.
Al era inseguro e sensível, e depois foi invejoso e violento, e então se foi. Homens mais tranquilos que Al viveram e homens mais duros que Al morreram e não houve nenhuma explicação para isso.
Mas Dul quer uma, anseia por uma, posso ver no seu rosto, um tipo de desejo. Ou raiva. Ou ambos. Não posso imaginar que seja fácil gostar de alguém, odiá-lo, e depois perdê-lo antes que qualquer um desses sentimentos sejam resolvidos. Eu a sigo para longe dos cânticos Audaciosos porque sou arrogante o suficiente para acreditar que posso fazê-la se sentir melhor.
Certo. Claro. Ou talvez eu a siga porque estou cansado de ser tão distante de todos, e eu já não estou certo de qual é a melhor maneira de ser.
— Dul — chamo.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta amargamente. — Não deveria estar prestando suas condolências?
— E você também não deveria? — Me movo em direção a ela.
— Não posso prestar meu respeito quando não tenho nenhum.
Estou surpreso, por um momento, que ela consiga ser tão fria – Dul não é sempre agradável, mas ela raramente é arrogante sobre alguma coisa. Ela só leva um segundo para sacudir a cabeça.
— Eu não quis dizer isso.
— Ah.
— Isso é ridículo — ela diz, corando. — Ele se jogou no abismo e Eric o está chamando de corajoso? Eric, que tentou fazer você jogar facas na cabeça de Al?
— O que você quer que eles façam? Condená-lo? Al já está morto. Ele não pode ouvir isso e é tarde demais.
— Isso não é sobre Al! — ela diz. — É sobre todos assistindo! Todos que agora veem como uma opção se atirar no abismo. Quero dizer, por que não fazê-lo se todos irão chamá-lo de herói depois? Por que não fazê-lo se todos irão lembrar seu nome? É... Eu não posso...
Mas é claro, isso é sobre Al, e ela sabe disso.
— Isso nunca teria acontecido na Abnegação! Nada disso! Nunca. Esse lugar o perverteu e o arruinou, e eu não ligo se dizer isso faz de mim uma Careta. Eu não ligo, eu não ligo!
Minha paranoia está tão enraizada que olho automaticamente para a câmera enterrada na parede acima do bebedouro, disfarçada pela lâmpada azul fixada lá. As pessoas na sala de controle podem nos ver, e se tivermos azar, eles poderiam escolher esse momento para nos ouvir, também.
— Cuidado, Dul — eu digo.
— Isso é tudo o que você pode dizer? Que eu deveria tomar cuidado? É isso?
Entendo que minha resposta não foi exatamente o que ela estava esperando, mas para alguém que só protestou contra a imprudência da Audácia, ela definitivamente está agindo como um deles.
— Você é tão ruim quanto os membros da Franqueza, sabia disso? — Eu digo.
A Franqueza está sempre com suas bocas soltas, nunca pensam nas consequências. Eu a puxo para longe do bebedouro, e então estou perto do seu rosto e consigo imaginar seus olhos mortos flutuando na água do rio subterrâneo e não posso suportar isso, não quando ela estava sendo atacada e quem sabe o que teria acontecido se eu não a tivesse ouvido gritar.
— Eu não vou dizer isso de novo, então escute atentamente — coloco as mãos em seus ombros. — Eles estão de olho em você. Você, em particular.
Lembro dos olhos de Eric nela depois do arremesso de facas. Suas perguntas sobre os dados deletados de sua simulação. Eu aleguei que foram danos causados pela água. Ele pensou ser interessante que a água tenha danificado os arquivos menos de cinco minutos depois da simulação de Tris ter terminado. Interessante.
— Me solte — ela diz.
Eu o faço imediatamente. Não gosto de ouvir sua voz desse jeito.
— Eles estão vigiando você também?
Sempre estiveram, sempre estarão.
— Eu continuo tentando te ajudar, mas você se recusa a ser ajudada.
— Ah, claro. Sua ajuda — ela diz. — Apunhalando minha orelha com uma faca, me provocando e gritando comigo mais do que com qualquer outro, com certeza ajuda.
— Provocando você? Você quer dizer quando eu atirei as facas? Não estava te provocando! — Eu balanço minha cabeça. — Eu estava te lembrando que se você falhasse, outra pessoa teria que tomar o seu lugar.
Para mim, no momento, quase parecia óbvio. Eu pensei, já que ela parecia me entender melhor que a maioria das pessoas, que ela entenderia isso, também. Mas claro que ela não entendeu. Ela não é leitora de mentes.
— Por quê?
— Porque você é da Abnegação — respondo. — E é quando você age altruisticamente que você é mais corajosa. E se eu fosse você, eu me esforçaria mais em fingir que esses impulsos altruístas já não existem mais. Porque se as pessoas erradas descobrirem... Bem, não será bom para você.
— Por quê? Por que eles se importam com as minhas intenções?
— Intenções são as únicas coisas com as quais eles se importam. Eles tentam fazer com que você pense que eles se preocupam com o que você faz, mas não. Eles não querem que você aja de certa forma. Eles querem que você pense de um modo específico. Para que você seja fácil de ser decifrada. Para que você não represente uma ameaça para eles.
Coloco a mão na parede perto do rosto dela e me inclino para ela, pensando nas tatuagens que formam uma linha nas minhas costas. Elas não me faziam um traidor de facção. Era o que elas representavam pra mim – uma fuga dos pensamentos restritos de uma facção, o pensamento que me fatia em diferentes partes de mim, me diminuindo para uma pequena versão de mim.
— Eu não entendo. Por que eles se importam com o que eu penso, mesmo quando eu ajo como eles esperam de mim?
— Você está agindo como eles querem agora — respondo. — Mas o que acontece quando seu lado da Abnegação mandar que você faça alguma outra coisa, algo que eles não querem que você faça?
Tanto quanto eu gosto dele, Zeke é um exemplo perfeito. Nascido na Audácia, criado na Audácia, escolheu Audácia. Posso contar com ele para abordar isso. Ele foi treinado desde o nascimento. Para ele, não existem outras opções.
— Talvez eu não precise que você me ajude. Já pensou sobre isso? — Quero rir da pergunta. Claro que ela não precisa de mim. Quando foi que ela precisou? — Eu não sou fraca, você sabe. Posso fazer isso sozinha.
— Você pensa que meu primeiro instinto é proteger você — eu me movo, então estou mais perto dela. — Porque você é pequena, ou uma garota, ou uma Careta. Mas você está errada.
Sempre mais perto. Eu toco o queixo dela, e por um momento penso em acabar com essa distância completamente.
— Meu primeiro instinto é empurrá-la até que você quebre, só para ver quão forte eu tenho que pressioná-la — eu digo, e esta é uma admissão estranha, e perigosa. Não quero dizer que espero que ela se machuque, eu nunca sentiria isso, e espero que ela saiba que não é isso o que quero dizer. — Mas eu resisto.
— Por que esse é seu primeiro instinto?
— Medo não te derruba. Ele faz você levantar. Eu já vi isso. É fascinante.
Os olhos dela em toda simulação do medo, são apenas gelo, aço e chama azul. A pequena e leve garota com braços de arame esticado. A contradição ambulante. Minha mão desliza sobre sua mandíbula, toca seu pescoço.
— Algumas vezes eu só quero ver isso de novo. Ver você despertar.
Suas mãos tocam minha cintura, e ela se puxa para mim, ou me puxa contra ela, eu não posso dizer qual. As mãos dela se movem pelas minhas costas, e eu a quero, de um jeito que não sentia antes, não apenas uma espécie de unidade física irracional, mas um desejo específico real. Não por “alguém”, somente por ela.
Toco suas costas, seu cabelo. É o suficiente por enquanto.
— Eu deveria estar chorando? — ela pergunta, e me leva um segundo para perceber que ela está falando de Al novamente. Bom, porque se esse abraço a fez querer chorar, tenho que admitir não saber absolutamente nada sobre romance. O que pode ser verdade, de qualquer maneira. — Tem alguma coisa errada comigo?
— Você acha que sei alguma coisa sobre lágrimas?
As minhas vêm sem avisar e desaparecem alguns segundos depois.
— Se eu o tivesse perdoado... você acha que ele estaria vivo agora?
— Eu não sei — coloco a mão em sua bochecha, meus dedos se esticam atrás da orelha dela. Ela é realmente pequena. Eu não me importo.
— Eu sinto como se fosse a minha culpa — ela diz.
Eu também.
— Não é sua culpa.
Coloco minha testa sobre a dela. Sua respiração é quente sobre meu rosto. Eu estava certo, isso é melhor do que manter minha distância, isso é muito melhor.
— Mas eu deveria tê-lo perdoado. Eu deveria.
— Talvez. Talvez todos nós pudéssemos ter feito alguma coisa — falo, e então solto uma banalidade da Abnegação sem pensar. — Mas nós só podemos deixar a culpa nos lembrar de fazer mais da próxima vez.
Ela se inclina para trás imediatamente, e eu sinto um impulso familiar de ser ruim com ela de modo que ela esqueça o que eu disse e não me faça perguntas.
— De qual facção você veio, Quatro?
Acho que você sabe.
— Não importa. Aqui é onde eu estou agora. Uma coisa que seria boa que você lembrasse.
Eu não quero mais apenas ficar perto dela; é tudo o que quero fazer.
Eu quero beijá-la; mas agora não é a hora.
Toco meus lábios em sua testa, e nenhum de nós se move. Não há volta agora, não para mim.


 


 


 


 


                                                               + + +


 


 


 


 


Algo que ela disse fica comigo o dia todo.
Isso não aconteceria na Abnegação.
Primeiro eu me encontrei pensando, Ela apenas não sabe do que eles realmente gostam.
Mas eu estou errado, e ela está certa. Al não teria morrido na Abnegação, ele não a teria atacado lá, tampouco. Eles podem não ser tão puramente bons como eu acreditava – ou queria acreditar – mas eles não são maus, tampouco.
Vejo o mapa do setor da Abnegação, aquele que encontrei no computador de Max, impresso em minhas pálpebras quando fecho meus olhos. Se eu avisá-los, ou se não fizer isso, serei um traidor de qualquer forma, de um jeito, ou de outro. Então, se a lealdade é impossível, que alternativa tenho?


 


 


 


 


                                                                + + +


 


 


 


 


Leva um tempo até eu bolar um plano sobre como lidar com isto. Se ela fosse uma garota normal da Audácia e eu um simples rapaz da Audácia, eu a convidaria para sair e iríamos nos divertir perto do Abismo, onde eu poderia mostrar os meus conhecimentos sobre a nossa sede. Mas isso parece demasiado vulgar depois das coisas que dissemos um ao outro, depois de eu ter visto as partes mais profundas de sua mente.
Talvez esse seja o problema – o peso está todo apenas de um lado neste momento, porque eu a conheço, sei do que ela tem medo e o que ela mais ama e odeia, mas tudo o que ela sabe sobre mim foi o que eu lhe contei. E o que eu lhe contei é tão vago que pode ser posto de lado, porque eu tenho um problema específico.
Depois que já sei o que tenho que fazer, apenas saber como fazê-lo será o problema.
Ligo o computador na sala da paisagem do medo e o preparo para seguir a minha paisagem.
 Arranjo duas seringas com o soro da simulação do depósito e ponho-as na pequena caixa preta que uso para guardá-las. Depois vou para o dormitório dos transferidos, sem ter a certeza de como vou apanhá-la sozinha tempo o suficiente para pedir-lhe para vir comigo. Mas aí eu a vejo com Alfonso e Anahí, juntos à grade do Abismo, e eu devia chamá-la, mas não sou capaz. Sou maluco, ao pensar em deixá-la entrar na minha cabeça? Deixá-la ver Víctor, descobrir o meu nome, conhecer tudo o que tentei tanto deixar escondido?
Volto para a sala da paisagem medo, o meu estômago às voltas. Quando chego ao lobby, reparo que as luzes começaram a se acender pela cidade à nossa volta. Ouço os passos dela nas escadas. Ela veio atrás de mim.
Agarro na minha pequena caixa preta.
— Já que você está aqui — eu digo, como se fosse normal — você pode muito bem vir comigo.
— Para sua paisagem do medo?
— Sim.
— Eu posso fazer isso?
— O soro te conecta ao programa, mas o programa determina qual paisagem você vai passar. E agora, está configurado para nos colocarmos na minha.
— Você me deixaria ver isso?
Eu mal consigo olhar para ela.
— Por que outra razão você acha que eu vou entrar? — o meu estômago dói ainda mais. — Há algumas coisas que eu quero te mostrar.
Abro a caixa e tiro a primeira seringa. Ela inclina a cabeça, e eu injeto o soro, tal como nós sempre fizemos durante as simulações. Mas invés de me injetar com a outra seringa, eu ofereço-lhe a caixinha. Supõe-se que esta é a minha maneira de sair à noite, apesar de tudo.
— Eu nunca fiz isso antes — ela fala.
— Bem aqui — eu toco no lugar.
Ela treme um pouco enquanto insere a agulha, e a dor da agulha já é familiar, já não me incomoda mais. Fiz isto demasiadas vezes.
Eu vejo o rosto dela. Não volte atrás, não volte atrás. É hora de ver do que ambos somos feitos.
Dou-lhe a mão, ou talvez ela que me dá a dela, e nós andamos para a sala da simulação de medo juntos.
— Veja se você pode descobrir por que eles me chamam de Quatro.
A porta se fecha atrás de nós, e a sala fica escura. Ela vem para perto de mim e diz:
— Qual é o seu verdadeiro nome?
— Veja se você pode descobrir isso também.
A simulação começa.
A sala abriu-se para um largo céu azul, e nós estamos no telhado do edifício, rodeados pela cidade, com o sol brilhando. É lindo apenas por um momento antes de o vento começar, destemido e poderoso, e eu ponho o meu braço à volta dela porque sei que ela é mais segura do que eu neste lugar.
Tenho dificuldade em respirar, o que é normal para mim, aqui neste espaço. Acho esta onda de ar sufocante, e sua força me faz querer enrolar numa bola e me esconder.
— Temos de saltar, certo? — ela pergunta, e eu me lembro de que não posso me enrolar numa bola e me esconder; tenho de encarar isto agora.
Eu aceno.
— No três, ok?
Volto a acenar. Tudo o que tenho de fazer é segui-la, é só isso que tenho de fazer.
Ela conta até três e me leva atrás dela à medida que corre, como se ela fosse um veleiro e eu uma âncora, puxando nós dois para baixo. Nós caímos e eu luto contra a sensação com todas as minhas forças, o medo gritando em cada nervo, e a seguir estou no chão, a respiração presa em meu peito.
Ela me ajuda a levantar. Sinto-me estúpido ao lembrar de como ela escalou aquela roda gigante sem medo e sem hesitação.
— Qual é o próximo?
Quero dizer-lhe que isto não é um jogo; os meus medos não são aventuras em que ela pode seguir em frente. Mas provavelmente ela não quis dizer aquilo desta maneira.
— É...
A parede aparece do nada, contra as costas dela e as minhas, e dos nossos lados. Nos força a nos aproximar, mais perto do que alguma vez tivemos antes.
— Confinamento — eu digo, e fica pior do que o habitual com ela aqui, sugando metade do meu ar.
Eu gemo um pouco ao dobrar-me sobre ela. Odeio este lugar. Odeio isto aqui.
— Ei. Está tudo bem. Aqui...
Ela puxa o meu braço ao redor dela. Sempre pensei nela magrinha, sem nada “extra” sobre ela.  Mas a cintura dela é macia.
— Esta é a primeira vez que fico feliz por ser tão pequena.
— Mmmm.
Ela está falando sobre como sair. Estratégia da paisagem do medo. Estou tentando me concentrar em respirar. Ela nos puxa para baixo, de maneira a fazer com que a caixa fique menor ainda, e vira-se com as costas contra o meu peito, então estou envolvendo-a completamente.
— Isso é pior — digo, porque com o meu nervosismo por causa da caixa e o nervosismo por estar encostado em todo o seu corpo, não consigo sequer pensar direito. — Isso sem dúvida...
— Shh. Braços envoltos em mim.
Coloco os meus braços em volta da sua cintura, e enterro o rosto em seu ombro. Ela cheira como o sabonete da Audácia, e doce, como uma maçã.
Estou esquecendo de onde estou.
Ela voltou a falar sobre a paisagem do medo, e estou ouvindo, mas também estou concentrado em tentar perceber o que ela sente.
— Portanto, tente esquecer que estamos aqui — ela conclui.
— Sim? — Ponho os meus lábios junto à sua orelha, desta vez de propósito, para tentar manter a distração, mas também porque tenho a sensação de que não sou o único distraído. — Isso é fácil, hein?
— Você sabe, a maioria dos meninos gostaria de estar preso em quartos fechados com uma garota.
— Não pessoas claustrofóbicas, Dul!
— Ok, ok — ela agarra a minha mão e a leva ao seu peito, logo abaixo de onde a sua clavícula mergulha. Tudo em que consigo pensar é no que quero, o que de repente não tem nada a ver com sair desta caixa.
— Sinta meu coração. Você pode sentir isso?
— Sim.
— Sente como ele está estável?
Sorrio por cima do seu ombro.
— Está muito rápido.
— Sim, bem, isso não tem nada a ver com a caixa.
Claro que não tem.
— Toda vez que me sentir respirar, você respira. Concentre-se nisso.
— Ok.
Nós respiramos juntos, uma, duas vezes.
— Por que você não me diz de onde esse medo vem? Talvez falar sobre o assunto vá nos ajudar... de alguma forma.
Sinto que este medo já devia ter desaparecido, mas o que ela está fazendo é a aumentar o meu nível de inquietação, não fazendo desaparecer por completo o meu medo. Tento concentrar-me de onde esta caixa vem.
— Hum... tudo bem — certo, apenas o faça, diga algo verdadeiro. — Este é da minha infância fantástica. Castigos de infância. O pequeno armário sob a escada.
Calado no escuro do armário para pensar sobre o que tinha feito. Era melhor do que outros castigos, mas às vezes eu ficava lá por muito tempo, desesperado por ar fresco.
— Minha mãe guardava nossos casacos de inverno no armário — ela fala, e é uma coisa boba de se dizer depois do que acabei de lhe contar, mas consigo perceber que ela não sabe o que mais fazer.
— Eu não... Eu não quero mais falar sobre isso — eu digo com um suspiro.
Ela não sabe o que dizer, ninguém conseguiria saber o que dizer, porque a dor da minha infância é demasiado patética para que mais alguém consiga lidar – os meus batimentos cardíacos voltam a disparar.
— Ok. Eu posso falar. Pergunte-me alguma coisa.
Eu levanto a minha cabeça. Estava funcionando antes, concentrar-me nela. O seu coração acelerado, o seu corpo contra o meu. Dois fortes esqueletos embrulhados em músculo, entrelaçados; dois transferidos da Abnegação se esforçando para deixar a tentativa de flerte para trás.
— Ok. Por que seu coração está acelerado, Dul?
— Eu mal te conheço — quase consigo imaginar o seu sorriso. — Eu não te conheço e estou enrolada contra você dentro de uma caixa, Quatro, o que você acha?
— Se nós estivéssemos em sua paisagem do medo — falo — eu estaria nela?
— Eu não tenho medo de você.
— Claro que você não tem. Mas não foi isso que eu quis dizer.
Eu não queria dizer Tem medo de mim?, mas Sou importante o suficiente para você para estar na sua paisagem de qualquer maneira?
Provavelmente não. Ela tem razão, ela mal me conhece. Mas mesmo assim, seu coração está rápido. Eu rio, e as paredes se partem como se o meu riso as obrigasse a se quebrar, e o ar abrisse à nossa volta. Respiro profundamente, e nos afastamo um do outro. Ela olha para mim de uma maneira suspeita.
— Talvez você tenha sido descartada da Franqueza — falo — porque você é uma péssima mentirosa.
— Acho que o meu teste de aptidão decidiu que eu minto muito bem.
— O teste de aptidão não diz nada.
— O que você está tentando me dizer? O teste não é a razão de você acabar na Audácia?
Dou de ombros.
— Não exatamente. Eu...
Reparo numa sombra pelo canto do olho, e viro-me para ela. Uma mulher de rosto comum está sozinha no outro canto da sala. Entre ela e nós está uma mesa com uma arma em cima.
— Você tem que matá-la — Dul fala.
— Toda vez.
— Ela não é real.
— Ela parece real. É uma sensação real.
— Se ela fosse real, ela já teria te matado.
— Isso é certo. Eu vou... fazer isso. Isso não é... não é tão ruim. Não há muito pânico nisso.
Pânico e terror não são os únicos tipos de medo. Há medos mais profundos, mais aterrorizadores. Apreensão e medo pesado, muito pesado.
Carrego a arma sem pensar sobre isso, seguro-a na minha frente, e olho para o seu rosto. Está sem expressão, como se ela soubesse o que estou prestes a fazer e aceitasse.
Ela não está usando as roupas de nenhuma facção, pode ser tanto da Abnegação, ali à espera que eu a machuque, da maneira que eles fariam. Da maneira que eles farão, se Max, Jeanine e Alexandra, todos conseguirem o que querem.
Fecho um olho, para focar o meu alvo e disparo.
Ela cai, e penso na surra que dei em Drew até que ele ficou quase inconsciente.
As mãos de Dul fecham-se ao redor do meu braço.
— Vamos embora. Continue se movendo.
Nós passamos pela mesa, e eu tremo com medo. À espera deste último obstáculo que pode ser um medo em si.
— Aqui vamos nós — eu falo.
Andamos para dentro de um círculo de luz, as sombras escondendo uma figura em que somenta a ponta dos seus sapatos é visível. Então ele começa a andar na nossa direção, Marcus, com os seus olhos pretos, as suas roupas cinza e o seu corte de cabelo curto, mostrando os contornos de seu rosto.
— Víctor... — ela sussurra.
Eu o observo. Espero que a primeira cintada venha.
— Aqui está a parte onde você descobre meu nome.
— Ele é...
Ela sabe, agora sabe. Ela saberá para sempre; não conseguirei fazê-la esquecer mesmo que quisesse.
— Christopher.
Já passou tanto tempo desde que alguém falou o meu nome daquela maneira, como se fosse um revelação e não uma ameaça.
Víctor desenrola um cinto do seu punho.
— Isso é para o seu próprio bem — ele diz, e eu quero gritar.
Ele se multiplica imediatamente, rodeando-nos, os cintos sendo arrastados pelos azulejos brancos. Eu me encolho, curvando os meus ombros, à espera, à espera. O cinto é puxado para trás e eu recuo antes que me acerte, mas isso não acontece.
Dul entre na minha frente, com o seu braço levantado, tensa da cabeça aos pés. Ela cerra os dentes quando o cinto se enrola no seu braço, e então ela puxa para livrar-se e ataca. O movimento é poderoso, estou espantado como parece forte, com a força com que o cinto bate na pele do Víctor.
Ele se lança para Dul, e eu me jogo na frente dela. Estou preparado desta vez, preparado para lutar de volta. Mas o movimento nunca vem. As luzes baixam e a paisagem do medo acabou.
— É isso? — ela diz enquanto eu vejo o lugar em que Marcus estava. — Aqueles foram os seus piores medos? Por que você só tem quatro... oh — ela olha para mim. — É por isso que eles chamam você de...
Eu tinha medo que se ela soubesse sobre Víctor, olharia para mim com pena e me faria me sentir fraco, pequeno e vazio.
Mas ela viu Víctor e olhou para ele, com raiva e sem medo. Ela me fez sentir, não fraco, mas poderoso. Forte o suficiente para encará-lo.
Puxo-a para mim pelo seu cotovelo, e beijo-lhe a bochecha, devagar, deixando a sua pele arder com a minha. Seguro-a com força, curvando-me sobre ela.
— Ei — ela suspira. — Nós superamos isso.
Ponho os meus dedos pelo seu cabelo.
— Você me fez superar isso — respondo.


 


 


 


 


                                                              + + +


 


 


 


 


Levo-a para ao pé das rochas aonde Zeke, Shauna, e eu vamos às vezes, à noite. Dul e eu nos sentamos numa pedra rasa suspensa sobre a água, e as gotas molham os meus sapatos, mas não está tão frio para me importar. Como todos os iniciados, ela está demasiado concentrada no teste de aptidão, e eu reluto em falar com ela sobre isso. Pensei que quando contasse um segredo, o resto viria logo a seguir, mas a franqueza é um hábito que se forma com o tempo, e não um interruptor que você liga quando quer, penso.
— Estas são coisas que eu não digo para as pessoas, você sabe. Nem mesmo meus amigos — observo a escuridão, a água escura e as coisas que ela carrega – pedaços de lixo, roupas velhas, garrafas a flutuar como se fossem pequenos barcos numa jornada. — Meu resultado era como esperado. Abnegação.
— Oh. Mas você escolheu Audácia de qualquer maneira?
— Por necessidade.
— Por que você teve que sair?
Olho para o lado, sem certeza de que vou conseguir explicar, porque admitir as minhas razões me faz sentir um traidor, um covarde.
— Você teve que fugir do seu pai — ela fala. — É por isso que você não quer ser um líder da Audácia? Porque se você fosse, teria que vê-lo de novo?
Suspiro.
— Isso, e eu sempre senti que não pertenço completamente à Audácia. Não da maneira que ela é agora, em todo o caso.
Não é bem a verdade. Eu não tenho certeza se este é o momento para lhe contar o que sei sobre Max, Jeanine e o ataque – egoistamente, quero manter este momento para mim mesmo, apenas um pouquinho.
— Mas você é... incrível — ela fala. Ergo minhas sobrancelhas e ela parece envergonhada. — Quero dizer, pelos padrões da Audácia. Quatro medos é inédito. Como você pode não pertencer a aqui?
Suspiro outra vez. Quanto mais tempo passa, mais estranho acho a minha paisagem de medo não estiver cheia de medos como a dos outros. Muitas coisas me deixam nervoso, ansioso, desconfortável... mas quando confrontado com essas coisas, eu consigo fingir, nunca fico paralisado. Os meus quatro medos, se não for cuidadoso, vão-me paralisar. Essa é a única diferença.
— Eu tenho uma teoria que altruísmo e coragem não são tão diferentes assim — olho para cima para a Caverna, subindo por cima de nós. Daqui consigo ver apenas uma pequena parte do céu da noite. — Durante toda a sua vida você é treinado para esquecer de si, então quando você está em perigo, isso se torna o primeiro instinto. Eu poderia pertencer à Abnegação facilmente.
— Sim, bem. Eu deixei a Abnegação, porque não era altruísta o suficiente, não importava o quanto eu tentasse.
— Isso não é inteiramente verdade — discordo, sorrindo. — Aquela garota que deixa alguém atirar facas contra ela para poupar um amigo. Aquela que bateu no meu pai com um cinto para me proteger – aquela garota altruísta, ela não é você?
Nesta luz, ela parece ser de outro mundo, os seus olhos tão pálidos quase parecem brilhar no escuro.
— Você tem prestado atenção, não tem? — ela me pergunta, como se lesse minha mente. Mas ela não está falando sobre eu estar olhando para o seu rosto.
— Eu gosto de observar as pessoas — digo maliciosamente.
— Talvez você tenha sido descartado da Franqueza, Quatro, porque você é um péssimo mentiroso.
Abaixo minha mão sobre a dela e chego mais perto.
— Ótimo — os seus ferimentos – o nariz estreito não está mais inchado do ataque, nem os seus lábios. Ela tem uma boca agradável. — Eu te observei, porque gosto de você. E não me chame de Quatro, ok? É bom ouvir o meu nome novamente.
Ela olha para mim confusa por um momento.
— Mas você é mais velho que eu... Christopher.
Soa tão bem quando ela fala. Como se não fosse nada que eu devesse ter vergonha.
— Sim, essa diferença gritante de dois anos é realmente insuperável, não?
— Eu não estou tentando ser depreciativa — ela diz teimosamente. — Eu simplesmente não entendo. Eu sou mais jovem. Eu não sou bonita. Eu...
Rio e beijo-lhe a têmpora.
— Não finja — ela fala, soando um pouco sem fôlego. — Você sabe que eu não sou. Eu não sou feia, mas certamente não sou bonita.
A palavra “bonita” e tudo o que ela representa, me parece completamente inútil neste momento.
— Certo. Você não é bonita. E então? — movo meus lábios para a sua bochecha, tentando arranjar alguma coragem. — Gosto de como você é. Você é mortalmente inteligente. É valente. E mesmo descobrindo sobre Víctor... Você não está me dando aquele olhar. Como se eu fosse um filhote de cachorro chutado ou algo assim.
— Bem, você não é — ela diz como se fosse um fato.
Os meus instintos estavam certos: ela vale a confiança. Com os meus segredos, minha vergonha, meu nome, o nome que abandonei. Com as belas verdades e com as más. Eu sei. Junto os meus lábios aos dela. Os nossos olhos encontram-se, sorrio e volto a beijá-la, desta vez com mais certeza.
Não é suficiente. Puxo-a para mais perto de mim, e beijo-a com mais força. Ela ganha vida ao por os seus braços à minha volta e inclina-se para mim, e mesmo assim ainda não é suficiente, como é possível?


 


 


 


 


                                                                + + +


 


 


 


 


Levo-a de volta ao dormitório dos transferidos, os meus sapatos ainda molhados da água do rio, e ela sorri quando passa pela porta. Faço meu caminho em direção ao meu apartamento, e não demora muito até que o alívio volte a dar lugar à inquietação. Entre ver aquele cinto à volta do braço dela, na minha paisagem do medo e dizer-lhe que altruísmo e coragem são na maioria das vezes a mesma coisa, eu tomei uma decisão. Viro na próxima esquina, não na direção do meu apartamento, mas para a escada que leva lá para fora, junto à casa de Max. Diminuo a velocidade quando passo pela porta dele, com medo que os meus passos sejam ruidosos demais para acordá-lo.
Absurdo.
O meu coração bate rápido quando alcanço o topo das escadas. Um trem está passando, o seu lado prateado captura o luar. Corro junto com os vagões e vou em direção ao setor da Abnegação.


 


 


 


 


                                                               + + +


 


 


 


 


Dul veio de Abnegação – parte do seu poder inicial vem deles, sempre que ela defende as pessoas que são mais fracas do que ela. E eu não consigo suportar pensar nos homens e mulheres que são como ela virando armas para a Audácia/Erudição. Eles podem ter mentido, e talvez eu tenha falhado com eles quando escolhi Audácia, e provavelmente estou falhando com a Audácia agora, mas não posso falhar comigo mesmo. E, não importa em que facção estiver, sei a coisa certa a fazer.
O setor da Abnegação é tão limpo, não há nada de lixo nas ruas, calçadas ou na grama. Os edifícios cinzentos são todos iguais em lugares onde pessoas altruístas recusaram a reconstruí-los quando os sem facção precisavam tanto dos materiais, mas limpo e normal. As ruas poderiam facilmente ser confundidas, mas eu não partira há tanto tempo para esquecer o caminho para a casa de Víctor.
Estranho quão rapidamente tornou-se a casa dele em vez da minha na minha mente.
Talvez eu não tenha que lhe contar; eu podia dizer a outro líder da Abnegação, mas ele é o mais influente, e há ainda uma parte dele que é meu pai, que tentou proteger porque sou Divergente. Tento me lembrar do poder que senti na minha paisagem do medo quando Dul me mostrou que ele era só um homem, não um monstro, e que eu o podia enfrentá-lo. Mas ela não está comigo aqui agora, e eu me sinto fraco, como se fosse feito de papel.
Ando em direção do caminho da casa, e as minhas pernas estão rijas, como se não tivessem articulações. Eu não bato; não quero acordar mais ninguém. Pego a chave de reserva que fica embaixo do tapete para destrancar a porta da frente.
É tarde, mas a luz ainda está acesa na cozinha.
No momento em que passo pela porta, ele já está parado onde eu o consiga ver. Por trás dele, a mesa da cozinha está coberta com papéis. Ele não está de sapatos – eles estão no tapete da sala de estar, com o seus laços desfeitos – e os seus olhos são apenas sombras, como se estivéssemos em meus pesadelos sobre ele.
— O que é que faz aqui? — ele olha para mim de cima a baixo.
Pergunto-me o que ele está olhando quando me lembro de que estou usando as roupas pretas da Audácia – as botas pesadas e o casaco – e a tatuagem em meu pescoço. Ele chega mais perto de mim, e eu reparo que estou tão alto quanto ele, e mais forte do que alguma vez fui.
Ele nunca poderia rebaixar-me agora.
— Já não mais bem-vindo nesta casa — ele diz.
— Eu... — endireito-me, e não porque ele odeia a má postura. — Eu não quero saber — respondo, e as suas sobrancelhas erguem-se como se eu o tivesse surpreendido. Talvez o tenha surpreendido mesmo.
— Vim avisar-lhe que encontrei uma coisa. Planos de ataque. Max e Jeanine vão atacar a Abnegação. Eu não sei quando, ou por que.
Ele me observa por um segundo, de uma maneira que me faz sentir como se estivesse sendo medido, e então sua expressão muda para um sorriso sarcástico.
— Max e Jeanine vão atacar? — ele repete. — Só eles os dois, armados com seringas de simulação? — ele estreita os olhos. — Max te enviou? Tornou-se o rapaz de recados dele? O que, ele quer me assustar?
Quando pensei em avisar a Abnegação, eu tinha a certeza de que a parte mais difícil seria atravessar esta porta. Nunca me ocorreu que ele não fosse acreditar em mim.
— Não seja estúpido! — Eu nunca teria dito isso a ele quando vivia nesta casa, mas dois anos da adoção dos padrões de fala intencionalmente da Audácia fizeram as palavras saírem da minha boca naturalmente. — Se está desconfiado de Max, é por uma razão, e estou dizendo que é por uma boa. Tem razão em estar desconfiado. Está em perigo – vocês todos estão.
— Você se atreve a vir até minha casa depois de trair sua facção — ele fala, a sua voz baixa — depois de trair a sua família... e ainda me insulta? — ele abana a cabeça. — Recuso-me a ser intimidado a fazer o que Max e Jeanine querem, e com certeza não por meu filho.
— Sabe o que mais? Esqueça. Eu deveria ter ido até outra pessoa.
Viro-me para a porta, e ele diz:
— Não vire as costas para mim!
As suas mãos seguram o meu braço apertado. Eu o encaro, por um segundo me sentindo tonto, como se estivesse fora do meu próprio corpo, já separado de mim mesmo à espera de sobreviver a isto.
Você consegue enfrentá-lo, eu penso, à medida que me lembro de TDul agarrando o cinto na minha paisagem do medo para atacá-lo.
Puxo o meu braço e me liberto, sou forte demais para que ele se consiga me segurar. Mas eu só consigo ter força para me afastar, e ele não se atreve a gritar atrás de mim, não quando os vizinhos poderiam ouvir. As minhas mãos tremem um pouco, por isso ponho-as nos bolsos. Eu não ouço a porta da frente se fechando atrás de mim, por isso sei que ele está me vendo partir. Não foi o triunfante retorno que imaginei.
Sinto-me culpado quando passo através da porta para a Caverna, como se olhos da Audácia estivessem em cima de mim, me julgando pelo o que acabei de fazer. Eu fui contra os líderes de Audácia, e por quê? Por um homem que odeio, que nem sequer acreditou em mim? Não parece algo pela qual vale a pena, a pena de ser chamado de traidor de facção.
Olho através do piso de vidro para o Abismo muito longe de mim, a água escura e calma, demasiado longe para refletir o luar. Há poucas horas eu estava mesmo ali, prestes a mostrar para uma garota que eu mal conhecia todos os segredos que lutei com tanta força para proteger.
Ela era digna da minha confiança, mesmo que Marcus não fosse. Ela e a sua mãe, e o resto da facção que acredita, ainda vale a pena proteger. Então é o que farei.




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Autor(a): Fer Linhares

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