Fanfics Brasil - 5 - A história do Cavaleiro da Jarreteira Rei Arthur

Fanfic: Rei Arthur | Tema: Rei Arthur, clássicos, época, magia, guerra,


Capítulo: 5 - A história do Cavaleiro da Jarreteira

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   Era a primeira época de Natal desde o casamento, e havia muita celebração na corte do rei Artur. Muitos nobres cavaleiros estavam presentes, sentados à Távola Redonda como verdadeiros irmãos, aproveitando a festa, cantando e conversando alegremente.
   Guinevere, a adorável rainha dos olhos verdes, estava sentada num estrado sob um dossel de cortinas de seda que se desdobravam às suas costas. Ricas tapeçarias de Toulouse e do Turquestão pendiam à sua volta, todas adornadas com as jóias mais preciosas. Ao lado dela estava Artur, belo e orgulhoso sem nada comer antes que todos se servissem, como era seu costume.
   Abaixo da alta mesa real estava a Távola Redonda, em torno na qual se sentavam o rei Artur e seus cavaleiros: cada um deles foi servido com doze pratos, vinho tinto e uma boa cerveja forte. As festividades continuaram pelos dias e noites seguintes.
   Na véspera do Ano Novo, quando as celebrações estavam no auge, as grandes portas subitamente se escancararam e um homem a cavalo irrompeu salão adentro. Era um homem gigantesco, decerto o homem mais alto do reino, com membros fortes e uma grande e altiva cabeça. No entanto, apesar de seu vulto, era ferozmente belo.
   Um enorme assombro se apoderou do salão diante daquela visão extravagante. Pois o estranho era completamente verde da cabeça aos pés: seu casaco e seu manto eram verdes com um forro de arminho; o capuz acima dos ombros era verde, para combinar, como verdes eram suas calças de couro. Usava um cinto verde e botas de montaria verdes muito bem modeladas. E seu poderoso cavalo era daquele mesmo verde brilhante, de modo a combinar perfeitamente com o cavaleiro.
   Porém, o mais singular de tudo era ser não só a roupa, mas o próprio homem verde: os longos cabelos soltos que lhe caíam sobre os ombros eram tão verdes quanto capim fresco, assim como as barbas espessas que lhe pendiam do queixo. Seu rosto também era de um matiz esverdeado. Ninguém naquele salão jamais tinha visto uma figura tão estranha.
   No entanto, ele não usava armadura, não portava lança nem escudo. Em uma das mãos, segurava um ramo de azevinho — desta planta que está sempre verde quando as folhas das outras caem — e, na outra, carregava um machado enorme, com uma lâmina polida, reluzente e afiada.
   Trotando até o estrado real, não gastou palavras de saudação. Num rugido do fundo da garganta, gritou:
   — Onde está o capitão desta tropa? Quero lhe dizer umas palavras.
   Passou um olhar feroz por toda a sala, à procura de um homem que ousasse fitá-lo. Mas todos os presentes estavam sentados, em silêncio, imóveis, aterrorizados com aquelas ásperas palavras.
   Finalmente, Artur se levantou e cumprimentou o visitante.
   — Companheiro, seja muito bem-vindo. Eu sou Artur, chefe desta companhia. Deixe seu cavalo e junte-se a nós, rogo-lhe. Em seguida nos contará sobre si mesmo e as razões para visitar minha corte.
   — Não tenho intenção de vadiar por aqui — disse o outro. — Saí à procura do senhor porque sua fama é conhecia em toda a cristandade. Sua corte e sua companhia são consideradas entre as melhores na cortesia e no valor. Pode ter certeza, pelo ramo de azevinho que trago comigo, de que venho em paz e busco sua amizade. Como não desejo guerra, não trago nenhuma arma. Mas, se for tão intrépido quanto todos crêem, o senhor me fará um favor antes de eu partir.
   — Gentil cavaleiro — disse Artur —, se o senhor implora por um torneio, seguramente terá o que quer.
   — Não, a luta está longe de meus pensamentos — retrucou o cavaleiro. — Afinal, tudo o que vejo aqui são meninos imberbes; a força deles é ínfima diante da minha. Não, vim até sua corte para propor um jogo, já que estamos na época do Natal, em que tantos jovens buscam se divertir. Haverá neste salão alguém com suficiente coragem para trocar um golpe por outro? Eu lhe darei meu machado afiado e, se for homem bastante para segurá-lo, poderá desferir o primeiro golpe com a força que desejar. Não resistirei. No entanto, em doze meses, ele receberá o mesmo de minha parte. E então? Quem ousa aceitar meu desafio?
   O gigante verde girou sobre a sela, revirou seus grandes olhos verdes, arqueou as sobrancelhas eriçadas, e cofiou a barba espessa, esperando que alguém se apresentasse.
   Como ninguém se mexesse, ele voltou a falar:
   — Será esta realmente a corte do rei Artur, cuja fama é celebrada em toda parte? Vejam como os senhores da Távola Redonda se acovardam às palavras de um homem indefeso?
   E riu tão alto que o rosto de Artur ficou rubro de vergonha e ele mesmo se adiantou na direção do estranho, dizendo:
   — Senhor, agora vemos que fala sério. Se ninguém mais aceitar seu desafio, dê-me seu machado e eu lhe farei esse favor.
   Artur avançou e tomou o machado das mãos do outro, agarrou o cabo e esperou que o homem desmontasse. O sujeito verde apeou e se pôs diante de Artur, era mais alto que qualquer outro daquela corte. Com olhar inflexível, inclinou a cabeça e calmamente se preparou para receber o golpe.
   — Agora, senhor — disse ele —, antes que corte minha cabeça, dê-me sua palavra de que cumprirá nosso trato.
   — Aconteça o que acontecer, eu receberei o golpe — disse Artur —, daqui a doze meses, com a arma que bem lhe aprouver. Mas, diga-me: qual o seu nome e como poderei encontrá-lo?
   O outro sorriu.
   — Fico bem contente por ser o senhor quem me desferirá a machadada. Golpeie com força e determinação, e logo em seguida saberá meu nome e o da minha casa. Então, vá ao meu encalço no prazo marcado. Agora, segure o machado com firmeza e mostre-nos como ele golpeia.
   Dizendo isso, o gigante verde se ajoelhou sobre o piso, inclinou a cabeça e, movendo seus longos cabelos verdes para a frente até encobrir o rosto, deixou à mostra a nuca, pronto para o golpe.
   Artur agarrou o machado e o levantou bem alto, o pé esquerdo adiantado para dar apoio. Então, deixou-o cair habilmente sobre a nuca verde e nua. A lâmina afiada penetrou através de carne e osso e, com precisão, cortou o pescoço ao meio, de tal modo que o fio do machado rasgou fundo o chão da sala. A cabeça saiu rolando de um lado para o outro em meio a pares de pés em torno da mesa. O sangue jorrou para fora do corpo, vermelho vivo sobre verde. No entanto, o homem não desabou, não cambaleou um centímetro. Ficou de pé sobre as pernas rígidas e, sob o olhar de todos, estendeu os braços para a frente, apanhou a cabeça e a levantou no ar. Em seguida, agarrando as rédeas de seu corcel, pisou no estribo e montou sobre o cabalo, segurando a cabeça pelos cabelos para que encarasse o rei.
   A cabeça decepada abriu as pálpebras, fitou com olhos faiscantes e escancarou a boca para que todos pudessem ouvir suas palavras:
   — Artur, não se esqueça do pacto. Procure bem até me encontrar, tal como prometeu diante destes nobres cavaleiros. Venha à Capela do Cavaleiro Verde ao amanhecer do dia de Ano Novo para receber um golpe idêntico ao que me desferiu.
   Com um súbito movimento, fez o cavalo se voltar e galopou rapidamente para fora da sala, a cabeça na mão, tirando faíscas do chão com os cascos velozes. Ninguém viu a direção que tomou, tal como ninguém tinha visto ele chegar. Mas todos que testemunharam a cena juraram que ele era de um assombro sem comparação.
   Artur mandou pendurar o machado na parede para que os homens pudessem comtemplá-lo com temor e contar a surpreendente história.
   O ano transcorreu depressa. A morna alegria da Quaresma passou; logo chegou o verão com suas brisas suaves, seguido da festa de São Miguel, que a luz se ergue pálida como a neve no céu noturno, até que, por fim, no dia de Todos os Santos, o rei Artur deu uma festa antes de iniciar sua busca.
   Após a ceia, Artur se despediu de seus cavaleiros: os intrépidos Gawain e Agravain-da-Mão-Pesada; o bispo Balduíno; Yvain, filho de Uriens; Dodinal, o Selvagem; Lionel; Lucan, o Bom; Bors e Belvedere. Cada um deles lhe deu um conselho, embora em seus corações temessem que ele não regressasse. Ao fim de tudo, beijou sua querida esposa Guinevere — seria esse o último abraço entre eles?
   — Todos vocês conhecem os termos do meu pacto — disse Artur a seus homens. — Tenho de me confiar aos céus e receber o golpe daquele homem verde. Adeus!
   Cavalgou por todo o reino sem nenhuma companhia, a não ser a de seu bom cavalo Gringoleto. Prosseguindo sem parar, longas noites adentro, ele fez seu caminho até a costa norte de Gales, recordando seus encontros de infância com o perverso Vortigerno enquanto contemplava os picos nevados de Snowdon. Continuou para além de Holy Head, diante da ilha de Anglesey. Ali, voltou-se para o leste, atravessou o Dee, e abriu seu caminho através da floresta de Wirral.
   Com seriedade, indagava a cada pessoa que encontrava: "Já ouviu falar de um cavaleiro todo verde ou de uma Capela Verde nos arredores?". Mas todos diziam o mesmo e solenemente juravam que nunca tinham tido notícia de tal cavaleiro.
   Assim, Artur cruzou o reino até a véspera de Natal, quando se viu numa floresta de enormes carvalhos, cujos ramos se entrelaçavam com sarças e espinheiros, o que lhes dificultou muito seguir adiante. De repente, percebeu um estranho castelo por entre as árvores. Agradeceu à sorte por ter algum lugar onde passar o dia de Natal. Em resposta a seu chamado, um porteiro o cumprimentou da muralha do castelo.
   — Meu bom amigo, faça a gentileza de perguntar a seu senhor se ele permitiria que eu me abrigasse aqui.
   O homem logo voltou com vários servos. Baixaram a ponte levadiça, atravessaram-na, e saudaram o exausto cavaleiro com toda polidez. Ele foi conduzido até o outro lado da ponte. Ajudaram-no a apear, e um grupo de nobres escudeiros o levou a um salão ricamente mobiliado. Chamas vívidas ardiam na lareira acesa, e Artur se aqueceu enquanto aguardava o senhor do castelo.
   Logo o castelão desceu de seus aposentos para saudar o hóspede.
   — O senhor é bem-vindo de todo o coração a minha casa — disse ele. — Tudo o que encontrar aqui está à sua disposição.
   — É grande gentileza sua — agradeceu Artur.
   Olhou para seu anfitrião e avaliou o quanto ele lhe parecia adequado para ser o mestre de um castelo tão fabuloso. Era alto e espadaúdo, com barba espessa e castanha, cabelos ruivos fogosos e um belo rosto, altivo e honesto.
   Passaram para a sala de visitas, onde o anfitrião mandou que os servos atendessem prontamente a todas as necessidades do rei Artur: ele foi levado a um pavilhão do castelo, onde os servos desafivelaram sua armadura, lhe deram um banho e o vestiram com ricas vestes sedosas; então o levaram de volta ao salão e lhe deram um assento junto à lareira, ao lado do dono do castelo. Os criados montaram uma mesa sobre cavaletes, cobriram-na com uma toalha branca e dispuseram colheres de prata e um saleiro de ouro. Em seguida, trouxeram sopas de todo tipo, junto com peixes secos: uns empanados, outros assados na brasa, alguns cozidos e outros ainda em fumegantes molhos e especiarias. Tudo isso regado a vinhos refrescantes.
   — Como hoje é véspera de Natal — disse o anfitrião —, jejuamos com peixe. Amanhã providenciaremos para que o senhor seja suntuosamente alimentado.
   Antes que a refeição começasse, Lady Mary, esposa do anfitrião, que tinha desejado conhecer o rei, veio de seus aposentos acompanhada de suas criadas. Seu porte altivo e suas maneiras graciosas ultrapassavam qualquer elogio.
   "É tão bela quanto a própria rainha Guinevere", pensou Artur.
   Sobre a cabeça ela usava um toucado alto preso com pérolas, e sua pele era tão branca e lisa quanto a primeira neve caída sobre as colinas. A adorável dama se sentou ao lado do rei Artur e mandou que fossem servidos doces como sobremesa e mais vinho para aquecer seus corações.
   Ao anoitecer, Artur foi levado a seu aposento, onde dormiu profundamente.
   Três dias foram passados em festas e celebrações natalinas, com cânticos e muita animação. O tempo todo, a senhora do castelo se sentou ao lado de Artur e cuidava para que tivesse todo o conforto. Por fim, chegou a hora da partida e Artur se despediu de seu gentil anfitrião. Mas o senhor do castelo quis saber por que ele se extraviara tão longe de sua corte na época do Natal.
   — Procuro a Capela Verde e o cavaleiro solitário que vive nela — respondeu Artur. — Combinamos de nos encontrar nessa capela numa determinada data, e só tinha três dias para localizá-la. E eu prefiro morrer a deixar de cumprir o que prometi.
   Sorrindo, o castelão disse:
   — Mas sua busca terminou. Deixe seu pensamento descansar. Fique comigo até a manhã do Ano Novo, pois a Capela Verde está a apenas duas milhas daqui. Meu cavalariço lhe mostrará o caminho de bom grado.
   O anfitrião tomou Artur pelo braço e o fez sentar-se mais uma vez junto ao fogo.
   — Por três dias — continuou ele —, o senhor ficará aqui, à vontade, e dormirá até tarde, pois precisará de toda a sua força para o futuro encontro. Enquanto estiver descansando, sairei a caçar na floresta e minha mulher cuidará do senhor.
   Reclinando-se, o rei Artur, agredecido, assim consentiu.
   — Agora, meu senhor — disse o anfitrião —, vamos fazer uma barganha: tudo o que eu conseguir na floresta lhe darei quando regressar, e o senhor me dará tudo o que obtiver em meu castelo.
   — Parece uma troca justa para mim — sorriu Artur —, pois estou certo de que terei mais a ganhar com ela!
   No alvorecer do dia seguinte, o anfitrião e seus servos partiram a cavalo pelo chão congelado, atrás de seus cães de faro aguçado. E, enquanto o bom castelão conduzia a caçada às corças num bosque de tílias, Artur permanecia deitado, estirado na cama muito depois de o pálido sol ter-se levantado. Aconchegado sob o quente cobertor na cama com dossel, ele subitamente captou o som de uma porta que se abria suavemente. Puxando um dos cantos da cortina, surpreendeu-se ao ver a adorável esposa de seu anfitrião entrar e se aproximar de seu leito. Artur ficou tão espantado que baixou a cabeça novamente e fingiu estar adormecido.
   Lady Mary caminhou furtivamente até ele, puxou a cortina para o lado e se sentou delicadamente na cama, esperando que ele acordasse. Por um longo tempo, ele fingiu dormir, imaginando o que fazer: não ficava bem um honrado cavaleiro trair a confiança de seu anfitrião. Por fim, ele se agitou e se espreguiçou, como se despertasse do sono. Arregalou os olhos de surpresa ao perceber a presença da dama.
   Ela lhe falou docemente, fitando-o com devoção, com um sorriso convidativo:
   — Bom dia, rei Artur. Seu sono é mesmo pesado, a ponto de permitir que uma criada entre furtivamente sem ser notada. Já que eu o apanhei desprevenido, o senhor tem de me conceder um favor.
   — Bom dia, prezada senhora — disse Artur com vivacidade. — Peça o que quiser de mim, pois me rendo às suas boas graças. E se permitir que seu prisioneiro se levante, vestirei rapidamente alguma coisa mais adequada à presença de uma dama.
   — Nada disso, doce senhor — disse a dama sorridente. — Não se levantará da cama; quero mantê-lo cativo por algum tempo. Todo mundo sabe de sua cortesia para com as damas, e desejo testá-la por mim mesma. Veja só, o senhor está sozinho aqui. Meu senhor e seus homens já partiram há muito. A porta está trancada e, já que o tenho em meu domínio, eu poderia satisfazer meu próprio desejo e o do senhor também.
   — De fato — disse Artur —, que prêmio maravilhoso me oferece; nenhum homem poderia recusá-lo. Infelizmente, porém, não sou digno de seus louvores, quem me dera se algum dos meus feitos pudesse me fazer aspirar ao prêmio que a senhora me promete.
   Lady Mary continuou a adulá-lo com as palavras mais doces. Mas o rei resistia.
   — A senhora está dedicada a um homem muito melhor — disse-lhe ele. — Mesmo assim, fico grandemente honrado com a gentileza que me oferece e serei para sempre seu humilde servo.
   Assim falaram até quase meio-dia, Lady Mary tecendo palavras de amor, e o nobre cavaleiro construindo sua defesa.
   Por fim, ela se levantou para sair, dizendo, com tristeza:
   — O senhor não é o homem que conheço de fama. Ele jamais se sentaria ao lado de uma dama sem cobrar dela ao menos a gentileza de um beijo.
   — Boa senhora — disse Artur —, eu lhe concedo um beijo com todo o prazer.
   Ao ouvir isso, ela o pegou em seus braços, inclinou a cabeça e o beijou demoradamente nos lábios. Em seguida, se retirou em silêncio.
   Artur não continuou deitado na cama nem mais um minuto. Levantou-se, vestiu-se e saiu à procura de companhia o mais depressa que pôde. E passou o resto do dia cercado de gente, até que a fria lua despontou no céu. Foi quando o senhor do castelo retornou.
   — O que lhe parece tudo isso, senhor? — exclamou alegremente ao ver Artur, mostrando-lhe as muitas corças e gamos que tinha abatido naquele dia.
   — Na verdade — disse Artur —, é a caça mais requintada que já vi nesta estação do ano.
   — É toda sua, meu rei — disse o gentil anfitrião —, de acordo com nosso pacto.
   — Sendo assim —disse o rei —, tenho de lhe pagar com o que ganhei dentro das paredes deste castelo.
   Dizendo isso, ele abraçou o senhor do castelo e o beijou com afeição.
   — Um presente assim eu aceito com alegria — disse o castelão. — Mas, diga-me, onde foi que o senhor conseguiu um prêmio tão bom? Estou ansioso por descobrir sua fonte.
   — Isso não constava no nosso acordo — disse Artur. — Não me pressione mais, já lhe dei tudo conforme combinamos.
   Entre gracejos e risos conversaram, saborearam uma ceia opulenta de corça assada, regada ao melhor dos vinhos tintos e, ao encerrar a noitada, concordaram em estender para o dia seguinte o mesmo trato da véspera: os dois trocariam entre si o que obtivessem durante o dia. Finalmente, deram-se boa-noite, pois já era madrugada.
   Antes que o galo cantasse no terreiro, o senhor já tinha se levantado e partido para os fundos da floresta. Enquanto isso, o rei dormia sob seus dossel de cortinas de seda. Logo que o dia amanheceu, porém, Lady Mary se insinuou quarto adentro e se sentou ao pé da cama. Desta vez, ele achou melhor cumprimentá-la logo, ao que ela retribuiu com palavras meigas, chegando-se para mais perto dele.
   — Senhor, se é realmente o rei Artur — suspirou ela —, me causa grande espanto que não tenha aprendido nada com a lição de ontem, embora eu tenha retratado tudo da forma mais sincera que me permitiu meu pobre engenho.
   — Que lição, cara senhora? — perguntou ele, alarmado. — Suplico que me perdoe se a decepcionei.
   — Minha lição de beijo — foi a resposta. — Onde encontrou favor, é dever do cavaleiro reclamar o que é seu.
   — Abandone tais pensamentos, cara dama — disse ele. — Tamanhas liberdades, receio eu, ofenderiam profundamente a senhora.
    Eu não resistiria — disse ela.
   — Eu não poderia insultá-la reclamando o que não é meu — replicou Artur. — Mas não lhe negaria um presente que se dá de graça: se quiser, pode me beijar novamente.
   Lady Mary o beijou duas vezes nos lábios, e os dois conversaram como amigos. Tão logo ela partiu, ele se levantou e saiu à cata de companhia. Passou o dia conversando com a criadagem e aguardando a volta do senhor do castelo.
   Quando, ao anoitecer, os caçadores regressaram, o amo saudou Artur com alegria e lhe mostrou o javali selvagem que tinha capturado.
   — Agora, senhor, o javali é seu, segundo nosso acordo.
   — Agradeço — disse o rei Artur — e lhe dou tudo o que ganhei aqui enquanto o senhor esteve fora.
   Dizendo isso, abraçou o pescoço do anfitrião e o beijou afetuosamente em ambas as faces.
   — Por Santo Egídio! — exclamou o dono do castelo. — O senhor é o homem mais afortunado que já conheci.
   Naquela noite, à ceia, a bela esposa do anfitrião dirigiu olhares tão furtivos a Artur que seu coração estremeceu. Mas ele não podia, em boa consciência, retribuir tais galanteios, embora se esforçasse ao máximo para agradá-la. Terminada a ceia, o anfitrião propôs que renovassem o pacto para a véspera de Ano Novo, mas Artur pediu que o desculpasse, pois tinha de partir ao amanhecer para continuar sua busca.
   O anfitrião protestou:
   — Dou-lhe minha palavra de que, na aurora do dia de Ano Novo, o senhor estará na Capela Verde. Não posso permitir que parta ainda. Fique e repouse em sua cama quente enquanto estou caçando. Cumpra nosso trato e troque seus ganhos comigo; eu já o testei duas vezes e comprovei sua sinceridade. Amanhã, será o dia do terceiro pagamento.
   Artur finalmente concordou, e eles beberam uma última taça de vinho e foram se deitar.
   Cedo no dia seguinte, o senhor do castelo partiu em busca de caça na manhã limpa e clara. Enquanto isso, o rei estava mergulhado no sono. Mas como o amor não lhe permitia nenhum repouso, Lady Mary estava desperta ao amanhecer. Seguindo seu coração, ela foi aos aposentos de Artur e, sentando-se ao lado dele, cumprimentou-o com um beijo enquanto ele, cavalheiro como sempre, a saudou com toda a polidez.
   Quando o rei a contemplou, tão perfeita de feições, tão bela, seu coração palpitou forte em seu peito. Mas, com um sorriso gentil, ele delicadamente descartou cada investida dela. Finalmente, ela disse com um suspiro magoado:
   — Como pode ser tão frio comigo?
   — Cara senhora — respondeu Artur —, eu amo somente a minha rainha Guinevere, e sempre serei fiel a ela. Não quero ofender a senhora, mas já empenhei o meu amor.
   — Então permita-me beijá-lo três vezes antes de partir — disse ela, com voz triste —, e eu o deixarei, lamentando-me como uma donzela desprezada.
   Depois que ele baixou a cabeça, ela o beijou amorosamente. Em seguida, suspirando, disse:
   — Antes de nos separarmos, por favor, deixe-me dar-lhe uma prova do meu amor.
   E ela lhe estendeu um anel de rubi que cintilou diante dos olhos do rei como o sol ardente. Mas ele não o aceitou:
   — Em nome de Deus, cara senhora, sou eu que devo adiantar-me em dar presentes. Não tenho nenhum a lhe oferecer e não receberei nenhum em troca.
   — Já que recusa meu anel — insistiu ela —, eu lhe darei minha jarreteira de seda para mantê-lo a salvo nas provações que virão.
   Tendo assim falado, ela removeu da coxa uma jarreteira de seda verde, pressionou-a contra o rei, implorando para que a recebesse. Ele bem que desejava recusá-la, mas, pensando que aquilo lhe traria boa sorte em sua provação, acabou por aceitar.
   Depois que Lady Mary se foi, o rei pulou fora da cama e se vestiu, guardando a jarreteira verde sob seu casaco. Tão logo o senhor do castelo regressou, Artur se apressou em beijá-lo três vezes com a maior sinceridade possível.
   — Pelos céus! — disse o anfitrião. — O senhor tem tido muita sorte desde que começou essa caça aos beijos. Não terá conquistado algo mais?
   — Creio que não — bem depressa respondeu o rei, corando. Não entregou ao anfitrião a jarreteira escondida, para o bem de Lady Mary.
   — Bem — disse o outro —, meu presente é pobre: cacei o dia todo e não consegui nada além desse malcheiroso rabo de raposa. Belo pagamento por três beijos!
   Com muitas risadas, ambos jantaram, beberam e se divertiram como homens honestos até que ficou muito tarde. Então, foram se deitar muito contentes.
   A noite passou, o dia de Ano Novo se ergueu, a luz do sol dispersou a escuridão e nuvens cinzentas despejaram sua neve. Embora mantivesse os olhos fechados, o rei Artur dormiu pouco, contando cada cocoricar do galo e escutando os gemidos do vento entre os teixos. Antes da aurora, ele se levantou, se vestiu com a armadura, colocando seu presente de amor, a jarreteira da dama, em torno da coxa.
   Enquanto todos no castelo dormiam, ele seguiu pelo pátio. Encontrou seu bom corcel Gringoleto à espera, com um cavalariço ávido por mostrar o caminho. Artur montou em seu cavalo, bateu em cada flanco com as esporas e saiu do castelo atravessando a ponte levadiça.
   Cavalgaram através de uma floresta de galhos nus com escarpas íngremes de cada lado. Em seguida, escalaram altas colinas cobertas de neve congelada e galoparam por matagais envoltos na névoa, até que, bem quando o sol despontava, alcançaram o topo de um morro acima de um vale.
   — O senhor já está bem perto da Capela Verde, agora — disse o cavalariço. — Siga a trilha estreita abaixo daquela escarpa até atingir o vale. Vire então à esquerda e logo a verá. Adeus, Majestade, Deus o abençoe.
   Artur seguiu caminho abaixo pela trilha e logo se viu cavalgando por um vale amplo e desolado. Não havia vivalma nem habitação à vista, a não ser, a distância, o que parecia um outeiro coberto de grama próximo de um riacho. Galopou até lá e, desmontando, descobriu que o pequeno morro verde era oco como uma caverna.
   — Será isso a Capela Verde? — perguntou-se.
   Baixando a viseira e empunhando a lança, ele avançou rumo à caverna. De repente, ouviu chamar seu nome por trás de um rochedo na margem distante.
   — Artur, pare agora e receba o que merece.
   À frente do rochedo apareceu o Cavaleiro Verde, segurando um machado com uma larga lâmina curva. Quando se viram frente a frente, o gigante verde falou:
   — Ah, meu amigo, parece que sua palavra foi cumprida. O senhor me procurou com lealdade para acertar o contrato que tínhamos combinado. Um ano atrás o senhor me desferiu um golpe, agora tem de me dar a oportunidade de fazer o mesmo. Tire o elmo, baixe a cabeça e não vacile.
   — Não vacilarei — disse Artur. — Golpeie forte, não tenho medo.
   Dizendo isso, ele se ajoelhou e destemidamente ofereceu a nuca à lâmina. O homem verde reuniu suas forças, ergueu o pesado machado acima de sua cabeça e, com rosto implacável, se preparou para desferir um golpe poderoso. Bem no momento em que o machado descia, Artur olhou para cima e seus ombros tremeram levemente.
   Imediatamente o enorme homem interrompeu o gesto, dizendo com raiva:
   — É isso o que chama de coragem? Eu não tremi quando me golpeou. No entanto, o senhor estremece ao mero sibilar do meu machado. Que grande covarde!
   — Golpeie de novo — disse Artur. — Não vou vacilar desta vez. Vamos, homem, acabe logo com isso, pelo amor de Deus.
   — Agora o senhor recuperou seus nervos — disse o Cavaleiro Verde —, já posso golpear para valer a nuca do rei Artur. Mantenha seu pescoço à vista, pois agora vou desferir o golpe final.
   Artur disse, com rispidez:
   — Já me cansei de suas ameaças. Termine seu trabalho se for homem o bastante.
   Com isso, o homem verde trouxe o machado para baixo até a nuca do rei. No entanto, o golpe simplesmente feriu a pele, liberando um fiapo de sangue vermelho.
   Quando sentiu o ferimento e viu o sangue na neve, Artur se sobressaltou, puxando a espada e exclamou:
   — Eu recebi o golpe, conforme combinamos; se me golpear de novo, eu me defenderei, pois o senhor já teve seu pagamento.
   O gigante verde baixou o machado.
   — Ousado camarada — disse ele, com delicadeza —, não se exalte. Eu lhe devia um golpe e o senhor o recebeu. O primeiro golpe e o segundo foram por promessas lealmente cumpridas: pelos beijos que minha mulher lhe deu. E cada um deles o senhor me devolveu. Mas o senhor falhou na terceira investida e por isso mereceu o corte. Pois pertence a mim essa jarreteira em sua coxa. Conheço bem o número de beijos e sua nobre conduta também, foi meu esquema para testá-lo. Sustento que o senhor é o homem mais virtuoso que caminha sobre este chão. No entanto, foi desleal ao esconder a jarreteira. Eu o perdôo, já que fez isso por respeito à minha mulher.
   — Estou envergonhado, senhor — disse Artur, estendendo-lhe a jarreteira verde. — Por favor, aceite este sinal de minha vergonha.
   O outro riu.
   — O senhor se ofereceu à minha lâmina e está perdoado. Guarde a jarreteira para que tenha sempre na lembrança o nosso pacto. Agora, volte comigo e faça as pazes com minha mulher, vamos terminar nossas festas com grande alegria.
   Mas Artur recusou o convite.
   — Já me demorei mais do que devia — disse ele. — Por favor, mande meus respeitos a Lady Mary. Preciso agora voltar à minha corte. No entanto, aceito alegremente a jarreteira verde. Ela sempre me fará lembrar das fraquezas da carne.
   Os dois homens se abraçaram e se separaram. No prazo devido, Artur retornou a salvo a Camelote e todos muito se alegraram por revê-lo. Solenemente, ele contou o que tinha ocorrido na Capela do Cavaleiro Verde.
   Os cavaleiros decidiram que todos os senhores e as damas pertencentes à corte do rei Artur usariam uma faixa verde em homenagem ao rei. Seria uma prova de sua lealdade. E quando um cavaleiro se destacava na fidalguia, era nomeado Cavaleiro da Jarreteira — o ordem mais elevada do reino.
   Sobre a faixa verde que usavam vinham inscritas estas palavras:
   HONNI SOIT QUI MAL Y PENSE ("Execrado seja quem nisto vê malícia").


 



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Autor(a): biiviegas

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  • grandeshistorias Postado em 24/07/2017 - 18:03:57

    Lido o epílogo. Linda história e um belo final, apesar de um tanto triste! Parabéns! Gostei muito dessa história e texto tão bonitos. Que venham mais histórias com textos tão bons assim, sejam eles originais ou adaptações. Abraço e boa sorte! Deus abençoe!

  • grandeshistorias Postado em 24/07/2017 - 17:48:29

    Muito triste o capítulo 8, mas também com mais um admirável desfecho. Os três provaram sua honra até o fim. Muito digno!

  • grandeshistorias Postado em 24/07/2017 - 17:03:56

    Lancelote provou realmente ser um honrado cavaleiro. Outro desfecho surpreendente de mais um episódio.

  • grandeshistorias Postado em 24/07/2017 - 14:50:02

    Essa feiticeira Morgana é muito cruel mesmo. Lamentei a morte de sir Accolon, fruto dessa vingança de Morgana de seu meio-irmão Artur. Artur é um cavaleiro muito nobre e piedoso, quase morre dessa vez pelas mãos da irmã através desse manto enfeitiçado. Agora que Artur viu de fato quem realmente é Morgana, resta saber quais serão as próximas armações de dela e como Artur fará para detê-la. A história está muito boa.

  • grandeshistorias Postado em 24/07/2017 - 14:48:51

    Foi incrível a aventura de Artur naquele reino desconhecido e na Capela Verde, fiquei muito surpreso com o desfecho desse episódio.

  • grandeshistorias Postado em 20/07/2017 - 15:51:27

    Sacanagem Merlim não alertar o rei Artur da futura traição de Guinevere que preveu em sua bola de cristal, cuja traição vai destruir o reinado de Artur... Vamos ver o que acontece agora.

  • grandeshistorias Postado em 15/07/2017 - 14:50:16

    Li o capítulo 1... Curioso para saber o q vai ser de Arthur agora... Garoto inteligente demais, e sábio. Os sábios de Vortigerno são mesmo muito ignorantes, era óbvio q tendo uma fundação como aquela, nunca iriam erguer um palácio ali. Mas esperar o q também daquela época de tão escassas informações e até mesmo nula tecnologia. Gostei de ver Vortigerno fugindo, e espero q não volte tramando outra. Adaptação muito boa e texto maravilhoso.

  • grandeshistorias Postado em 06/02/2017 - 21:27:35

    Adicionei aos meus favoritos. Me interessou muito a história! Já li o prólogo e vou continuar lendo os capítulos. Me lembro na sétima série a professora lendo para nós o livro Rei Arthur e a Távola Redonda. Ela o leu até o final ao longo de muitas aulas. Isso foi na época em que era exibida na tv a novela Pé na Jaca, do qual o enredo e os nomes dos personagens tinham uma livre inspiração na história do Rei Arthur. Boas lembranças!

  • fernandocordeiro93 Postado em 27/12/2016 - 13:10:13

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