Fanfics Brasil - Capítulo 1 Mentira Perfeita - Adaptada

Fanfic: Mentira Perfeita - Adaptada | Tema: Vondy


Capítulo: Capítulo 1

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Dulce


     Algumas pessoas passam pela vida em um cor-de-rosa infinito, cheio de boas lembranças e histórias engraçadas que serão sucesso nas festas de fim de ano.


     Eu não era uma dessas pessoas.


     Anda, anda, anda, caramba!, quiquei no banco do táxi, observando o aglomerado de carros que atravancava a avenida. Havia sirenes mais à frente, e uma multidão de curiosos impedia que o trânsito fluísse. Eu não podia esperar. Fazia mais de uma hora que Christian tinha me ligado para avisar que tia Maria havia sido internada. O tom de voz de meu amigo, que costuma falar pelos cotovelos, estava muito sério. Ele não deu nenhum detalhe, e isso me fez imaginar a gravidade da situação.


— Tudo bem, eu fico aqui mesmo — falei para o motorista. Dei uma olhada nos números do taxímetro e abri a bolsa para pegar o dinheiro.


— Tem certeza que não quer esperar? Talvez o trânsito melhore ali na frente.


— Já estou bem perto. Consigo chegar mais rápido a pé do que de carro.


Obrigada. — Entreguei as notas a ele e, sem esperar pelo troco, abri a porta para sair.


     Atravessei a rua, me espremendo entre os veículos quase inertes. Olhei para o relógio ao pisar na calçada. Uma hora e sete minutos desde que Christian ligara e eu saíra correndo da L&L Cosméticos. Nem tive tempo de avisar Maite. Minha amiga e colega de empresa certamente ficaria preocupada quando eu não aparecesse no refeitório no horário do almoço, mas eu não pensei direito quando ouvi a voz profunda de Christian dizendo que estava levando tia Maria para o hospital e que eu deveria correr para lá.


     Só juntei minhas coisas e entrei no primeiro táxi que vi, implorando mentalmente que minha tia aguentasse mais essa.


     Porque ela tinha que aguentar.


     Tirei os óculos e esfreguei os olhos para enxugar as lágrimas que ameaçavam transbordar, engolindo o nó que me fechava a garganta antes de começar a correr. Cinco quarteirões depois, eu estava me dirigindo à recepção do hospital, com seus tons frios de madeira clara e suas paredes brancas.             Após intermináveis dez minutos, fui levada por um dos enfermeiros ao andar onde minha tia estava internada. Enchi o cara de perguntas no caminho, mas ele não sabia muito. Ou fingiu não saber.


     Avistei Christian andando de um lado para o outro. Mesmo sendo tão alto, ele me pareceu menor que de costume.


— Christian! — chamei, me adiantando até ele.


— Dulce. Graças a Deus! — Ele inspirou fundo e passou os braços ao redor dos meus ombros, me apertando tanto que acabei gemendo.


— Como é que ela tá? O que aconteceu? — Eu me afastei para ver seu rosto


bonito. Os olhos cinzentos estavam vidrados, deixando a pele amendoada meio sem cor.


  Ai, não!


— Ela começou a sentir dores e não conseguia respirar direito. Ficou muito


pálida. Enfiei ela no táxi e trouxe para cá. Achei que era o certo a fazer.


— E ela não protestou? — Porque tia Maria nunca ia para o hospital sem


uma bela discussão.


     Ele negou com a cabeça.


     Ah, meu Deus!


— Como é que ela tá, Christian? — repeti, sentindo um tremor subir pelos


tornozelos.


— Eu não sei, Dulce. Só avisaram que o dr. Miguel vai falar com você daqui a


pouco.


     Sempre que o dr. Miguel falava comigo, as notícias eram as piores possíveis. E nos últimos tempos nós tínhamos conversado um bocado de vezes.


     O problema era no coração de tia Maria. A insuficiência progredira com


muita velocidade, e agora ela precisava de um transplante. E, diferentemente do que ocorre nas novelas e nos filmes, um coração novo não saltou na nossa frente assim que o diagnóstico foi dado. Nenhum órgão compatível apareceu nos últimos seis meses. Eu tentava manter a fé, a esperança de que a qualquer


momento um doador surgiria. Porém, conforme as semanas iam passando sem


nenhuma novidade — exceto o fato de a saúde de minha tia definhar a cada dia—, acreditar em um milagre se tornou quase impossível.


     Christian me levou para dentro do consultório onde o enfermeiro havia pedido para aguardarmos. Nem tive tempo de me acomodar na cadeira de aparência desconfortável antes de a porta se abrir e o homem de cabelo prateado entrar. A baixa estatura e o corpo mirrado não faziam justiça à sua competência.


— Como é que ela tá, doutor? — Eu me aproximei do dr. Miguel, as mãos unidas em súplica.


     Ele me olhou com gravidade.


     Merda.


— Os remédios surtiram pouco efeito nas últimas semanas, Dulce.


— Não!


— Calma, florzinha. — Christian estava logo atrás de mim, as mãos grandes em meus ombros, me confortando. Ou me mantendo de pé. Eu não tinha certeza.


— Deve haver algo que o senhor possa fazer — sussurrei para o médico.


— Estou tentando tudo o que posso, tudo o que ela suporta, mas, Dulce, a sua tia precisa de um transplante imediatamente. Ela não vai aguentar muito mais.


Aliás, a Maria está consciente agora e quer ver você. Está preocupada.


     Quase dei risada. Ela estava passando mal e seus pensamentos eram todos para mim. Bem típico de tia Maria. Sempre foi assim, desde muito antes de a minha guarda ter sido dada a ela, não é?


— Antes de ir vê-la... — dr. Miguel acrescentou. — Procure não deixá-la agitada. E não permita que a Maria a veja sofrer desse jeito. Pode piorar o quadro dela, e o tempo agora é o nosso pior inimigo.


— Posso acompanhar a Dulce, doutor? — Christian perguntou. — Acho que ela não vai conseguir entrar naquela sala sozinha. Está a ponto de cair.


— Claro.


     Um soluço ameaçou me tirar dos eixos, e eu pedi licença para usar o banheiro. Mal consegui fechar a porta antes de perder o controle.


     Tia Maria não podia estar indo embora. A mulher que me criara e educara não podia partir ainda. Precisávamos de mais tempo.


     Tempo. Não existe nada mais precioso que isso.


     E eu estava desperdiçando, me dei conta, perdendo o controle daquela


maneira. Endireitei os ombros, marchei até o lavatório e molhei o rosto, tentando me refazer. Apoiei as mãos no mármore frio, obrigando minhas pernas a manterem sua função de me sustentar. No espelho, vi os olhos assustados da menina magricela de seis anos, que esperava o juiz decidir se a mandaria para uma família que também a rejeitaria ou se permitiria que ela vivesse com tia Maria. Naquele dia, a menina também fez o que pôde para fingir que estava tudo bem.


     Agarrei as bordas da pia e encarei meu reflexo. Eu não tinha mais seis anos. Meu cabelo castanho-claro ainda era muito liso, mas agora terminava no meio das costas, e meus olhos já não pareciam grandes demais para o meu rosto de vinte e cinco anos. Meu corpo mudara, ganhara curvas — modestas, admito —, e eu era uma cabeça mais alta que tia Maria. Não que fosse grande coisa, já que ela tinha apenas um metro e cinquenta e três, contando o topete.    Havia no espelho muito pouco que remetesse àquela menina assustada, exceto pelo medo em meus olhos. A mesma expressão daquela tarde, quando eu esperara pelo fim do mundo, que nunca veio. Mas ameaçava vir agora, como um tsunami, impossível de ser contido.


     Para com isso! Ainda existe uma chance! Um coração vai aparecer a qualquer instante!, repeti sem parar, até obter o controle de minhas emoções de novo.


     Endireitando os ombros, saí do banheiro e acompanhei o médico até a UTI.


Christian me amparou sempre que foi preciso. Uma coisa é fingir ter coragem.


Outra, completamente diferente, é convencer suas pernas dessa coragem.


     Depois de vestirmos as roupas que o dr. Miguel nos indicou, entramos na sala gelada, que cheirava a pinho, éter e dor.


     Na cama alta, plugada a muitos fios, tia Maria parecia pálida e minúscula, tão diferente da mulher forte e dona de si que sempre fora. Seu peito subia e descia mais rápido que o normal. Ela moveu a cabeça assim que ouviu a porta se abrir e sorriu por baixo da máscara de oxigênio.


— Christian. Dul, meu amorzinho. — Ouvi sua voz cansada enquanto me


aproximava.


 


— Tia Maria... — foi tudo o que eu consegui dizer, engolindo em seco e


tentando calar os gritos desesperados em minha cabeça. Christian não parava de piscar.


— Seja sincera, Dulcinha... — ela começou, e eu temi o fim daquela frase.


Eu devia ter previsto. Quando é que tia Maria agiu como uma pessoa


normal?


— ... minha raiz tá aparecendo muito?


Pisquei e deixei escapar uma risada histérica. Acariciei seu cabelo curto e


encaracolado pela permanente, onde uma fina linha branca se fazia visível rente


ao couro cabeludo, contrastando com os fios tingidos de acaju.


— A senhora está linda como sempre, tia.


— Uma deusa glamorosa! — Christian ajudou.


Ela revirou os olhos.


— Não sejam mentirosos. É impossível estar glamorosa com esses malditos


respiradores. Mas está tudo bem. Meus dias de beleza terminaram. Aliás, meus


dias terminaram. Ponto.


Meu rosto deve ter revelado o horror que senti ao ouvir a última parte, porque


ela me olhou com ar aborrecido.


— Não seja boba, Dul. Você sabe que não estou sendo literal. A minha vida


acabou no momento em que aquele déspota ali na porta me proibiu de comer


costelinha de porco. Como ele espera que eu sobreviva a isso?


— É, não dá mesmo, dona Maria. — Christian riu, encarando o dr. Miguel, que


também achou graça.


     A relação de tia Maria com as costelinhas ainda era um mistério para mim. Quando o médico sugeriu que ela substituísse a carne de porco por brócolis e aspargos, tive que segurá-la. Por pouco ela não pulou no pescoço do seu cardiologista para lhe arrancar os olhos, ou algo assim.


— Bem — dr. Miguel disse, abrindo a porta —, se você está pretendendo falar


mal do médico, é melhor ele ser educado e se retirar. Volto em meia hora.


— Covarde! — resmungou minha tia depois que ele saiu. — Não aguenta um


pouco da verdade. Aposto que come costelinha todo dia.


— O coração dele não está com problemas — eu me ouvi dizendo.


— Não importa. E deve ter sido isso que fez meu coração se comportar mal


hoje. Ele não sabe viver sem costelinha. — Ela soltou um suspiro desconfortável


e cravou seus olhos castanhos, exatamente do mesmo tom dos meus, em mim.


— Mas eu não posso reclamar de verdade, não é, Dul? Tive uma vida boa. Vivi cada aventura que pude. Você, meu amor, ainda nem começou.


— Tia, não é o melhor momento para a senhora me dar uma bronca.


— Não é uma bronca. Estou preocupada de verdade. Sabe, um dia eu vou ter que partir e você vai ficar sozinha. — Ela virou o rosto, olhando para o equipamento repleto de luzes acima de sua cabeça.


— Então esta conversa é desnecessária, já que a senhora não vai a lugar nenhum tão cedo.


Por favor! — Quer que eu ligue a TV ou pegue alguma coisa?


— Não, meu docinho. — Ela balançou a cabeça uma vez, a agitação se avolumando em seu semblante.           — E não mude de assunto. Sabe o que mais me entristece quando eu penso na morte? Não estar aqui para saber como será a sua vida, quem cuidará de você.


— Ora... Eu! — Christian tocou a mão dela.


— Eu sou adulta, tia. Posso cuidar de mim mesma. Mas a senhora não devia pensar nessas coisas, porque...


— Eu só queria que você demonstrasse por alguém de carne e osso a mesma


paixão que tem pelos seus programas de computador. — Ela esfregou o peito.


     Ah, droga.


     Eu me virei, pronta para disparar porta afora, quando Christian interveio:


— Mas isso mudou, dona Maria! Dulce, você não contou para a sua tia que está namorando?


— Ela está? — Tia Maria o encarou, ao mesmo tempo em que eu me


virava e o fuzilava com os olhos.


     O quê?, movi os lábios. O que aquele maluco estava dizendo? Não era hora


para brincadeiras!


     Christian abriu um sorriso cheio de dentes que, em contraste com sua pele escura, ficaram ainda mais brancos. Seus olhos se estreitaram minimamente.


— Eu acho que você não devia guardar segredos da sua tia. O que tem de mais ela saber que você está loucamente apaixonada? — E me lançou um olhar que dizia: Fica quieta e entra na minha.


— Você tem namorado, Dul? — minha tia quis saber.


— Tem sim! Vai, Dulce. — Christian estendeu o braço e beliscou minha cintura sem que ela visse.                   — Conta pra sua tia como o seu namorado é carinhoso e preocupado. Ele está louco por ela, dona Maria.


— Preocupado com ela, Christian?


O que você está fazendo?, movi os lábios novamente.


— O que o médico mandou. Acalmando a sua tia — ele sibilou, abaixando as


sobrancelhas grossas em direção à cama. — Ah, muito preocupado, dona Maria. Nunca vi um homem tão apaixonado!


— Isso é verdade, Dulce?


Eu me virei para tia Maria, pronta para responder que Christian tinha batido a


cabeça e não estava falando coisa com coisa. Porém, quando meu olhar


encontrou o dela, algo me fez hesitar. Uma faísca de vida cintilava em seu rosto.


Foi aí que eu entendi o que Christian estava fazendo. Nada agradaria mais tia


Maria do que me ver com um namorado.


Exceto, talvez, umas costelinhas de porco.


— Isso é verdade, Dul? — ela repetiu, a mão sobre seu coração se aquietando.


— Ééééééééé... — concordei devagar. Eu devia ter me sentido mal, mas não.


Uma mentirinha de nada que tirara aquele véu sombrio e agourento do seu rosto não podia ser ruim. Talvez até ganhássemos mais tempo! — É verdade, tia.


     Ela arqueou a sobrancelha, escrutinando meu rosto. Fiz o melhor que pude


para não coçar o nariz. Não sei bem por quê: toda vez que eu minto, meu nariz


comicha como se eu tivesse esfregado pimenta nele.


— Por que não me contou antes? — ela quis saber, um tanto magoada.


— Porque eu... não queria...


— Que a senhora pensasse que ela não estava preocupada com o seu estado de saúde — Christian improvisou.


— Dulce! — Ela fez cara feia. — Eu jamais pensaria isso! Quem é ele? Eu conheço? É alguém do seu trabalho?


— Não, mas ele está louco para conhecer a senhora. — Agora que eu havia


começado, não tinha como voltar atrás. — Na verdade, ele já te ama.


— Ah, meu Deus! Eu quero conhecê-lo! — Seu olhar reluziu. Era impressão minha ou suas bochechas pareciam mais coradas?


Estava funcionando!


— Eu o vi pela primeira vez no ponto de ônibus. — Tá bem. Eu podia fazer aquilo. Podia inventar uma porcaria de história de amor cheia daquelas coisas melosas de que ela tanto gostava. — Ele estava sentado, e eu acertei a cara dele sem querer com a mochila.


— Seu computador estava dentro da mochila? — Um pequeno sorriso apareceu naqueles lábios sem cor.


— Estava — assenti. Meu amigo empurrou uma cadeira sob meus joelhos. — Obrigada, Christian.


— Disponha. — Ele contornou a cama e pegou a mão de tia Maria, acariciando-a.


— E aí? O que aconteceu? — ela me incentivou.


Pois é. O quê? Nunca fui muito boa em inventar histórias.


Christian, em compensação...


— Ela pediu desculpas — meu amigo se entusiasmou — e ele fingiu que não


estava doendo, mesmo com metade do rosto quase roxa pela pancada. Aí ela


perguntou se podia fazer alguma coisa para que ele a perdoasse. Ele sorriu e disse que perdoaria se ela aceitasse tomar um café. “Mas e se eu te acertar de novo sem querer com esta mochila descontrolada?”, ela perguntou. E ele respondeu com um sorriso daqueles bem brilhantes: “Estou contando com isso. Assim você teria que se desculpar de novo, e eu teria outra chance de te ver”.


— Ownnnn... — minha tia suspirou, o olhar vidrado em Christian. — Fala mais,


querido. Como ele é? Você o conhece?


— Ainda não. A Dulce queria primeiro apresentá-lo para a senhora. Diz para a


sua tia como ele é, Dulce.


— Ele é... o cara mais lindo que eu já vi. Gosta das mesmas coisas que eu... —


Fui buscando na memória todas as características dos heróis dos livros e filmes que tia Maria mais amava.


Por fim, acabei descrevendo um homem tão


perfeito que foi um milagre ela ter acreditado que ele realmente existia.


— E ele mencionou alguma vez a palavra que começa com C? — Tia Maria umedeceu os lábios.


— Hã... É... Mencionou, sim. — Uma mentira a mais, uma a menos... que diferença faria?


— Acho que ele pretende pedir a minha mão para a senhora, como manda a tradição, assim que sua saúde melhorar.


— Ah, Dul! Que menino encantador! Ele não devia ter esperado nada. Quem se importa com uma velha doente?


— Eu!


Ela riu de leve, mas seu rosto estava contorcido, como se sentisse dor.


— Já posso até ver você entrando na igreja com um dos meus vestidos. Um


quarteto de cordas no canto, um corredor de flores brancas. E aquela tiara da


vovó Frida. Você tem que usar aquela tiara, Dulce! Vai ser a noiva mais linda de que já se teve notícia.


— Vamos ver — desconversei. — A senhora trouxe a bolsinha de remédios?


— Devo ter trazido. Mas isto aqui é um hospital. Remédio é o que não falta.


Como foi o seu dia, meu amor?


— Bom. — Entrei no automático, contando a ela sobre o pouco que havia acontecido naquela manhã enquanto meu cérebro girava a toda a velocidade, passando por estatísticas e números de compatibilidade, coisas tão familiares para mim. De modo geral, havia 13,3 doadores de órgãos para cada milhão de habitantes. Desses, quarenta e cinco por cento não chegavam realmente a fazer a doação, já que a família se negava a autorizar na hora H. Restavam, então, apenas 8,6 doadores para cada milhão de habitantes. Se você levasse em conta a compatibilidade desses 8,6 com tia Maria, teríamos algo em torno de...


      Ela gemeu baixinho, me arrancando de meus pensamentos. Seu rosto estava contorcido em uma careta de agonia, mas ela não emitiu som algum.


      Eu a conhecia bem o suficiente para saber que a dor estava ficando


insuportável.


      Apertei o botão na cabeceira, chamando ajuda.


— Dulce, querida — ela disse com dificuldade —, por que você e o Christian não vão buscar um pouco de água pra mim?


— Tem água aqui. — Peguei a jarra sobre a mesa alta de metal.


— Essa não. Tá aí desde que o hospital foi construído. Pegue um pouco de água fresca.


      Eu a encarei por alguns segundos. O que ela estava fazendo?


— Tia...


— Vá pegar a água, menina!


A porta se abriu e uma enfermeira entrou. Christian se abaixou e beijou o dorso


da mão de minha tia antes de se afastar da cama.


— É melhor deixarmos a dona Maria descansar — ele me pediu em um


sussurro.


— Mas...


— Vá pegar minha água, Dul! Por favor! Vou estar no mesmo lugar quando


você voltar.


Hesitante, deixei a enfermeira mexer nos tubos ligados a ela. Eu me inclinei e


beijei sua testa demoradamente.


— Volto em dois minutos — sussurrei. — Te amo.


— Te amo, minha Dulce. Mais do que você jamais poderia sonhar. Mas vá


depressa. Estou com muita sede. Vá!


      Eu me demorei um minuto a mais. Não queria me afastar dela. O dr. Miguel


podia entrar a qualquer momento dizendo que o coração novo apareceu.


Christian deve ter percebido minha hesitação, pois me levou para fora com


firmeza, ainda que fosse gentil. Parei quando alcancei a porta, olhando por sobre o ombro para a única mãe que já tive.


      Tão pequena sobre aquela cama. Tão frágil e sem cor. Onde estava aquele


bendito coração novo?


      Meu amigo me puxou com carinho para fora dali.


— Onde fica o bebedouro? — ele perguntou, segurando a jarra.


— No fim do corredor — falei no automático. Havia algo errado. Comecei a


andar, mas um pensamento sinistro me fez derrapar no piso. — Ah, meu Deus!


— O que foi? — Ele me amparou quando minhas pernas bambearam.


— Christian, ela tá fazendo a coisa do elefante!


      Ele entendeu imediatamente.


      Tia Maria era costureira e trabalhara a vida inteira em um ateliê de noivas.


Teve que parar quando a insuficiência cardíaca apareceu, e desde então passava muito tempo em frente à TV vendo filmes antigos ou programas do Animal Planet. Um deles a fascinou tanto que ela fez Christian e eu assistirmos à reprise com ela. Um elefante preso no zoológico de Michigan adoecera e percebera que não iria resistir. O animal entrou em parafuso, tentando escapar do cativeiro e ir para longe da sua fêmea.


      Segundo o documentário, os elefantes sempre sabem quando é hora de partir e preferem morrer longe dos parceiros e da manada, para não provocar sofrimento.


      Um apito agudo ressoou pelo corredor . Um enfermeiro passou zunindo por


mim e entrou no quarto de tia Maria. Outro deles veio em seguida. E depois o dr. Miguel.


      Tentei voltar, entrar lá, mas o médico me impediu.


— É melhor esperar aqui fora, Dulce — ele disse antes de fechar a porta.


No entanto, ele não foi rápido o bastante. Pela fresta, pude ver um dos


enfermeiros debruçado sobre a cama, aplicando uma ressuscitação


cardiopulmonar em minha tia.


— Dulce... — Christian também se viu sem palavras, correndo a mão pelo cabelo curto. — Cacete, Dulce! Eu sinto muito! Eu sinto muito, florzinha. — E me abraçou com força.


      Tia Maria teria se levantado e ido para bem longe se pudesse. Como não podia, ela me mandou embora.


      Ela estava fazendo a coisa do elefante do jeito que podia.



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Autor(a): secretvondy

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