Eu gostava de morar com Sarah e Mike. Eles me davam muito mais liberdade do que os pais da maioria dos outros adolescentes e acho que existia um respeito saudável entre nós – pelo menos tanto quanto os adultos podem respeitar uma garota de 17 anos. Eu ajudava a cuidar das crianças e não me metia em confusão. Não era o mesmo que viver com meus pais, mas ainda éramos uma espécie de família.
Estacionei o carro com cuidado na garagem, entrei em casa e encontrei Sarah atacando uma tigela com uma colher de pau. Deixei a bolsa em uma cadeira e fui pegar um copo de água.
— Preparando biscoitos vegan outra vez? Qual é a ocasião especial? — perguntei.
Sarah enfiava a colher de pau na massa espessa sem parar, como se a colher fosse um furador de gelo.
— É a vez de Sammy levar o lanche para os amiguinhos.
Reprimi uma risada tossindo.
Ela me encarou, estreitando os olhos.
—Dulce Maria, só porque sua mãe fazia o melhor cookie do mundo não significa que eu não possa fazer um lanche decente.
— Não é da sua habilidade que eu duvido, é dos seus ingredientes — expliquei, pegando um jarro de água. — Leite de soja, linhaça, proteína em pó e agave. Fico surpresa de você não colocar papel reciclado nessas coisas. Cadê o chocolate?
— Às vezes eu uso alfarroba.
— Alfarroba não é chocolate. Tem gosto de giz marrom. Se é para fazer biscoitos, você devia tentar...
— Já sei. Já sei. Biscoito de abóbora com gotas de chocolate ou biscoito de chocolate com manteiga de amendoim. Essas coisas fazem muito mal, Kelsey — disse ela com um suspiro.
— Mas são tão gostosas.
Observei Sarah lamber um dedo e continuei:
— Por falar nisso, consegui um emprego. Vou cuidar da limpeza e dar comida aos animais em um circo. Fica no parque de exposições.
— Que bom! Parece que vai ser uma ótima experiência — animou-se Sarah. — Que tipo de animais vai alimentar?
— Cães, principalmente. E acho que tem um tigre. Mas não vou precisar fazer nada perigoso. Tenho certeza de que eles contratam profissionais para isso. O problema é que o turno começa supercedo, por isso dormirei lá pelas próximas duas semanas.
— Hum — Sarah fez uma pausa. — Bem, se precisar de nós, é só ligar. Você se importa de tirar a couve-de-bruxelas a la “papel reciclado” do forno?
Pousei a travessa fedorenta no centro da mesa enquanto ela colocava seu tabuleiro de biscoitos no forno e chamava as crianças para o jantar.
Mike entrou, largou a pasta e beijou a mulher no rosto.
— Que cheiro é esse? — perguntou ele, desconfiado.
— Couve-de-bruxelas — respondi.
— E fiz biscoitos para os amiguinhos de Sammy — anunciou Sarah, orgulhosa. — Vou separar o melhor para você.
Mike me dirigiu um olhar de cumplicidade que Sarah não deixou passar. Ela o acertou na coxa com o pano de prato.
— Se você e Dulce ficarem se comportando desse jeito, vão arrumar a cozinha.
— Ah, querida. Não fique zangada.
Ele tornou a beijar Sarah e a abraçou, fazendo o possível para se livrar da tarefa.
Achei que essa fosse minha deixa para sair. Enquanto eu escapava sorrateiramente da cozinha, ouvi Sarah dar uma risadinha.
Eu queria que um dia um cara tentasse se livrar da louça comigo da mesma forma, pensei e sorri.
Aparentemente, Mike negociou bem, pois ficou com a tarefa de pôr as crianças na cama em vez de arrumar a cozinha. A louça sobrou para mim. Eu não me importei, mas, assim que acabei, decidi que era hora de ir para a cama também. Seis da manhã era cedo demais.
Em silêncio, subi as escadas para o meu quarto. Era um espaço pequeno e aconchegante, com uma cama de solteiro, uma cômoda com espelho, uma mesa para o meu computador e para os deveres de casa, um armário, minhas roupas, meus livros, uma cesta de fitas de cabelo coloridas e a colcha de retalhos da minha avó.
Minha avó fez aquela colcha quando eu era pequena. Apesar de ser muito nova, eu me lembro de vê-la costurando os retalhos, sempre usando o dedal de metal. Tracei uma borboleta na colcha velha, puída nos cantos, recordando como eu havia roubado o dedal de sua caixa de costura uma noite só para senti-la perto de mim. Embora eu já fosse adolescente, ainda dormia com aquela colcha todas as noites.
Coloquei o pijama, desfiz a trança do cabelo e o escovei, pensando em como mamãe costumava fazer isso para mim enquanto conversávamos. Enfiei-me debaixo das cobertas quentes, acertei o alarme para, argh, 4h30 e me perguntei o que eu poderia fazer com um tigre tão cedo assim e como eu sobreviveria ao circo confuso que já era a minha vida. Meu estômago roncou.
Olhei na mesinha de cabeceira as duas fotografias que mantinha ali. Uma era de nós três: mamãe, papai e eu, no ano-novo. Eu tinha acabado de fazer 12 anos. Meus cabelos castanhos compridos haviam sido enrolados, mas na foto aparecem lambidos porque eu dera um ataque para não usar o laquê. Eu sorria, apesar do reluzente aparelho nos dentes. Agora me sentia grata pelos dentes brancos e alinhados, mas naquela época eu odiava aquele aparelho com todas as minhas forças.
Toquei o vidro, pousando o polegar na imagem do meu rosto pálido. Eu sempre sonhara em ser esbelta, bronzeada, loura e de olhos azuis, mas tinha os mesmos olhos castanhos do meu pai e a tendência a engordar da minha mãe.
A outra era uma foto espontânea dos meus pais no dia do seu casamento. Via-se um lindo chafariz ao fundo, e eles eram jovens, felizes e sorriam um para o outro. Eu queria aquilo para mim um dia. Queria alguém que olhasse para mim daquela maneira.
Depois de virar de bruços e afofar o travesseiro debaixo da bochecha, adormeci pensando nos cookies da minha mãe.
Naquela noite, sonhei que estava sendo perseguida na selva e, quando me virei para olhar meu perseguidor, levei um susto ao ver um grande tigre. No sonho, eu ri e então me virei e corri mais depressa. O som de patas delicadas e macias me seguia, no mesmo ritmo do meu coração.