Fanfic: 𝔸𝕋ℝ𝔼𝕍𝕀-𝕄𝔼 a chamar-lhe Pai (CONCLUÍDA) | Tema: Cristianismo, Islamismo, Fé, Amor
Um sentimento estranho e irritadiço crescia dentro de mim
enquanto andava lentamente ao longo dos caminhos de cascalhos
de meu jardim. Era crepúsculo. O perfume de narcisos pairava no
ar. O que, perguntava a mim mesma, me tornava tão inquieta?
Parei e olhei ao redor. Na casa, a alguma distância, do outro
lado do largo gramado, os criados começavam a acender as luzes.
Fora tudo parecia tranqüilo e calmo. Estendi a mão para colher
algumas flores brancas e de aroma acre para meu quarto. Ao
abaixar-me para cortar os caules esbeltos e verdes, algo passou
roçando minha cabeça.
Endireitei-me assustada. O que era? Nuvem, ou névoa? —
uma presença fria, úmida e temível — passara flutuando. De
repente o jardim pareceu mais escuro. Uma brisa fria farfalhou os
salgueiros fazendo-me estremecer.
Controle-se, Bilquis! Repreendi-me. Minha imaginação
pregava-me peças. Não obstante, juntei as flores e segui
rapidamente para casa onde as janelas brilhavam em segurança
tépida. As grossas paredes de pedras brancas e as portas de
carvalho ofereciam proteção. Ao apressar-me pelas estradas
encascalhadas encontrei-me olhando para trás. Sempre havia rido
das conversas a respeito do sobrenatural. E claro que não havia
nada lá fora. Ou havia?
Como se em resposta, senti uma pancadinha firme, bem real
e esquisita na mão direita.
Soltei um grito e entrei correndo em casa, batendo a porta
atrás de mim. Minhas criadas apressaram-se em minha direção,
receosas de fazer qualquer comentário; devo ter ficado parecida
com um fantasma. Só na hora de ir para a cama foi que,
finalmente, encontrei a coragem para falar às minhas duas criadas
sobre a presença fria.
— Vocês acreditam em coisas espirituais? — perguntei,
concluindo minha história. Nur-jan e Raisham, uma, muçulmana,
a outra, cristã, evitaram responder à minha pergunta; Nur-jan,
sacudindo nervosamente as mãos, perguntou-me se podia ir
chamar o mulá da aldeia, o sacerdote da mesquita, que traria um
pouco de água benta para purificar o jardim. Mas meu bom senso
havia voltado. Recusei submeter-me à superstição dos ignorantes.
Além disso, não queria que esta história se espalhasse na vila.
Tentei sorrir da preocupação dela e disse-lhe, um tanto
abruptamente, que não queria nenhum homem santo em minhas
propriedades fingindo expulsar espíritos maus. Depois de as
criadas deixarem o quarto, dei por mim apanhando meu exemplar
do Alcorão. Lutei com algumas páginas do livro sagrado
muçulmano; cansei-me dele, coloquei-o de volta no seu estojo azul
e adormeci.
Acordei lentamente na manhã seguinte, como o nadador que
luta para vir à superfície, com um cantochão agudo e fino
perfurando minha consciência:
"Laá ilaá ilá Ilaá, Maomé resolu, lá!"
A cantilena flutuava através da filigrana da janela do meu
quarto:
"Não há Deus a não ser Alá:
E Maomé é seu profeta."
Era um som confortador, este chamado à oração muçulmano
porque parecia tão normal depois da noite anterior. Era um
chamado que eu tinha ouvido, quase sem exceção, todas as
manhãs dos meus 46 anos. Visualizei a origem do cantochão
ondulante.
Alguns instantes atrás, na pequena vila paquistanense,
próxima de Wah, nosso idoso muezim havia entrado
apressadamente pela porta à base de um antigo minarete. No
interior agradável e fresco ele havia subido, vagarosamente,
degraus de pedras, curvos e gastos pelas sandálias de gerações de
homens santos muçulmanos. No topo da torre da oração, eu podia
imaginá-lo parando um pouco à porta entalhada, de teca, que leva
ao parapeito, a fim de tomar fôlego. Depois, indo até o corrimão,
jogou a cabeça barbada para trás e, com sílabas de mil e
quatrocentos anos de idade, chamava os fiéis à oração.
"Vinde à oração, vinde à salvação,
A oração é melhor do que o sono."
O grito assombrado flutuou através da cerração matutina,
atravessando as vielas de paralelepípedos de Wah, frios ainda da
noite de outubro, cruzou meu jardim, indo-se enroscar ao longo
das paredes de pedra da velha casa agora vermelhas à luz do sol
nascente.
Enquanto os últimos fragmentos do antigo cantochão
penduravam-se acima de mim, lembrei-me da experiência
misteriosa do jardim na noite anterior, e rapidamente voltei às
rotinas da manhã que deviam ser confortadoras apenas por serem
tão comuns. Sentei-me e levei a mão à procura do sino dourado na
mesinha de cabeceira de mármore. Ao seu toque musical, minha
criada Nur-jan entrou correndo, esbaforida, como de costume.
Ambas as minhas criadas dormiam num quarto adjacente ao meu
e eu sabia que elas tinham estado de pé por uma hora, esperando
meu chamado. O chá da manhã na cama era indispensável. Nurjan,
uma adolescente disposta, rechonchuda e risonha mas um
pouco desajeitada, começou a dispor minhas escovas e pentes de
prata. Derrubou uma escova e repreendi-a duramente.
Raisham, minha outra criada, mais velha e mais calma, uma
mulher alta e graciosa, entrou no quarto trazendo uma bandeja de
chá grande e coberta. Colocou-a no criado mudo, afastou a toalha
de linho a fim de expor a baixela de prata e despejou-me uma
xícara de chá fumegante.
Sorvendo a ambrósia escaldante, suspirei de satisfação; o chá
era melhor do que a oração. Minha mãe teria ficado chocada com
meu pensamento. Quantas vezes tinha-a eu observado colocar seu
tapete de oração no chão ladrilhado do quarto, e, com o rosto
voltado para Meca, a cidade santa, ajoelhar-se e pressionar a testa
contra o tapete, em oração. Pensando em minha mãe olhei para o
estojo de toucador sobre a penteadeira. Fabricado séculos atrás, de
sândalo, e coberto de prata esterlina gravada, havia pertencido a
mamãe e à sua mãe antes dela. Agora era minha herança, meu
tesouro. Depois de terminar duas xícaras de chá curvei-me para
frente, um sinal para Raisham começar a escovar-me o cabelo já
grisalho, que me ia bater à cintura, enquanto Nur-jan,
cuidadosamente, fazia-me as unhas.
Enquanto trabalhavam, as duas comentavam em
familiaridade fácil as notícias da vila; Nur-jan falando sem parar e
Raisham fazendo alguns comentários bem pensados e medidos.
Conversavam a respeito de um rapaz que se mudara para a cidade
e de uma moça que logo havia de se casar.
Então discutiram o assassinato ocorrido numa cidade
próxima onde morava a tia de Raisham. Eu podia perceber
Raisham estremecer enquanto comentava a notícia. A vítima havia
sido uma cristã. Uma jovem que estava parada numa casa de
missionários cristãos. Alguém encontrara seu corpo em uma das
vielas estreitas de sua vila. Diziam que a polícia ia investigar.
— Alguma notícia acerca da garota? — Perguntei
casualmente.
— Não, Begum Sahib —, disse Raisham calmamente,
enquanto, com cuidado, começava a fazer uma trança no meu
cabelo. Eu podia entender por que Raisham, sendo cristã, não
queria falar do assassinato. Ela sabia tão bem quanto eu quem
havia matado a mocinha. Afinal de contas, a garota havia
abandonado a fé muçulmana para se batizar, tornando-se cristã.
Então o irmão, furioso com a vergonha que esse pecado causara à
família, havia obedecido à antiga lei dos fiéis de que aqueles que se
desviam da fé devem morrer.
Embora os editos muçulmanos sejam duros e implacáveis,
suas interpretações são, às vezes, temperadas com misericórdia e
compaixão. Mas sempre há os zelosos que executam a lei do
Alcorão levando-a ao extremo.
Todo mundo sabia quem havia matado a garota. Mas nada
seria feito. Tinha sido sempre assim. Um ano atrás, o criado
cristão de um dos missionários acabou num fosso, garganta
cortada, e nada havia sido feito tampouco. Tirei da mente a
história triste e preparei-me para levantar. Minhas criadas foram
apressadamente ao armário e voltaram com vários saris de seda
para eu escolher. Apontei para um bordado com jóias. Depois de
me ajudarem a enrolar-me nele, fizeram uma mesura e saíram.
Agora a luz do sol enchia o quarto, dando às paredes brancas
e mobiliário cor de marfim, um brilho de açafrão. A luz do sol
brilhou sobre a moldura dourada de uma fotografia na minha
penteadeira. Fui lá, apanhei-a com raiva. Tinha colocado a foto
virada para baixo no dia anterior. Uma das criadas devia tê-la
endireitado! A moldura gravada continha uma fotografia de um
casal de aparência sofisticada, sorrindo para mim de uma mesa de
canto de um restaurante de luxo em Londres.
A despeito de mim mesma, olhei para a foto outra vez, assim
como a gente contínua a apertar um dente que dói. O homem
elegante, de bigodes negros e olhos ardentes tinha sido meu
marido, o general Khalid Sheikh. Por que guardava eu essa
fotografia? O ódio surgiu dentro de mim enquanto olhava para o
homem sem o qual já uma vez pensara não poder viver. Quando a
foto fora tirada seis anos antes, Khalid era Ministro do Interior do
Paquistão.
A mulher charmosa ao seu lado tinha sido eu. Filha de uma
família muçulmana conservadora, da pequena nobreza que por
setecentos anos havia morado nesta província da fronteira
nordeste, de clima agradável, que havia sido o nordeste da Índia,
eu tinha sido anfitriã de diplomatas e industriais de todo o mundo.
Havia-me acostumado a passeios em Paris e Londres onde passava
o tempo fazendo compras na Rue de la Paix ou na Harrods. A
esbelta mulher que sorria da foto já não existia, pensei, mirando-me
ao espelho. A pele suave e pálida havia-se bronzeado, o cabelo
preto lustroso manchara-se de branco, e a desilusão havia-lhe
cavado linhas fundas no rosto.
O mundo da fotografia tinha-se fragmentado cinco anos antes,
quando Khalid me deixou. Sofrendo a vergonha da rejeição, eu
tinha fugido da vida sofisticada de Londres, Paris e Rawalpindi e
vim procurar refúgio aqui, na paz tranqüila da propriedade de
minha família, aninhada ao pé das montanhas Himalaias. A
propriedade compreendia a pequena vila do interior montanhês de
Wah onde eu havia passado tantos dias felizes quando criança.
Wah era cercada de jardins e pomares que muitas gerações de
minha família haviam plantado. E a grande casa palaciana de
pedra com torres, terraços e enormes câmaras ecoantes parecia
tão velha quanto as montanhas Safed Koh, coroadas de neve, que
apareciam no oeste. Entretanto, minha tia também morava nesta
casa e desejando eu um pouco mais de isolamento, mudei-me para
uma casa menor que a família construíra nos arredores de Wah.
Engastada como uma jóia em 50 hectares de jardins, esta casa,
com os quartos e área de estar no andar de cima, sala de jantar no
térreo, prometia o conforto de que eu precisava.
Ela deu-me mais. Quando cheguei, muito dos grandes jardins
precisava ser aparado. Isto foi uma bênção, pois enterrei muito da
minha dor no solo fértil enquanto me lançava à restauração da
propriedade. Transformei parte dos 50 hectares em jardins com
muros e flores e deixei um pouco da área ao natural. Lentamente,
os jardins, com suas incontáveis fontes musicais, tornou-se meu
mundo, a ponto de no ano de 1966, eu ganhar a reputação de
eremita que se isolava fora de uma cidade aninhada entre suas
flores.
Autor(a): grandeshistorias
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Tirei os olhos da foto com moldura de ouro e coloquei-avirada, de volta à penteadeira; voltei-me para a janela do quartoolhando para a vila. Wah... o próprio nome da vila era umaexclamação de alegria.Séculos antes, quando esta vila não passava de umapequenina aldeia, o lendário imperador Mogul Akbar passou poraqui e sua carava ...
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