Fanfics Brasil - O ESTRANHO LIVRO - Parte I 𝔸𝕋ℝ𝔼𝕍𝕀-𝕄𝔼 a chamar-lhe Pai (CONCLUÍDA)

Fanfic: 𝔸𝕋ℝ𝔼𝕍𝕀-𝕄𝔼 a chamar-lhe Pai (CONCLUÍDA) | Tema: Cristianismo, Islamismo, Fé, Amor


Capítulo: O ESTRANHO LIVRO - Parte I

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Depois destas experiências senti-me atraída ao Alcorão.
Talvez ele ajudasse explicar os acontecimentos e, ao mesmo tempo,
preencher o vazio dentro de mim. Era certo que este livro continha
respostas que, muitas vezes, haviam dado ânimo a minha família.
Por certo que eu havia lido o Alcorão antes. Lembro-me
exatamente da idade em que comecei a aprender árabe a fim de ler
o livro sagrado: quatro anos, quatro meses e quatro dias de idade.
Era esse o dia em que toda criança muçulmana começava a
desvendar a escrita árabe. O acontecimento foi marcado por um
grande banquete familiar, a que todos os meus parentes
compareceram. Então, numa cerimônia especial, a esposa do mulá
de nossa aldeia começou a ensinar-me o alfabeto.
Lembro-me especialmente de meu tio Fateh (nós, as crianças,
o chamávamos de Tio-avô Fateh; ele não era meu tio de verdade —
um parente mais velho é chamado de tio ou tia no Paquistão). Tio avô
Fateh era o parente mais chegado de nossa família, e lembrome
claramente de como ele me observava na cerimônia; o rosto
aquilino e sensível brilhava de prazer enquanto eu ouvia, de novo,
a história de como o anjo Gabriel começara a dar a Maomé as
palavras do Alcorão naquela fatídica "Noite de Poder" do ano 610 A.
D. Levei sete anos para ler o livro sagrado do começo ao fim pela
primeira vez, mas quando terminei, a ocasião deu ensejo a outra
celebração em família.
Desde então eu sempre lera o Alcorão por obrigação. Desta
vez, senti que devia realmente examinar suas páginas. Peguei meu
exemplar, que pertencera à minha mãe, recostei-me no
alcolchoado de penas de minha cama, e comecei a ler. Comecei
pelo versículo inicial; a primeira mensagem dada ao jovem profeta
Maomé numa caverna do monte Hira:
Recitai: Em nome de teu Senhor que formou,
Formou o homem de um coágulo de sangue.
Recitai: E teu Senhor é o mais generoso,
Que te ensinou pela caneta,
Ensinou o homem que dele não sabia.
A princípio fiquei perdida na beleza das palavras. Mais
adiante encontrei palavras que não me confortavam de modo
nenhum:
Ao divorciares mulheres, e elas chegarem ao seu
termo, então retende-as amavelmente ou libertai-as
com amabilidade.
Os olhos de meu marido pareciam de aço negro quando disse
não mais me amar. Contraí-me por dentro enquanto ele falava. O
que tinha acontecido a todos os anos que passáramos juntos?
Podiam ser jogados fora assim? Tinha eu, como dizia o Alcorão
"chegado ao meu termo"?
Na manhã seguinte apanhei de novo o Alcorão, esperando
encontrar em suas letras cursivas a segurança de que precisava
tão desesperadamente. Mas tal segurança jamais veio. Encontrei
somente diretivas para a vida e advertências contra as outras
crenças. Havia versículos sobre o profeta Jesus, cuja mensagem,
dizia o Alcorão, fora falsificada pelos cristãos primitivos. Embora
Jesus houvesse nascido de uma virgem, não era filho de Deus. Não
digais: "Três", advertia o Alcorão contra o conceito cristão da
Trindade. Refreai-vos; é melhor para vós. Deus é um único Deus.
Certa tarde depois de vários dias de aplicar-me ao livro
sagrado, coloquei-o de lado, levantei-me, e fui até o jardim onde
esperava encontrar um pouco de paz na natureza e nas antigas
recordações. Até mesmo nesta época do ano, a luxuriante verdura
persistia, avivada aqui e ali por um alyssum colorido que ainda
desabrochava. Era um dia um pouco quente para o outono e
Mamude saltitava pelos caminhos por onde eu havia andado, em
criança, com meu pai. Com os olhos da mente via papai andando
ao meu lado, com seu turbante branco, vestido impecavelmente em
seu terno britânico conservador comprado em Saville Row como
convinha a um ministro do governo. Muitas vezes ele me chamava
pelo nome completo, Bilquis Sultana, sabendo o quanto eu gostava
de ouvi-lo. Bilquis era o primeiro nome da rainha de Sabá e todo
mundo sabia que Sultana significava realeza.
Tivemos muitas conversas agradáveis. E, mais tarde,
gostávamos de conversar a respeito de nosso novo país, o
Paquistão, do qual ele tinha tanto orgulho. "A República Islâmica
do Paquistão foi criada especialmente como pátria para os
muçulmanos do sul da Ásia", dizia ele. "Somos um dos maiores
países do mundo sob a lei islâmica", acrescentava ele, ressaltando
que 96% da população de nosso país era muçulmana, e que o
restante consistia, na maior parte, em grupos espalhados de
budistas, cristãos e hindus.
Suspirei e olhei para além das árvores do meu jardim, para os
montes cor de lavanda à distância. Sempre pude encontrar
conforto em meu pai. Havia-me tornado a companheira dos seus
últimos anos, e muitas vezes, discutia com ele a situação política
de nosso país, que mudava rapidamente. Expunha-lhe meus
pontos de vista. Ele era tão gentil, tão compreensivo. Mas agora já
não existia. Lembro-me de estar de pé ao lado de seu sepulcro no
cemitério muçulmano de Brookwood, nos arredores de Londres.
Ele tinha ido a Londres para ser operado e nunca se havia
recuperado. O costume muçulmano exige que o cadáver seja
enterrado dentro de vinte e quatro horas e quando cheguei ao
cemitério seu caixão estava pronto para ser baixado à sepultura.
Eu não podia acreditar que jamais veria meu pai novamente. Retiraram
a tampa do caixão para que eu pudesse vê-lo pela última
vez. Mas a argila cinzenta e fria naquela caixa não era ele; aonde
havia ele ido? Fiquei parada, entorpecida, meditando no significado
de tudo aquilo, enquanto fechavam de novo o caixão; cada guincho
dos parafusos entrando na madeira úmida fazia-me doer o corpo
todo.



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Autor(a): grandeshistorias

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