Fanfic: 𝔸𝕋ℝ𝔼𝕍𝕀-𝕄𝔼 a chamar-lhe Pai (CONCLUÍDA) | Tema: Cristianismo, Islamismo, Fé, Amor
Meu Mercedes preto funcionava em marcha lenta na entrada
da garagem. Manzur estava de pé ao lado da porta do motorista,
que ele conservava fechada até o último instante, protegendo o
calor do carro contra o frio daquela noite outonal. Seus olhos
negros ainda questionavam minha decisão, mas sem comentários.
Entrei no carro quente, ajeitei-me atrás do volante e saí para o
meio do crepúsculo, com a Bíblia no assento ao meu lado.
Todo mundo sabia onde todos viviam em Wah. O lar dos
Mitchell ficava perto da entrada da fábrica de cimento de Wah, da
qual minha família percebia parte de sua renda. Servia como
centro de uma comunidade pequena e estranha cerca de dez quilômetros
fora da cidade. As casas haviam sido construídas para
abrigo temporário das tropas britânicas durante a Segunda Guerra
Mundial. Recordava-me, das poucas vezes que me havia
aventurado nessa área, que as casas velhas e uniformes haviam
perdido muito da caiação; os tetos de zinco mostravam sinais de
muitos remendos. Uma mistura estranha de expectativa e temor
inundava-me enquanto dirigia. Eu nunca estivera em um lar
missionário cristão antes. Tinha esperança de conhecer a
identidade de meu homem misterioso, João Batista, e ao mesmo
tempo temia uma certa — o que devia chamá-la, "influência"? —
dos que podiam responder à minha questão.
O que pensariam meus ancestrais desta visita a um
missionário cristão? Pensei, por exemplo, no meu bisavô que havia
acompanhado o famoso general britânico Nicholson através do
desfiladeiro Kyber em uma das guerras do Afeganistão. Que
vergonha essa visita seria para minha família! Sempre havíamos
relacionado os missionários com os pobres e os párias da
sociedade. Imaginei uma conversa com um tio ou uma tia na qual
tentava defender-me contando-lhes meus sonhos estranhos.
— Afinal de contas —, dizia eu na cena que executava
mentalmente — qualquer pessoa haveria de querer descobrir o
significado de sonhos tão vividos.
O bairro dos Mitchell, à mortiça luz da noite que chegava,
com seus bangalôs iguais, parecia, se possível, ainda mais
descuidado. Depois de procurar acima e abaixo pelas vielas
estreitas, descobri a casa dos Mitchell perto da fábrica de cimento;
um bangalô pequeno e caiado de branco, por entre um bosque de
amoreiras. Como cautela, ia estacionar o carro a alguma distância;
então, dando conta de mim, pensei que estava por demais receosa
do que minha família ia pensar. Estacionei bem na frente da casa
dos MitchelI, peguei a Bíblia e dirigi-me rapidamente para a casa.
Percebi o quintal bem cuidado e a varanda, cercada de tela, bem
mantida. Estes missionários cuidavam bem do lugar onde
moravam.
A porta da casa abriu-se e um grupo de aldeãs, conversando
alegremente, saiu. Todas elas vestiam um típico xalvar camiz, uma
espécie de pijama frouxo, feito de algodão, e traziam um dupata
(xale) ao pescoço. Estaquei rígida. É claro que me iam reconhecer.
Quase todo mundo me conhecia. Agora a história seria comentada
por toda a região que Begum Sheikh havia visitado um missionário
cristão!
Como para provar o que eu estava pensando, assim que elas
me viram à luz que jorrava da porta da frente da casa dos Mitchell,
pararam de conversar. Passaram apressadas por mim em direção à
rua, cada uma levando a mão à testa em cumprimento tradicional.
Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser continuar em
direção à porta, onde a Sra. Mitchell, de pé, perscrutava o
escurecer. Mais de perto, sua aparência era como me lembrava, ao
vê-la à distância pela cidade. Jovem, pálida, quase frágil. Só que
agora usava um xalvar camiz igual aos das aldeãs. Assim que me
viu, ficou boquiaberta.
— Ora... ora, Begum Sheikh! — exclamava ela, — o que? ...
mas ... Entre — disse ela. — Entre!
Fiquei contente em entrar na casa, e escapar aos olhares das
aldeãs, que, eu tinha certeza, estavam fixados em minhas costas.
Entramos na sala de estar, pequena e singelamente mobiliada. A
Sra. Mitchell pegou, o que parecia, a cadeira mais confortável, e
colocou-a para mim, perto da lareira. Ela mesma não se sentou,
mas de pé, abria e fechava as mãos. Meu olhar captou algumas
cadeiras em círculo no meio da sala. A Sra. Mitchell explicou haver
terminado um estudo bíblico com algumas mulheres locais. Tossiu
nervosamente.
— Ah, gostaria de uma xícara de chá? — perguntou ela,
empurrando o cabelo para trás com a mão.
— Não, obrigada —, respondi. — Vim fazer uma pergunta. —
Olhei ao meu redor. — O Rev. Sr. Mitchell está em casa?
— Não. Foi de viagem ao Afeganistão.
Fiquei sentida. A mulher, em pé, à minha frente, era tão
jovem! Seria ela capaz de responder às minhas indagações?
— Sra. Mitchell —, aventurei-me — a Sra. sabe alguma coisa
acerca de Deus?
Ela sentou-se em uma das cadeiras de madeira e olhou-me
estranhamente; o único barulho na sala era o crepitar suave das
chamas na lareira. Então ela disse calmamente:
— Acho que não sei muito acerca de Deus, mas deveras o
conheço.
Que afirmativa extraordinária! Como é que uma pessoa podia
ter a presunção de conhecer a Deus? Ainda assim, a confiança
estranha da mulher dava-me segurança também. Antes de
descobrir o que realmente estava acontecendo, dei por mim
contando-lhe o meu sonho com o profeta Jesus e com o homem
chamado João Batista. De algum modo estranho, tinha dificuldade
em controlar a voz enquanto relatava a experiência. Ao contar-lhe
a história, senti a mesma emoção que sentira no topo daquela
montanha. Depois de descrever o sonho, inclinei-me para frente.
— Sra. Mitchell, já ouvi falar de Jesus, mas quem é João
Batista?
A Sra. Mitchell piscou os olhos e franziu a testa. Parecia que
ela ia perguntar se eu realmente nunca ouvira falar de João
Batista, mas em vez disso assentou-se de novo.
— Bem, Begum Sheikh, João Batista foi um profeta,
precursor de Jesus Cristo, que pregou o arrependimento e foi
enviado para preparar o caminho do Senhor. Foi ele que apontou
para Jesus dizendo: "Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do
mundo." Foi ele quem batizou Jesus.
Por que meu coração deu um salto ao som da palavra
"batizou?" Pouco sabia destes cristãos, mas todos os muçulmanos
tinham ouvido de sua estranha cerimônia de batismo. Minha
mente flutuou até as muitas pessoas que foram assassinadas
depois do batismo. Isso também aconteceu durante o governo
britânico, quando, supostamente existia liberdade religiosa. Ainda
em criança eu tinha relacionado os dois fatos: o muçulmano era
batizado, o muçulmano morria.
— Begum Sheikh?
Levantei os olhos. Quanto tempo estivera sentada em silêncio?
— Sra. Mitchell — disse eu, com um nó na garganta, —
esqueça-se de que sou muçulmana. Diga-me simplesmente o que
quis dizer com conhecer a Deus.
— Conheço a Jesus —, disse a Sra. Mitchell, e eu sabia que
ela pensava estar respondendo à minha pergunta.
Então contou-me o que Deus havia feito por ela e pelo mundo,
desfazendo o terrível abismo entre o homem pecador e o próprio
Deus, ao vir, pessoalmente, visitar esta terra, na carne, como
Jesus, e morrer na cruz por todos nós.
A sala ficou novamente em silêncio. Podia ouvir caminhões
passando na rodovia próxima. A Sra. Mitchell não parecia estar
com pressa de falar. Finalmente, quase sem acreditar nos meus
próprios ouvidos, respirei e ouvi minha própria voz dizendo
distintamente:
— Sra. Mitchell, algumas coisas estranhas têm acontecido em
nossa casa ultimamente. Coisas do espírito. Tanto boas quanto
más. Sinto como se estivesse no meio de um imenso cabo-de-guerra;
preciso de toda ajuda positiva que puder conseguir. A
senhora podia orar por mim?
A mulher pareceu ficar espantada com meu pedido, e então,
voltando a si, perguntou se eu queria ficar de pé, ajoelhar-me ou
ficar sentada enquanto orávamos. Estremeci, subitamente
horrorizada. Todas as alternativas eram igualmente inconcebíveis.
Mas lá estava essa mulher esbelta e jovem ajoelhada no assoalho
de seu bangalô. Imitei-a!
— Ó Espírito de Deus —, orou a Sra. Mitchell em voz suave —
sei que nada que eu possa dizer convencerá Begum Sheikh de
quem Jesus é. Mas agradeço-te o tirares o véu de nossos olhos e o
revelares Jesus a nossos corações. Ó Espírito Santo, faze isto para
Begum Sheikh. Amém.
Autor(a): grandeshistorias
Este autor(a) escreve mais 4 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
Permanecemos ajoelhadas, pareceu-me, por uma eternidade.E nesse silêncio confortador meu coração sentia um calor estranho.Finalmente a Sra. Mitchell e eu nos levantamos.— Isso aí é uma Bíblia, Madame Sheikh? — perguntou ela,indicando o volume cor de cinza que eu apertava contra o peito.Mostrei-lhe o livro.— O que ach ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo