A verdade é que trabalhei a vida inteira para manter meu temperamento sob controle. A raiva era uma emoção constante durante minha infância, mas, por sorte, encontrei uma válvula de escape saudável para ela… o hóquei, um esporte que me permite bater em adversários num ambiente seguro e regulamentado.
“Ele não foi preso”, diz Dulce, baixinho.
Meu olhar se volta para o dela. “Você tá brincando?”
“Não.” Seus olhos assumem um brilho distante. “Quando cheguei em casa naquela noite… na noite em que aconteceu… meus pais olharam para mim e souberam que algo de errado tinha acontecido. Nem lembro o que disse para eles. Tudo o que sei é que chamaram a polícia e me levaram para o hospital, eu fiz o exame de corpo de delito, fui entrevistada, interrogada. Sentia tanta vergonha. Não queria falar com os policiais, mas minha mãe me disse que eu tinha que ser corajosa e contar tudo, para impedir que ele fizesse aquilo com outra pessoa.”
“Ela parece uma mulher muito inteligente”, digo, com a voz rouca.
“E é.” A voz de Dulce falha. “Enfim, Aaron foi preso, mas logo foi solto sob fiança, e eu tive que encontrar com o filho da mãe na cidade e no colégio…”
“Eles o deixaram voltar para o colégio?”, exclamo.
“Ele não podia chegar a menos de cem metros de mim em momento algum, mas, sim, voltou para o colégio.” Ela me lança um olhar sombrio. “Eu comentei que a mãe dele era prefeita de Ransom?”
Sinto o espanto fisicamente dentro de mim. “Cara/lho.”
“E o pai dele era o encarregado da paróquia.” Ela solta uma risada sarcástica. “A família dele praticamente dirige a cidade, então, na verdade, foi uma surpresa ele ter sido preso, pra começo de conversa. Ouvi dizer que a mãe fez um escândalo quando apareceram na casa deles. Ops, na mansão deles.” Ela faz uma pausa.
“Resumindo, houve um monte de audições e depoimentos preliminares, e tive que sentar na frente dele no tribunal e olhar para aquela cara convencida. Depois de um mês dessa palhaçada, o juiz finalmente decidiu que não havia provas suficientes para julgar e dispensou o caso.”
O horror me acerta com mais força do que Greg Braxton seria capaz. “Tá falando sério?”
“Pode apostar.”
“Mas eles tinham os exames e o seu testemunho…”, gaguejo.
“Tudo o que os exames provaram foi que teve sangue e rompimento de tecido…”, ela enrubesce, “… mas eu era virgem, então o advogado deles alegou que a perda da virgindade poderia ser a causa. De resto, era a palavra de Aaron contra a minha.” Ela ri de novo — dessa vez, de espanto. “Na verdade, era a minha palavra contra a dele e de três amigos.”
Franzo a testa. “Como assim?”
“Acontece que os amiguinhos dele atestaram para o juiz, sob juramento, que usei drogas naquela noite por vontade própria. Ah, e que havia meses que estava me jogando em cima do Aaron, então ele, claro, não podia dizer ‘não’. Eles disseram isso como se eu fosse a maior prostituta drogada do planeta. Foi humilhante.”
Não conhecia o significado de raiva cega até este exato instante. Porque a simples ideia de que Dulce tenha sido obrigada a passar por tudo isso me faz querer matar todas as pessoas daquele fim de mundo infernal de onde ela veio.
“E piora”, avisa ela, ao ver minha expressão.
Solto um gemido. “Ai, Deus. Não aguento mais ouvir.”
“Ah.” Ela desvia os olhos, desconfortável. “Desculpa. Esquece.”
Pego seu queixo depressa e viro seu rosto para mim. “Foi só jeito de dizer. Preciso ouvir isso.”
“Tá. Bom, depois que as acusações foram retiradas, a cidade inteira se voltou contra mim e meus pais. Todo mundo disse um monte de coisas horríveis a meu respeito. Eu era uma vaga/bun/da, eu seduzi o cara, eu tentei enquadrá-lo, esse tipo de coisa tranquila.
Terminei tendo que receber aulas particulares até o final do semestre. E a mamãe prefeita e seu marido pastor processaram a minha família.”
“Tá de sacanagem?”, digo, com os dentes quase cerrados.
“Pois é. Alegaram que causamos estresse emocional ao filho deles, que o caluniamos, e um monte de outras besteiras que não lembro mais. O juiz não deu tudo o que eles pediram, mas decidiu que meus pais tinham que pagar os encargos legais da família de Aaron. O que significa que tiveram de pagar por dois advogados.”
Dulce engole em seco. “Sabe quanto o nosso cobrava por cada dia que foi ao tribunal?”
Tenho medo de perguntar.
“Dois mil dólares.” Seus lábios se torcem num sorriso amargo. “E o nosso advogado era barato. Então imagina quanto o da senhora prefeita cobrava por dia. Meus pais tiveram que financiar a casa de novo e pegar um empréstimo para cobrir as taxas adicionais.”
“Merda.” Quase posso sentir meu coração se partindo dentro
do peito. “Sinto muito.”
“Eles estão presos naquela porcaria de cidade por minha causa”, acrescenta Dulce, categoricamente. “Meu pai não pode largar o emprego na madeireira porque é um trabalho estável e ele precisa do dinheiro. Mas pelo menos está trabalhando na cidade vizinha. Ele e minha mãe não podem entrar no centro de Ransom sem lidar com olhares de reprovação ou sussurros desagradáveis. Não podem vender a casa porque vão perder dinheiro com isso. Não podem se dar ao luxo de me verem este ano. E sou medrosa demais para voltar lá para vê-los. Não consigo, Christopher. Não quero nunca mais pisar naquele lugar.”
Não a culpo. Que inferno, me sinto da mesma forma sobre a casa do meu pai, em Boston.
“Os pais de Aaron ainda moram lá. Ele ainda os visita todo verão.” Ela me olha com uma expressão desamparada. “Como posso voltar?”
“Você já foi alguma vez desde que entrou na faculdade?”
Ela faz que sim. “Uma. E, no meio dessa visita, meu pai e eu tivemos que ir à loja de ferragens e encontramos dois dos pais dos amigos de Aaron, os filhos da mãe que mentiram por ele. Um dos pais fez um comentário mal-educado, algo como ‘olha só, a va/dia e o pai dela comprando uma escada, porque com certeza ela gosta de ter/par’. Ou qualquer coisa do tipo. E meu pai teve um troço.”
Inspiro fundo.
“Foi atrás do sujeito que disse isso e quebrou feio a cara dele, antes de a briga ser apartada. E claro que tinha um policial passando perto da loja naquela hora e prendeu meu pai por agressão.”