“Ele quer um coral!”
Christopher pisca, sem entender. “Quem quer um coral?”
“Meu parceiro de dueto”, respondo, sombriamente. “Também conhecido como praga da minha vida. Juro por Deus que, se não tivesse medo de quebrar os dedos, acertava a mão bem no meio daquela cara convencida e idiota.”
“Quer que eu te ensine a dar uns socos?” Christopher aperta os lábios como quem está contendo o riso.
“Tô tentada a dizer que sim. Sério, é impossível trabalhar com esse cara. A música é linda, mas tudo o que ele sabe fazer é botar defeito nos detalhes mais microscópicos. O tom, o tempo, o arranjo, a porcaria das roupas que a gente vai usar.”
“Tá… e que história é essa de coral?”
“Pois é… Cass quer um coral para nos acompanhar no último refrão. Uma droga de um coral. A gente tá ensaiando essa música há semanas, Christopher. A ideia é simples e elegante, só nós dois exibindo as nossas vozes, e de repente ele inventa que quer fazer uma superprodução?”
“Parece uma diva.”
“É exatamente o que ele é. Tô prestes a pular no pescoço dele.” Minha raiva é tão visceral que me dá um nó na garganta e faz minhas mãos tremerem. “E aí, como se não bastasse, dois minutos antes do final do ensaio, ele decide mudar o arranjo.”
“Qual o problema do arranjo?”
“Nenhum. Não tem nada de errado com o arranjo. E Mary Jane, a menina que escreveu a merda da música, fica lá sentada e não diz nada! Não sei se ela tem medo do Cass, se tá apaixonada por ele ou sei lá o quê, mas ela não ajuda. Se fecha num casulo toda vez que a gente começa a brigar, sendo que ela tinha mais é que dar uma opinião e tentar resolver o problema.”
Christopher contrai os lábios. Mais ou menos como minha avó faz quando está pensando profundamente. É bem bonitinho.
Mas se eu dissesse que acabou de me lembrar da minha avó no mínimo ele me mataria.
“O que foi?”, pergunto, diante do seu silêncio.
“Quero ouvir a música.”
A surpresa me invade. “O quê? Por quê?”
“Porque você só fala disso desde quando a gente se conheceu.”
“É a primeira vez que toco no assunto!”
Ele me responde com um aceno displicente com a mão, um gesto que estou começando a suspeitar que faça o tempo todo.
“Não importa, quero ouvir. Se essa Mary Jane não tem coragem de fazer uma crítica merecida, eu tenho.” Ele dá de ombros. “Talvez seu parceiro… como é mesmo o nome dele?”
“Cass.”
“Talvez Cass tenha razão, e você seja teimosa demais para perceber.”
“Pode acreditar, ele está errado.”
“Certo, deixa que eu decido isso. Canta aí as duas versões da música para mim, do jeito que é agora e do jeito que Cass quer. Então eu digo o que acho. Você toca, né?”
Franzo o cenho. “Toco o quê?”
Garrett revira os olhos. “Um instrumento.”
“Ah. Toco. Piano e violão… por quê?”
“Já volto.”
Ele sai do quarto e ouço seus passos no corredor, seguidos pelo ranger de uma porta. Logo depois, volta com um violão na mão.
“É do Tuck”, explica. “Ele não vai se importar se você tocar.”
Ranjo os dentes. “Não vou ficar aqui fazendo serenata para você.”
“Por que não? Tá com vergonha?”
“Não. Só tenho mais o que fazer.” Lanço um olhar contundente na direção dele. “Por exemplo, conseguir que você passe na segunda chamada.”
“Já estamos quase acabando o pós-modernismo. A parte mais difícil começa aula que vem.” Sua voz assume um tom zombeteiro.
“Vamos lá. Temos tempo. Me mostra a música.”
Em seguida, abre um sorriso de menino ao qual sou incapaz de dizer não. O sujeito definitivamente treinou bem a cara de cachorro pidão. Só que não é um menino. É um homem, com um corpo grande, forte e um queixo expressivo, determinado. Sorrisos provocantes à parte, sei que Garrett vai me encher o saco a noite toda se não concordar em cantar.
Pego o violão e o coloco no colo, dedilhando de leve. Está afinado, é um pouco menor do que o que tenho em casa, mas o som é ótimo.
Christopher sobe na cama e deita, descansando a cabeça numa montanha de travesseiros. Nunca conheci ninguém que dormisse com tantos travesseiros. Talvez precise deles para caber o ego gigante.
“Certo”, digo. “O negócio é o seguinte. Finge que tem um cara cantando comigo no primeiro refrão, e depois seguindo com a segunda estrofe.”
Conheço um monte de gente tímida demais para cantar na frente de estranhos, mas nunca tive esse problema. Desde criança, a música sempre foi um escape para mim. Quando canto, o mundo desaparece. Sou só eu, a música e um profundo sentimento de tranquilidade que nunca fui capaz de encontrar em lugar nenhum, não importa o quanto tente.
Respiro, toco os acordes de abertura e começo a cantar. Não olho para Garrett, porque já estou em outro lugar, perdida na melodia e nas palavras, concentrada por inteiro no som da minha voz e na ressonância do violão.
Adoro essa música. De verdade. É estonteante de tão bonita e, ainda que não tenha o barítono volumoso de Cass para complementar minha voz, causa o mesmo impacto, a mesma emoção lancinante que M.J. verteu em palavras.
Minhas ideias clareiam e meu coração fica mais leve quase que imediatamente. Eu me sinto inteira de novo, porque a música tem esse efeito sobre mim, foi assim que me ajudou depois do estupro. Sempre que as coisas ficavam pesadas ou dolorosas demais, eu ia para o piano ou pegava meu violão e sabia que a alegria não estava tão fora de alcance. Estava logo ali, sempre disponível para mim, desde que fosse capaz de cantar.
Vários minutos depois, a nota final paira no ar como um traço de perfume adocicado, e flutuo de volta ao presente. Viro-me para Christopher, mas seu rosto é inexpressivo. Não sei o que estava esperando dele. Um elogio? Uma provocação?