Fanfic: Camisa de Comprimidos | Tema: O Segredo de Brokeback Mountain
"Não sou o único viajante
Que não pagou sua dívida
Estive buscando um caminho para seguir novamente
Me leve de volta para a noite em que nos conhecemos"
Ele abraçava continuamente aquela camisa, cheirando com ardor a fraca fragrância que ali ainda restava. Quando fechava seus olhos podia sentir como o toque de Jack, como o sangue escorrendo por seu nariz e sua alma elevar quando recriava o hálito quente sobre seu rosto mais uma vez.
Quando retornava para cama sentia o rosto arder em lágrimas e o peito apertar com uma sensação angustiante que seria capaz de arrancar com as próprias mãos se pudesse. Por muitas vezes corria para fora do trailer, na tentativa de recuperar o fôlego e fugir de seus pesadelos. Olhava para as estrelas e chorava sua saudade silenciosamente.
Sua cabeceira repleta de comprimidos virou seu porto-seguro. Dopado, caía no sono e repetia todo processo, de volta aos sonhos e a realidade inalcançável.
Sabia que quando despertasse estaria cercado por sua realidade macabra, e pouco a pouco sentia como um pedaço de sua alma morrer.
E se pudesse voltar? E se pudesse retornar à noite em que conheceu a razão de sua dor? E se pudesse mais uma vez tatear ao corpo de Jack? Sentir como nunca o beijo sôfrego que incitou sua natureza oculta?
Nem as orações que agora fazia em honra de sua crença renovada ou mesmo a mágica dos comprimidos eram suficientes para tornar sua dor suportável. Desejava marchar como em pentecostes para o fim do mundo, na esperança de reencontrar sua parte alegre agora morta.
Sua aparência deteriorada denunciava seu óbito interno como sentença aos erros do passado. Nada satisfazia seu apetite senão o efeito alucinógeno daqueles remédios ou o silêncio interior da igreja. Buscava a ação de Deus em sua vida a cada mísero centavo que depositava na cesta de oferendas. Esperava um milagre, esperava a misericórdia divina para banir suas visões ou simplesmente carregar sua dor para longe de sua sensibilidade.
Apesar de sua desesperada busca pelo alívio, o amor por suas filhas, crescidas, distantes, ainda pendia em sua balança de indecisão. Mas imaginou que certamente encontrariam esperança maior em seus filhos e maridos senão em um corpo oco o qual chamavam de pai.
A vontade torturante de Ennis de morrer era sua vontade explosiva de viver. Viver sem limites, sem cercas. Viver com a inocência que perdeu na noite em que sentiu borboletas no estômago tocando Jack.
E se manipulasse sua própria morte? Deixaria informações de que poderia ter se mudado para muito longe, para um rancho desconhecido. Talvez jamais encontrariam seu corpo vazio em meio à montanha Brokeback. Talvez seu corpo fosse jamais reconhecido.
Ou talvez ninguém mais sentisse sua falta da mesma forma com que Jack sentia, amando incondicionalmente. Acima dos preconceitos e tabus questionadores.
Mas ele também aprendeu a amar, aprendeu a ser acolhedor à dor alheia. Sentia como maior sensibilidade aos mais compadecidos. Porém, como um bandido arrependido, crucificava sua alma e orava por salvação daquele incêndio o qual havia própria ateado.
Como um viajante sem rumo, ele partiu de volta às ruínas de seu antigo olimpo. A paisagem através da cadeia de montanhas gélidas mais pareciam com um túnel obscuro que guardava em seu fim a luz para tudo. Subiu ao percurso que levava de volta ao acampamento em que Jack e ele haviam se conhecido verdadeiramente. Sentia voltar para a noite em que haviam se conhecido.
Armou a barraca e ali dentro permaneceu junto a camisa e ao frasco de comprimidos, mirando a noite límpida e estrelada que rasgava o horizonte. Do lado de fora ele observava a fogueira formar sombras dentro de sua barraca com seu brilho alaranjado. Fitou a imponência daquela dança de chamas, e sentiu como uma esperança acender dentro de seu peito. Depois daquela noite, daquele momento, estaria livre das dunas de seu interminável sofrimento.
Seu globo ocular se aqueceu com as lágrimas que trilhavam passagem por seu rosto, mirando continuamente a luz que queimava suas expectativas. Abraçou a camisa junto ao corpo mais uma vez e virou todo o frasco ou pelo menos metade dele direto para sua garganta. Agarrou a garrafa de uísque barato e velho, o mesmo que tomava junto a Jack nas noites de encontro, e umedeceu a passagem para seu alívio.
Mirou os céus estrelados através da brecha da barraca e visualizou pouco a pouco o brilho incandescente da fogueira dissipar gradativamente, afastando a vida de seu campo de visão. Sua visão porém turva podia ainda captar o horizonte através das árvores e arbustos, e com um desesperador sentimento de surpresa visualizou também uma silhueta obscura atravessar o campo e caminhar em sua direção. A escuridão ao longe aliada a sua visão comprometida não permitiram que fosse reconhecida totalmente a fisionomia do indivíduo. Pensou em agir e gritar para que deixasse o local, mas já era tarde demais para arrependimentos.
Quem poderia ser? Algum guarda-florestal patrulhando a área? Algum assaltante ou bandido que desejava seus pertences? Milhões de teorias atravessam sua mente em êxtase, e por um último sentimento sentiu como seu plano desmoronar como nada.
Mas agora a que isto importaria? Tudo já estava em queda. Tudo já estava morto.
Nada. Viu como o sinônimo de sua vida materializar em seu pleno estado inconsciente. Sentiu seu corpo em totalidade vital, e pôde caminhar a passos lentos para fundo de um plano escuro.
Ouviu vozes e enxergou silhuetas familiares ao longe. Repletas de uma luz branca elas o esticaram a mão e sussurraram seu nome no enorme eco local. Ele instantaneamente a reconheceu.
A silhueta de Jack, brilhando e clamando por seu nome.
— Ennis...
Desesperado e muito surpreso, ele começou a correr na direção de quem o chamava. De quem o queria.
— Estou indo, Jack! Estou indo! — Sentiu seus olhos encharcarem como nunca antes, e seus passos afundarem a cada instante que aproximava a luz com sua corrida desesperada.
— Ennis...
— Jack! — O corpo assim afastava a proximidade com a de sua voz lacrimejante e o coração pulsante em sua garganta — Jack, por favor! Eu te amo... Eu te amo!
Seus gritos ecoaram pela escuridão como um raio de explosão, e como um passe de mágica sentiu o corpo flutuar em alta velocidade. Estava alcançando! Sabia que conseguiria! Sabia que Jack mais o abandonaria!
— Ennis... — Seus dedos tocaram e viu como a luz envolveu seu corpo. Sentiu como o braço de Jack o envolver num abraço acolhedor.
— Ennis! — E pela última vez ouviu seu nome.
Em uma natural reação ele despertou com um salto que o afastou do que estivesse o segurando a mão. Escutou o reboliço de cobertores e toques, e mesmo sonâmbulo e também desorientado, reconheceu através de suas pálpebras quase grudadas o rosto familiar que assombrava seus sonhos.
Jack Twist. Era esse seu sonho ou seu fantasma?
Não, não podia ser. Aquilo era só mais um sonho e mais cedo ou mais tarde ele iria acordar em sua barraca, dopado e muito, muito distante de Jack. Ou talvez já estivesse acordado...
Observou o redor de seu ambiente e constatou em seu delírio que ele estava ali. Jack estava. Talvez fosse um ilusão ou apenas uma visão tola que sua mente sempre o pregara em seus momentos de carência.
Ennis recuou, mas sentiu o corpo intruso novamente invadir seu espaço e agarrar a seu rosto. Lançou seus braços tentando impedir o ato, mas o hálito quente do que fosse feito aquele Jack invadira as proximidades de seu rosto.
— Ennis...
Sentia seu peito borbulhar em tensão, liquidificando uma cadeia de emoções e sentimentos indecifráveis. Estava fragilizado, receoso e temeroso ao que podia ser aquilo... Mas era Jack. E não importaria se fosse somente mais um sonho ou ilusão. Ele estava ali, presente, materializado como desejou por várias estações de sofrimento. Sem ele, sentia queimar em um inferno congelado.
— Jack? — Sussurrou apalpando suas expectativas.
— Estou aqui, Ennis... Estou aqui
Foram necessárias poucas palavras entoadas de maneira macia e protetora para que suas correntes fossem quebradas. Um mar de soluços invadiu a barraca, evadindo das emoções de Ennis que floresciam como a de uma criança. Seus corpos se uniram em uma colisão forte, delirante. Um abraço de adeus e também de retorno. Uma muralha de natureza afetiva.
— Eu te amo! Eu te amo, Jack! Eu te amo, seu desgraçado! — Entre engasgos e soluços o pobre Del Mar debulhou em lágrimas válidas como de décadas — Estamos juntos agora, eu não irei te deixar. Vamos viver nossas vida, vamos para o rancho!
— Shh… Acalme-se. Venha, se deite aqui
Como da primeira vez, Ennis debruçou seu desejo sobre o peito de Jack que acariciava seus cabelos loiros e desgrenhados.
Como da primeira vez, as mãos de Ennis trilharam aquele corpo com avidez. Estava faminto por seu corpo, seu cheiro, seu gosto. O seu em totalidade.
— Eu queria viver, queria deixar você. Queria dizer a mim mesmo que já não estava mais ao meu lado. Mas não consigo, não consigo nada sem você — Sussurrou hipnotizado pela maré azulejada que ondeava as pupilas de seu amado — Não importa onde estou, onde estamos. Quero voltar com você, me leve para onde você estiver, Jack!
— Você pode viver sem mim. Você deve viver sem mim, Ennis.
— Não! Não posso, e não consigo. Preciso de você, preciso de seu perdão. Se eu estivesse ao lado, talvez teríamos morrido juntos. Eu matei você! Eu matei você... — Murmurava entre caretas e soluços.
— Shh... Não diga isso. Você não me matou, muito pelo contrário. Você deu vida, me fez nascer de novo. Eu te amo, Ennis. E serei seu, para sempre seu.
Seus corpos sobrepuseram seus pesos um ao outro, e ali, em meio a lágrimas e declarações, puderam sentir um ao outro mais uma vez. Entre beijos, toques e uma paixão tão ardente quanto o sol.
Ennis sentia como seu peito lacrimejar e suas visões daquilo que temia dissiparem como cinzas pela respiração ofegante a qual dividia com Jack. Ele estava ali e não queria deixar que fosse, não como da última vez. Queria que o tempo paralisasse naquele momento, para sempre se possível. Queria porque queria amar a Jack novamente. Queria e não sabia porquê se juntar a ele. Porque se ele estivera sempre ali?
Não sabia onde estava, quando deveria voltar e porque voltar. Era essa sua realidade, seu sonho inalcançável. Sua utopia do amor que um dia tivera.
Como da primeira vez ele sentiu borboletas invadiram seu estômago, e se acomodarem relutando contra seu sentimento de culpa, arrependimento e morte. Era como entrar em um furacão e não sentir suas rajadas cortantes.
Sentia afinal toda sua vida rebobinar como em uma fita cassete e ser ejetada para fora do tocador. Virou o objeto e notou o lado em branco. Poderia por fim regravar as lembranças que seu amor havia o preenchido. Poderia ouvir a voz de Jack soando através de singelas vibrações, ditando singelas declarações em sua memória.
Estava além das muralhas do tempo, longe demais de sua noção para distinguir sua relação com passado, presente e futuro. Aquela noite era memorável demais para seu passado; aclamada como nunca por seu presente; desejável eternamente para seu futuro.
Estava de volta na noite em que se conheceram.
— Não me são necessárias promessas para comprovar que me ama. E não lhe é necessário aquela camisa para sentir que estou ao seu lado. Eu sempre te amarei como ninguém amou, e andarei ao seu lado como ninguém nunca andou
— Jack, me diga que isso não é um sonho. Que tudo é real e que estou acordado e não alucinando — Implorava com fervor sem deixar de separar seus olhos aos de Jack um só momento.
— Você esteve sempre acordado, Ennis. Isso não é um sonho e muito menos alucinação. É sua realidade. Basta abrir os olhos e enxergar
— Eu te amo, Jack Twist — Repetiu entre outro beijo molhado que selava a demonstração de seu amor incompreendido por si próprio.
— Eu te amo, Ennis Del Mar
Ele abraçava continuamente aquela camisa, cheirando com ardor a fraca fragrância que ainda ali restava. Quando fechava seus olhos podia sentir como o toque de Jack, como o sangue escorrendo por seu nariz e sua alma elevar quando recriava o hálito quente sobre seu rosto mais uma vez.
Quando retornava para cama sentia o rosto arder em lágrimas e o peito apertar com uma sensação saudosa que seria capaz de segurar com as próprias mãos se pudesse. Por muitas vezes corria para fora do trailer, na tentativa de recuperar as memórias e fugir de seus demônios. Olhava para as estrelas e chorava sua saudade silenciosamente.
Relembrava com sorriso a noite em que se conheceram.
Autor(a): ledger
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