...Nos acostumamos tanto ao seu nome que nunca pensamos em chamá-la de outra maneira. Na escuridão dos corredores sinto a angustiante solidão de Dulce neste mundo, sem uma identidade que lhe dê respaldo, tão diferente de nós que podemos escavar nosso passado até o último cantinho do mundo, com sobrenomes que produzem expressões de aceitação e até perdão por nossos crimes. A vida não perdoou Dulce; por isso se defendia tanto, criando um cerco de balas, sexo, castigo, prazer e dor. Seu corpo nos enganava, achávamos que nele se encontrariam as delícias da alegria, sua figura convidava a isso, dava vontade de prová-la, de sentir a ternura de sua pele branca e delicada como a seda , sempre tinha vontade de entrar em Dulce.
Emilio nunca nos contou como era. Ele tinha autoridade para dizê-lo porque a possuíra muitas vezes, por muito tempo, muitas noites em que eu os ouvia
gemer do outro lado do quarto, gritar durante horas intermináveis, os prolongados orgasmos, eu no quarto ao lado, atiçando a recordação de minha única noite com ela, a noite estúpida em que caí em sua armadilha, uma só noite com Dulce morrendo de amor.
____ A que horas a trouxeram?___ perguntou a enfermeira, formulário na mão.
____ Não sei.
____ A proximadamente que horas?
____ Lá pelas quatro ___ respondi__ E agora, que horas serão?
A enefermeira virou-se para olhar o relógio de parede.
___ "quatro e meia" __ anotou.
O silêncio doa andares é cortado a todo instante por um grito. Presto muita atenção para saber se algum vem de Dulce. Nnenhum grito se repete, são os últimos ruídos dos que não verão a nova manhã. Nenhuma das vozes é dela; encho-me de esperança pensando que Dulce já saiu de tantas dessas, de histórias que nunca vivi.
Era ela quem me contava, como quem um filme de ação de que gostou, com a diferença de que ela era a protagonista, em carne e osso, de suas histórias sangrentas. Mas há uma grande diferença entre uma história contada e uma vivida, e , na minha, Dulce perdia. Não era a mesma coisa ouvi-la contar dos litros de sangue que tirara dos outros e vê-la no vhão secando por dentro.
____ Não sou quem você pensa que sou__ disse-me um dia antes de tudo.
____ Q uem é você então?
____ A história é longa , parceiro __ respondeu com olhos vidrados ___, mas você vai conhecê-la.
Mas o que me contou, o que vi e pude averiguar foi suficiente para entender que a vida não é o que fazem a gente pensar que é, mas que valia a pena vivê-la se nos garantissem que em algum momento cruzaríamos com mulheres xomo Dulce "Tijeras".
___ De onde saiu esse Tijeras?___ perguntei uma noite, com uma tequila na mão.
___De um sujeito que capei___ respondeu, olhando o copo que em seguida se esvaziou.
Fiquei sem vontade de perguntar mais, só desta vez, porque depois, a todo instante, a curiosidade me atacava e eu a bombardeva de perguntas; a umas respondia e as outras me dizia que deixassemos pra depois. Mas me respondeu todas, cada uma a seu tempo,às vezes até ligava à meia -noite e me dava uma resposta que tinha ficado pra trás. Respondeu a todas as minhas perguntas,à exceção de uma, embora eu repetisse muitas vezes.
____ Já se apaixonou, Dulce?
Ficava penssando, o olhar distante, e como resposta me dav um sorriso, o mais lindo de todos, que me deixava mudo, incapaz de qualquer outar interrogação.
___ Você pergunta muita bobagem mesmo __ reponsia Às vezes.
Do lugar pra onde a levaram entram e saem médicos e enfermeiras apressados, empurrando macas com outros moribundos ou conversando entre si em voz baixa e caras sérias. Entravam limpos e saíam com uniformes salpicados. Imagino qual é o sangue de Dulce; tinha de ser diferente dos demias, um sangue que corria a mil por hora, um sangue tão quente e tão cheio de veneno.
____ Deus e eu não nos damos muito bem___ disse um dia a respeito de Deus.
____ Não acredita nele?
____ Não ___ afirmou. __ Não acredito muito nos homens.
Uma particularidade de Dulce era que ria pouco. Não passava de um sorriso, raramente a ouvíamos dar uma gargalhada, ou qualquer tipo de ruído com que expressasse emoção. Mantinha-se impávida tanto quando ouvia uma piada quanto diante da situação mais grotesca, nem as carinhosas cócegas com que Emilio lhe tentava fazer rir tiravam-na do sério. Nem os beijos no umbigo,nem as unhas roçamdo, nem a lingua correndo sua pele. No máximo, dav um sorriso, desses que iluminam na escuridão.
____ Meus Deus, Dulce, quantos dentes você têm?
Outra coisa que nunca soubemso foi sua idade.
Quando a conhecemos, quando conheceu Emilio, tinha 18; eu a bi pela primeira ves poucos meses depois disso, dois ou três, e me disse que tinha 20; deposi a ouvimos dizer que tinha 22,25 depois novamente 18, e assim ia vivendo, trocando tanto de idade como de roupa, como de amantes.
___ Quantos anos você tem Dulce?
___ Quantos vocÊ me dá?
___ Uns 20.
___ É o que eu tenho.
A verdade é que aparentava todos os anos que mentia. Às vezes parecia uma menina, muito mais nova do que dizia, uma adolescente. Outras parecia muito mulher, de muito mais de 20 e tantos anos, com mais experiÊncia que todos nós. Mais fatal e mais mulher ela ficava quando fazia amor.
Uma vez a vi velha e decrépita, pelos dias de bebdeira e fumo, osso puro, seca, cansada como se carregasse todos os anos do mundo, encolhida. Levou Emilio nessa vigem. O pobre quase se perdeu. Envolveu-se tanto quanto ela, e enquanto não chegaram ao fundo não puderam sair. Neses dias havia matado um sujeito, dessa vez não a tesouradas, mas a bala, anadava armada e meio louca, paranóica, perseguida pela culpa, e Emilio se refugiou com ela na casinha da montanha, sem mais previsões de álcool e drogas.
____ O que aconteceu com vocês Emilio? ___ Foi a primiera coisa que puder perguntar.
_____ Ela maou um cara.___ disse ele.
_____ Mas quem ,meu Deus? ___ perguntei indignado.
_____ Não sei.___ respondeu Emilio.
_____ Eu também não ___ disse Dulce.
Soubemos que, antes de nos conhecer, tinha vários em sua lista, que enquanto esteve com a gente tinha "derrubado", como ela dizia, um ou outro, mas de três anos para cá, desde que a deixamos até esta noite, em que a encontrei agonizante, não sei se num desses beijos apaixonados "derrubara" mais alguém.
___ Você viu o cara que atirou nela?
___ Estava muito escuro.
___ E conseguiram pegá-lo? __ voltou a perguntar a enfermeira.
___ Não ___ respondi. ___ Mal a beijou, saiu correndo.
Cada vez que Dulce matava algiém , engordava.Ficava fechada em cas comendo, apavorada, ficava semanas sem sair. pedia doces, sobremesas, comia tudo o que passasse na sua frente. Às vezes a viam sair, mas logo voltava cheia de sacolas de comida; não falava com ninguém, mas, ao perceberem que ela ganhava peso, todos deduziam que Dulce havia se metido em encrenca.
Cerca de três ou quatro meses antes do crime , parava de comer e começava a emagrecer. Guardava as roupas de moletom nas quais escondia os quilos e voltava ao jeans apertado,ás miniblusas, aos ombros de fora. Voltava a ser tão linda quanto a imagem que qualquer um tem dela. 
