Fanfics Brasil - O Início - 9 anos Diário de Uma Ex-Criminosa

Fanfic: Diário de Uma Ex-Criminosa | Tema: Crossover - União de muitos temas numa só história


Capítulo: O Início - 9 anos

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Histórias usadas: Harry Potter, CSI: Las Vegas, Canavial de Paixões, X-Men.


 


Oi. Não, não ficou legal, vamos de novo. Olá, como vai?


Droga ficou pior ainda, como vai me responder? Viajei né?... Deixa pra lá. Agora vai.


Muito prazer me chamo Angel, ou melhor, prefiro que me chamem de Angel, não gosto muito do meu nome. Nossa... vocês não fazem idéia de como é difícil começar um diário, nunca tive muito talento com as palavras e quem vai ler o original, escrito a mão, vai perceber claramente isso. A minha amiga Amanda, costuma dizer que minha letra foi quem inspirou aquele ditado: “Deus escreve certo por linhas tortas”, só que para mim, ficaria assim: “Angel escreve torto, por linhas retas”.


Ok, ok, admito, a piada foi ruim, mas não podem me acusar de não tentar. A partir de hoje, vou contar um pouco das minhas aventuras para vocês, mas para isso vocês precisam me conhecer melhor, então vamos para as apresentações formais.


Começamos pelo básico, eu me chamo Angélica Kubschesk (pelo menos nessa primeira parte do diário), sou uma bruxa e tenho talento de sobra para a matemática, talento que eu devo a vó Nanda, e é exatamente por ela que vou começar essa história.


A vó Nanda foi uma mulher muito importante na minha vida. Quanto eu tinha 4 anos, uma menina me encontrou dormindo de baixo de um banco, na praça da cidade, e me levou até ela, que me acolheu e se responsabilizou por mim desde então.


Esta maravilhosa mulher cuidou de mim, me registrou, me ensinou a ler, escrever, fazer contas, ela me ensinou que nunca devemos baixar a cabeça para ninguém e nem desistir dos nossos sonhos, mesmo diante dos obstáculos, pois são eles que nos tornarão fortes.


Tudo ia bem, quando em uma noite chuvosa de outono, quando eu tinha 9 anos, tudo mudou. Vejam por quê:


- Angel querida, vem jantar se não a comida vai esfriar.


- To indo vó – gritei em resposta, do meu quarto.


A campainha tocou.


- Angel, atende a porta pra mim, por favor – pediu ela.


- Tá.- concordei, correndo até a porta e abrindo-a.


Ao abrir a porta, dei de cara com um homem careca, de terno preto, todo ensopado.


- A senhora Fernanda Kubschesk se encontra?


- Vó – gritei, sem desviar o olhar dele – tem um homem aqui querendo falar com a senhora.


- V-você? Angel, se afasta da porta! – disse ela assustada.


- Você vem comigo! – disse o homem, me segurando pelo braço.


- Me solta – falei, tentando fugir, mas ele me segurou com mais força.


- Solta ela! – gritou vó Nanda.


- A senhora deveria ter entregue ela semana passada, para o Conselho Tutelar.


- Ela é minha neta! – disse Nanda, apertando o peito e se apoiando em uma cadeira.


- A senhora está muito velha, mal pode cuidar de si mesma. Eu vou levar a Angélica.


- NÃO DEIXA VÓ! – gritei chorando, e cravando os dentes no braço dele – Eu não quero ir, ME SOLTA!


- Ai! Sua pestinha, você me mordeu!


- Eu mandei você me soltar! – rosnei.


- Aé? Então ta – ele me pegou no colo e me colocou no ombro – Você quer do jeito mais difícil, vai ser do jeito mais difícil.


- Me solta! – falei, socando as costas dele e tentando chutá-lo – Vó, me ajuda vó!


- Angel... – ela não conseguia caminhar, vi no seu rosto, a dor e o desespero.


Ele saiu pra chuva comigo no ombro e me colocou dentro do carro, trancando a porta.


- Por que você ta fazendo isso? Deixa eu ir embora, eu quero minha vó!


- Não posso – disse ele, ligando o carro – recebi ordens de te levar daqui.


- EU QUERO A MINHA AVÓ! – gritei, chutando o banco dele.


- Para sua bruxinha demoníaca!


- Não... me... xinga... – falei entre os dentes, meu corpo todo esquentando apresar do frio e das roupas encharcadas.


- Cala a boca demôniazinha.


Foi uma noite agitada, e a diretora do lugar me olhava como se eu tivesse algum tipo de doença contagiosa. Fui sedada porque não parava de gritar a plenos pulmões. O quarto era grande e possuía umas 15 camas e meninas de idade entre 6 e 14 anos. Não demorei muito para perceber que eu não era a única que não gostava da diretora. As outras meninas também olhavam feio para ela. Uma semana depois, eu consegui fugir daquele lugar e corri para casa. Tentei entrar pela porta da frente, mas estava trancada, então fiz a volta na casa e pulei a janela do meu quarto.


- Vó – chamei, correndo até a sala. Ela estava caída no chão, um copo de vidro estava quebrado em suas mãos e havia uma mancha de sangue seco no carpete – Vó, acorda! Acorda vozinha!


Eu chamei e tentei acordá-la durante 5 minutos, o desespero já havia me tomado por completo. Sem ter nenhum resultado, liguei para o Corpo de Bombeiros e destranquei a porta da frente. Logo eles chegaram.


- Foi você que nos ligou menina? – perguntou o chefe. Junto com ele haviam 2 homens e duas mulheres.


- Foi – respondi chorando – Eu não consigo acordar a minha vó...


Eles entraram no hall e caminharam até ela.


- Ela não ta respirando – disse um homem loiro, se abaixando e pegando o pulso dela.


Eles começaram a tirar uns equipamentos das mochilas e a falar rápido. Fiquei parada ali, chorando.


- Vem comigo – disse uma das bombeiras, oferecendo a mão esquerda para mim – vamos conversar...


Segurei a mão dela e fomos para a cozinha.


- Ela morreu – falei, chorando, e me sentando escorada na mesa.


- Qual o seu nome?


- Angélica, mas todo mundo me chama de Angel.


- Prazer Angel, eu sou a Tenente Presley. O que aconteceu com a sua avó? Você poderia me dizer?


- E-eu não sei...


- Onde você estava quando ela passou mal?


- Num reformatório...


- E seus pais?


- Eu não tenho.


- Como você saiu do reformatório?


- Fugi, e quando cheguei, a vó tava lá, no chão.


- Você ficou quanto tempo lá?


- Uma semana.


- Você sabe se sua avó tinha algum problema de saúde?


Levantei, abri uma gaveta do armário, peguei uma caixa cheia de remédios e larguei em cima da mesa. Devia ter pelo menos uns 20 remédios diferentes na caixa.


- Ela tomava esses remédios.


- Uau. Ok, ela era sua avó de verdade?


- Não.


- Você mora com ela a quanto tempo?


- 5 anos.


- Sabe se ela tinha filhos ou outro parente?


- A vó Nanda só tem a mim e eu a ela.


Um dos bombeiros que ficou atendendo a minha avó, entrou na cozinha e chamou a Tenente Presley.


- E ai? – cochichou ela.


- Ela deve ter morrido a uns 3 dias, não pudemos fazer nada. E a menina? – cochichou ele em resposta.


- Eu ouvi – respondi chorando. Me levantei de cabeça baixa e corri para o meu quarto, batendo a porta.


O ódio que eu tinha daquele homem careca, que me levou para longe da minha vó, e deixou ela morrer, não tinha tamanho. Naquele momento, eu jurei para mim mesma, que eu iria me vingar. Aquele homem matou a minha única família, e ele ia pagar caro por isso.


Aquela noite foi muito agitada, o corpo da vó Nanda foi levado para o Instituto Médico Legal, e de lá iria direto para o Cemitério Renascer, o único que aceitou enterrar o corpo da minha vó de graça, em consideração aos serviços prestados ao bairro, durante toda sua vida. Depois que todos foram embora e liberaram a sala, eu me sentei no sofá, peguei o controle remoto e liguei a televisão, não para assistir, e sim para descarregar minha raiva nos botões do controle. A Tenente Presley entrou na sala e sentou ao meu lado.


- Oi – disse ela.


- Oi – respondi secamente.


- Eu posso ficar aqui do seu lado?


- Você não tem que trabalhar?


- Não, vou ficar aqui, com você. Quer conversar?


- Pode ser.


- Qual a sua idade?


- Nove, e a sua? – perguntei.


- 35... – riu ela - Você estuda?


- Sim.


- Você está em que série?


- 4ª.


- Tenho uma filha que é um ano mais nova que você, e outra da sua idade.


- Você ama elas? – perguntei, olhando para a Tenente.


- Muito, mais que a minha própria vida...


- O que você faria se alguém matasse elas, ou deixasse elas morrerem?


- Eu faria tudo para ver essa pessoa presa, ou até mesmo morta... Por que a pergunta?


- Não, por nada.


- Você está com fome?


- Um pouco.


- Quer um sanduíche?


- Pode ser.


- Ótimo – disse ela, se levantando do sofá e indo para a cozinha, para fazer meu lanche.


- O que vai acontecer comigo? – perguntei, indo atrás dela.


- Bom... como você não tem família, é bem provável que te mandem para um orfanato...


- Quando?


- Amanhã...


Fiquei o resto da noite em silêncio. Comi o sanduíche, escovei os dentes e fui dormir. Quando me deitei e fechei os olhos, me veio a mente a imagem da vó Nanda, escorada na cadeira, a velha e enrugada mão direita, apertando o peito. Uma lágrima lhe escapando dos olhos.


- Não se preocupa vó – falei em tom de oração – Eles vão pagar por tudo que fizeram, eu juro.


Peguei logo no sono, sonhei com minha avó, que ela vinha e me dava um beijo na testa, me cobria e dizia: “Tudo vai melhorar, quando o sol nascer, nascerá também um dia melhor”.


- Acorda dorminhoca – chamou a Tenente Presley – Vem, vamos tomar café.


- Que horas são? – perguntei, esfregando os olhos.


- 7 horas. Um agente do Conselho Tutelar vai chegar em uma hora, é melhor você tomar um banho e comer alguma coisa. Já arrumei as suas coisas, e separei uma roupa e uma toalha, estão no banheiro. O que vai querer fazer primeiro?


- Vou pro banho.


Me levantei da cama e saí do quarto de cabeça baixa. Por mais que a Lúcia tentasse, ela não iria me fazer sorrir, não naquele dia. Quando entrei no banheiro e tranquei a porta, ouvi um celular tocando.


- Alô.


- Ana Lúcia, minha amiga...


- Oi Débora.


- Eu liguei para sua casa mas o Maurício disse que você tinha passado a noite fora, o que houve? Outro incêndio sério?


- Não minha amiga, dessa vez não teve fogo, mas mexeu muito comigo.


- Como assim? O que aconteceu?


- Eu passei a noite inteira cuidando de uma menininha de 9 anos. A avó teve um infarto. Me parte o coração amiga, essa menina não tem ninguém no mundo, ela foi adotada por essa senhora, que cuidava dela como neta. E ela é tão bonitinha Déb, é loirinha, de cabelos cacheados e olhos azuis. Se eu pudesse, eu adotava ela. Imagina o que vão fazer com ela num orfanato.


- Mas você não pode adotar mais nenhuma criança, você sabe do que estou falando né? Você mal consegue dar atenção para a Fêfa e a Glau.


- Eu sei, eu sei. A Fernanda e a Glaucia quase não falam comigo, quando chego em casa elas estão dormindo e, as vezes, chego a ficar 3 dias sem aparecer em casa.


- Deve ter alguém que vai querer ela, se é tão linda e querida quanto você diz...


- Pera ai, tive uma idéia!


- O que? Qual?


- Débora, você e o Fausto não estavam querendo adotar uma filha? Vocês não queriam dar uma irmã mais velha para a Clarinha?


- Não sei... A idéia não me parece tão ruim assim...


- Pensa bem, vai ser bom para a Clara, que vai ganhar uma irmã, para você e para o Fausto, que vão ganhar uma filha linda, e para ela, que vai ganhar uma família completa, pensa com carinho...


- Vou pensar sim, qual o nome dela?


- Angélica. Viu? Até o nome é meigo...


- Pode deixar – respondeu a mulher, rindo – Eu vou falar com o Fausto, e te retorno a ligação ainda hoje.


- Tá, vou esperar. Agora eu preciso desligar, a Angélica já está saindo do banho e eu preciso dar café pra ela. Beijos...


- Beijos...


Débora desligou o telefone e voltou a cuidar das flores. Ela tinha cabelos cacheados, era magra, por volta de 1,68 de altura, olhos esverdeados, com algumas sardas no corpo, que junto com os cabelo negros, criavam uma visão quase divina. Aquela mulher possuía uma beleza natural e encantadora.


- Quem era a essa hora? – perguntou um homem, se aproximando dela.


- Eu liguei para a Ana.


- Nossa... – comentou ele, parando e olhando Débora com um sorriso – Para agora.


- Por quê? – perguntou ela, sorrindo e parando com o vaso de flores nas mãos.


- Porque eu quero tirar uma foto dessa imagem linda, a mulher mais linda do mundo, entre as flores, cuidado para não se perder, depois vai ser difícil de separá-las.


- Te amo – riu ela.


Eles se beijaram com carinho.


- Obrigado por ser minha esposa...


- Fausto... Lembra que nós conversamos sobre ter outro filho? Pois então... Apareceu uma oportunidade...


- Mas isso é maravilhoso, você está grávida?!


- Não, eu estava pensando em adotar uma menininha, acho que seria bom para a Clarinha, ter uma irmã mais velha...


- Eu vou ter um irmãozinho? – perguntou uma menina loira, de cabelos lisos, lindinha, de vestido-macacão jeans, sorrindo.


- Vai depender de você e do seu pai.


- Você ta grávida mamãe?


- Não, eu quero adotar uma menininha sem família.


- Mas e a diferença de idade? – perguntou Fausto, pegando Clara no colo.


- A Angélica tem 9 anos, é só dois anos mais velha que a Clara.


- Não sei se é uma boa idéia...


- Deixa pai... – disse Clara, enchendo o rosto de Fausto, de beijos – Eu quero muito uma irmã...


- É uma criança que precisa de muito amor e carinho... – comentou Débora.


Ele olhou para as duas, que sorriam com cara de pidonas e olhar meigo.


- Tá bom! Vocês venceram, vamos adotar essa menina.


- Eba! – gritou Clara.


- Ataque de beijos e cócegas! – gritou Débora.


Enquanto a bela família se divertia, eu me encontrava com a Conselheira.


- Te achei pestinha! – disse a mulher – Lembra de mim?


- A diretora do reformatório... – respondi de cabeça baixa.


- Essa fuga vai te custar muito caro, você sabe disso, não sabe?


- Sei sim senhora. – respondi, ainda encarando meus tênis.


Me abaixei para pegar minhas coisas.


- Não precisa disso – falou a mulher, secamente.


- Mas são as roupas dela – interveio Ana.


- Pegue apenas as roupas íntimas e meias, usará o uniforme como todas as outras crianças, e não discuta – falou a mulher.


Peguei a mochila menor e soltei as outras.


- Nós nos veremos em breve, eu juro, palavra de Bombeira – falou Ana, se agachando e me dando um abraço. Não retribuí o gesto e permaneci com os braços ao lado do corpo, completamente sem reação ou emoção.


- Anda logo, tenho muito ainda a fazer – falou a mulher, me arrastando pelo pulso até o carro e me empurrando para o banco de trás, batendo a porta.


- Qual o seu nome? – perguntei, botando o cinto de segurança.


- Maria Helena, agora cale-se.


- Sim senhora – concordei e olhei pela janela, respirando fundo.


Foram mais ou menos 15 minutos no mais absoluto silêncio até chegarmos ao reformatório. Quando chegamos, eu tirei o cinto e saí di carro, no mesmo instante a mulher segurou novamente meu braço com força demais e me arrastou para dentro da instituição.


- Ta ai a demônia que tinha fugido, tava na casa da avó, vê se prende ela melhor deste vez, sua imprestável, não podemos correr riscos.


- Sim senhora, jogarei ela com os outros animais – respondeu a baixinha gorda, abrindo o armário – Vem aqui piolhenta, qual o seu número?


- 11 – respondi baixinho.


- Só tenho 13 – ela pegou um conjunto amarelo escuro e empurrou para meus braços – entra naquela sala e veste isso, pode por sua roupa na mochila.


Me troquei rápido, coloquei minha roupa na mochila e dobrei as barras das calças, a blusa de manga curta pareceu de manga cumprida, aquilo possivelmente era 4 números maiores que o meu. Saí da sala e entreguei minha mochila para a mulher.


- Pronto senhora – falei.


- Me passa os óculos – falou ela, estendendo a mão.


- Eu não enxergo nada sem eles – falei.


- Então fica, agora entra – falou ela, destrancando uma grade e me empurrando para o corredor.


Nós passamos pelo portão e ela passou o cadeado novamente e começou a me empurrar com um bastão de basebol. De um lado do corredor haviam janelas próximas ao teto, pequenas e com grades, e do outro, portas em um intervalo de mais ou menos 5 metros. No final do corredor havia uma porta de ferro, enferrujada com uma porta de grade antes, com alguns cadeados. Quando nos aproximamos mais, consegui ler a placa na porta: “13 – A”. Boa coisa não poderia ser, o 13 sempre foi famoso por ser sinal de má-sorte. Ela destrancou a porta de ferro a direita dela e a empurrou.


- Onde estou? – perguntei.


- No seu pior pesadelo – riu ela, me empurrando para dentro da sala e entrando logo atrás, batendo a porta e chaveando-a – Senta ai, levanta a manda e estica o braço esquerdo.


Fiz o que ela mandou em silêncio, enquanto ela abria um pequeno fogão a lenha, acendia um cigarro e colocava uma placa com números e letras, devidamente organizados e mergulhados em tinta, no fogo. Enquanto ela esperava, baforava o cigarro na minha cara.


- O que a senhora vai fazer? – perguntei olhando-a enquanto ela consultava o relógio e colocava as luvas.


- Você vai descobrir – riu ela – e não vai gostar nadinha, aberração.


Ela segurou meu braço esquerdo com muita força e com a mão livre, pegou a placa do fogo e colocou cuidadosamente no meu pulso, apertando. Gritei com todas as minhas forças, a dor era insuportável e ela me apertou mais, me chutando e segurando a placa firme no meu pulso enquanto minha pele queimava com a lâmina.


- SOLTA! – gritei chorando – por favor para...


- Cala a boca sua peste! – resmungou ela, me chutando com mais força.


- TÁ DOENDO MUITO, POR FAVOR, NÃO FAZ ISSO EU IMPLORO, POR FAVOR PARA! – gritei o mais forte que consegui.


Ela tirou a placa do meu pulso, largou de volta na estante e abriu um frigobar, pegou uma sacola de supermercado com 4 pedras de gelo e me entregou.


- Pões no pulso para não inflamar, não quero ver ninguém doente, sai caro ter que matar vocês sem deixar rastros, e seca essas lágrimas.


Respirei fundo, sequei os olhos nas mangas e coloquei o gelo no pulso. Levantei a sacola e li o que foi gravado em mim: “BQ – 31-08-1988 – I/B”. Para mim este código não possuía absolutamente nenhum sentido.


- Bem vinda a sua nova casa – disse ela, abrindo a porta 13-A e me empurrando para dentro, voltando a trancar a sala por fora – Divirta-se piolhenta.


A sala 13 parecia muito diferente das outras que eu havia estado, tinha mais ou menos 50 m² e estava cheia de crianças de várias idades, em torno de 20 crianças com olhares tristes e alguns ferimentos, além das roupas como as minhas, mas extremamente sujas. Haviam nomes nas paredes, muitos nomes. Comecei a andar lentamente e passar os dedos por cima de alguns, ainda engolindo os soluços teimosos de choro.


- São vítimas – disse uma garota, se levantando e indo até mim – crianças como nós que ficaram presas aqui, durante dias, meses, e até anos. Muitas delas não aguentaram a tortura e morreram aqui dentro desta sala mesmo. Essas paredes são como uma homenagem e um grito de socorro por tudo que acontece aqui dentro. Prazer, Amanda Reynaldo. Qual seu nome?


- Angel, Angel Kubschesk.


Ela apertou minha mão direita e arregalou os olhos para o meu braço esquerdo, que estava começando a inchar.


- Nossa, era você? Ouvimos os gritos mas achamos que tivesse sido um dos mais velhos que estão na 13-B. Posso ver seu braço? Pelas asas de Pégasus! Isso tá horrível, e o gelo esta queimando mais sua pele. Vem comigo, eu cuido de você.


Ela me levou até um pequeno banheiro de pedra no fundo da sala e colocou meu braço de baixo da água. Na mesma hora eu senti o alivio e uma ardência muito grande. Amanda se abaixou e tirou uma pedra do chão, pegando um pequeno vidro que estava escondido dentro do buraco. Dentro do vidro havia um liquido viscoso, verde, levemente avermelhado.


- O que é isso? – perguntei quando ela levantou e destampou a garrafinha.


- Remédio para queimaduras, uma mistura de flores e ervas, não me olha assim, sei que parece nojento, mas funciona, você não é a primeira a aparecer aqui com queimaduras, e não será a última, olha... – ela mostrou o próprio pulso esquerdo, com a inscrição “B – 01-08-1988 – I/B”.


- O que significa este código? – perguntei, enquanto ela colocava uma gota do liquido no meu pulso, pegava uma blusa velha, jogada em um cesto improvisado, e arrancava a manga, umedecendo e amarrando em meu pulso - Ai... ta doendo...


- Desculpe – disse ela, sem parar o que fazia, dando um segundo nó mais forte – Olha, não tenho certeza, mas pelo que entendi, o B é de bruxa, os números é a data de nascimento e a letra no final é o local onde nasceu e onde foi criada, nasci na Inglaterra, aprendi a falar português aqui dentro. Pronto, agora pode por o gelo por cima do pano e logo vai melhorar a dor.


- Obrigada, esta aqui a quanto tempo?


- Acho que uns 4 anos.


- E por que não foge?


- Você esta louca?


- Não. Eu já fugi, fiquei uma semana presa e me mandei.


- Isso porque você ficou na cela primária, sem segurança, quando ainda estão nos identificando e catalogando. Aqui dentro é diferente, nós não saímos daqui, recebemos a comida por um buraco debaixo da porta, dormimos no chão puro, durante o inverno eles jogam alguns cobertores. Se alguém tenta fugir, e consegue passar vivo, pelos cães, é torturado por 20 minutos e jogada aqui dentro novamente. Tá vendo aquele garoto ali?


Ela apontou para um menino com a boca sangrando, o olho esquerdo roxo, a manga direita da blusa estava rasgada em uma parte e a esquerda ensanguentada. Ele estava sentado no fundo da sala.


- O que tem?


- Tentou fugir, e olha o estado dele. Acho que não dura muito tempo... tem 13 anos, sobreviveu ao ataque dos cães, mas logo depois a Maria Helena conseguiu pegar ele e pôs ele na geladeira, por uma semana. O nome dele é Gabriel.


- O que é “geladeira”?


- É a câmara de tortura. Apelidamos ela assim por causa da frieza das coisas que fazem com os internos lá dentro. Por que veio parar aqui?


- A minha vó adotiva morreu.


- Mas você deveria ser mandada para um orfanato.


- Não sei... talvez, mas e você? Por que veio parar aqui?


- Eu morava com uma mulher que cuidava de mim em troca de uma grana, que o governo dava pra ela. Daí um dia veio um homem de terno preto, e me levou de lá. Fiquei 3 dias na cela primária, e depois me trouxeram para cá, e desde então estou aqui...


- Esse homem, por acaso, não era alto, sério e tinha um carro preto com cheiro de novo?


- Isso mesmo, por quê? Conhece ele?


- É, conheço.


- Sabe... acho que seremos amigas, gostei de você.


- Também achei você legal.


- Não chora... – disse ela, passando a mão no meu rosto e secando algumas lágrimas.


- Meu braço tá doendo muito.


Passei o resto do dia com a Amanda. Ela era engraçada e me explicou algumas regras de convivência da cela 13-A. No fundo da cela, tinha uma porta que dava para uma jaula de 16 m², totalmente aberta e toda gradeada, com 3 metros de altura e sem proteção em cima, e foi lá que eu e Amanda ficamos, debaixo do sol. Perto do meio dia, quando as viandas de comida chegaram, uma menina de cabelos pretos, veio até nós, trazendo 4 viandas.


- Oi meninas – disse ela, se agachando na nossa frente.


- Oi Latifa – disse Amanda.


- Amandinha querida, eu trouxe o almoço de vocês. Sabe... eu tava pensando, o Gabi ta precisando de cuidados...


- Dá meu prato para ele, eu não to com fome – falei.


- Obrigada Angel, mas não precisa.


- Como sabe o meu nome?


- As notícias voam por aqui. Eu tava pensando em pegar um pouco de comida de cada uma de nós, e acrescentar no prato dele, sem que ele saiba.


- Por quê? – perguntei.


- O Gabriel é muito orgulhoso – respondeu Amanda.


- É, e ai? O que me dizem? Vão ajudar? – perguntou a menina.


- Claro – respondeu Amanda, abrindo o prato dela.


- Pode pegar o quanto quiser – respondi.


Latifa arrumou o prato, fechou-o e foi até Gabriel. Fiquei observando ela parar diante dele, se abaixar e entregar o almoço.


- São irmãos – contou Amanda, depois de comer uma garfada – Arroz, feijão, uma folha de alface e meia beterraba.


- O que você disse?


- A comida, bem melhor do que ontem, tem arroz...


- Não, antes...


- Há! Latifa e Gabriel, são irmãos, ela é um ano mais nova que ele.


- São órfãos?


- Não, foram sequestrados. Gabriel é estranho, vive gritando que Voldemort ainda vive e vai tirá-lo daqui, e que todos vão pagar por isso... O português dele é péssimo... você fala inglês?


- Não que eu saiba... – respondi - Quem é Voldemort?


- Não faço ideia. Latifa as vezes parece ter medo dele, são muito diferentes. Ela é boa e ele é... bom, tele tem uma serpente tatuada no braço esquerdo e vive arranjando confusão. As vezes ele para no meio da cela interna e grita: “bruxos são superiores, todos os trouxas deverão morrer!”. E diz também que ele é um sague-puro, e que todos devem respeitá-lo, irrita sabe...


- Trouxa... – repeti baixinho, pensando.


- O que disse?


- Não, nada.


Esperei Latifa sair de perto de Gabriel, e Amanda se distrair conversando com outra menina, e fui até ele.


- Também veio me dar lição de moral? – resmungou ele.


- Não, eu vim conversar.


- O que uma criança teria para conversar com um marginal como eu?


- Muito, se puder me dizer o que sabe.


- O que quer dizer com isso? – perguntou, levantando a cabeça e me olhando.


- O que é ser um sangue-puro?


- Quer mesmo saber?


- Sim – respondi, me sentando ao lado dele e pondo as pernas próximas ao peito.


- Sangue-puro é aquele bruxo puro, que não tem sangue de trouxa, normalmente são da realeza...


- O que são trouxas?


- Trouxas são todos aqueles que não tem magia.


- E Voldemort? Quem é Voldemort?


- Você é curiosa, isso pode ser ruim.


- Esse tal de Voldemort, pode me ajudar?


- Depende, que tipo de ajuda precisa?


- Quero me vingar de todos que me maltrataram e do homem que matou minha vó...


Ele deu um sorriso, se levantou, abriu os braços e gritou:


- Ó Milorde! Vistes o quão grandioso és? Sei que podes me sentir e me ouvir, e quero que saibas que aqui, nasce uma nova e fiel seguidora!


- Angel Kubschesk – completei.


- Sua nova serva – concluiu ele.


Um estrondo na porta indicava que a carcereira também havia ouvido o grito, o que parecia um mal sinal. Ela arrastou a porta e entrou.


- É você de novo seu demônio. E agora arranjou uma cúmplice!


Ela caminhou até nós, enquanto os outros faziam o possível para se manter bem longe dela. Ela se aproximou de mim e de Gabriel e deu um choque que no estômago dele com um aparelho, segurou os meus cabelos com força e soltou uma baforada de cigarro na minha cara.


- Me solta – disse, me irritando.


- Agora eu vou ensinar para vocês dois, o que é disciplina. Depois de uma sessão de Ensino, tenho certeza que estarão bem calminhos...


- Você me da nojo! – respondi, cuspindo no rosto dela.


Ela me deu um choque no estômago e nos arrastou para fora da cela. Quando ela foi fechar a porta, Gabriel deu um empurrão nela.


- FOGE! – gritou ele, mas nem precisou por que me larguei correndo em direção ao final do corredor, quando passei pelo portão menor e achei que conseguiria sair dali, apareceu uma menina de uns 19 anos, e me deu com o taco de basebol na barriga.


- Acertei a bruxa maldita! – gargalhou ela.


- Muito bem filha! – comemorou a carcereira – Agora trás ela aqui!


A garota me arrastou até a mulher, eu mal conseguia respirar de tanta dor.


- O que eu faço com ela agora, mãe?


- Vamos levar esses dois para a sala de ensino.


- Posso ajudar?


- Claro, amarra as mãos dela na barra de ferro, de costas para nós.


A mulher destrancou uma porta e a garota entrou me arrastando. Ela me amarrou de frente para a parede. A dor estava me deixando tonta, então fechei os olhos, mas pude sentir que Gabriel havia sido amarrado no meu lado esquerdo.


- Mãe, eu acho que nunca vi essa garota aqui.


- Ela chegou hoje de manhã. Agora vocês vão aprender a respeitar os mais velhos...


A mulher gorda levantou uma chicote e bateu com força e vontade. Apanhamos de vara e chicote por uns 10 minutos, depois ela nos chutaram algumas vezes e a velha gorda me queimou com o cigarro, no braço. As duas nos soltaram, saíram da sala rindo e nos deixaram trancados. Me sentei num canto, coloquei as pernas junto do corpo e abaixei a cabeça, chorando. Gabriel sentou ao meu lado.


- Eu posso te ajudar... posso te deixar mais forte... – disse ele, me olhando.


- Como? – perguntei aos soluços.


Ele levantou manga do braço esquerdo e mostrou a marca, ele também tinha um código no braço: BQ-20-11-1984-I/USA.


- Sabe o que significa? – perguntou ele.


- Não faço ideia – respondi, tirando o pano do braço e deixando meu código a mostra.


- O B significa Bruxo, o Q é de Quimera, ou seja, mutante, os números são a data de nascimento e as letras são I, o lugar de nascimento, e USA o de criação, no seu caso, Brasil. Ou seja – ele leu no meu braço – Você é uma Bruxa Quimera nascida no dia 31 de outubro de 1988, na Inglaterra, mas foi criada no Brasil.


- O que é um mutante?


- Mutantes são pessoas com dons especiais, que tem os genes modificados.


- Que tipo de mutante você é?


- Ele abriu a boca e os caninos dele começaram a crescer, como um vampiro. Ele me olhou nos olhos e sorriu.


- Tenho os genes de morcego, sou o garoto vampiro. Mas, me diz uma coisa, quantos anos você tem? – ele perguntou, afastando o meu cabelo e me olhando nos olhos através dos óculos.


- 9 anos...


- Tão nova... mas tão linda...


- Você se alimenta de sangue?


- Também, mas me conta, que tipo de mutação você tem?


- Não sei se isso pode ser considerado uma mutação mas... sou bem inteligente, uma inteligência fora do normal para alguém da minha idade...


- Fala a verdade, tá com medo?


- Muito... to desesperada... – deixei uma lágrima escapar.


- Eu vou te proteger – disse ele, chegando mais perto e passando o braço esquerdo por cima do meu ombro – vou cuidar de você e um dia você vai ser minha, quando for um pouco mais velha...


- Por que ta falando assim? – perguntei me encolhendo contra a parede.


- Porque você é muito linda. Desde que entrou na cela, hoje de manhã, eu não consegui parar de te olhar... fica calma, na vou tocar em você até ficar mais velha, só quero te proteger, cuidar de você até que seja forte o suficiente para seguir sozinha.


- Não pretendo ficar aqui tanto tempo...


- Nem eu, mas se eu sair antes, volto para te buscar.


Ele me deu um beijo no rosto e eu deitei a cabeça no peito dele. Ao mesmo tempo que eu sentia medo daquele lugar, eu me sentia segura com ele.


- Quanto tempo nós vamos ficar presos aqui? – perguntei.


- Da última vez, eu fiquei uma semana.


Olhei ele nos olhos e vi que havia encontrado alguém em quem me apoiar ali. Ele me abraçou, me esquentando um pouco. As mulheres entraram novamente na sala com outros objetos para nos machucar. Gabriel se colocou na minha frente evitando que eu levasse uma paulada. A maldade daquelas duas mulheres era inacreditável, elas nos bateram até Gabriel cair inconsciente, já que havia recebido a maioria das pancadas por mim. Antes de saírem elas amarraram um elástico no meu pescoço, desses de prender dinheiro. Esperei elas cadearem a porta por fora e os passos se afastarem, então chamei Gabriel.


- Socorro – tentei gritar, mas estava quase sem voz.


Comecei a sacudi-lo e ele acordou assustado.


- Angel? O que houve? – perguntou ele, se ajoelhando. Apontei para o meu pescoço, nervosa, as lágrimas correndo pelo meu rosto – Calma, calma...


Ele abriu a boca e os caninos cresceram.


- Não! – falei com a voz rouca e fraca, me afastando, apavorada – Não chega perto de mim...


- Calma, por favor, eu não vou te machucar... mas se você não tirar esse elástico, você vai morrer! Eu vou arrebentar ele com os dentes, só isso, eu juro...


Fiquei um pouco receosa, mas deixei. Ele arrebentou o elástico com os dentes e acabou me arranhando o pescoço.


- Ai... – reclamei, colocando a mão em cima do machucado.


- Desculpa... – pediu ele, limpando o sangue dos lábios com a língua – foi sem querer, relaxa, por hoje acabou...


- Acabou o que?


- As torturas, acabaram por hoje...


Me deitei no chão e olhei para o teto de pedra.


- Como pode ter tanta certeza que elas acabaram por hoje?


- Eu passo mais tempo aqui que a maioria dos garotos. Elas fazem apenas duas sessões de ensino, como a diretora daqui gosta de chamar, por castigo. Agora nós vamos passar pelo menos mais dois dias presos aqui, mas sem as torturas.


- Que tipo de castigo e tortura elas vão usar agora?


- A fome. Dois pães velhos por dia, e só.


- Mas... tem uma coisa que eu não entendo.


- O que?


- Por que elas fazem isso? Se é que tem algum motivo. O que fizemos de errado?


- Nascemos diferentes. Fazemos coisas que esse povo jamais sequer sonharia em fazer.


Fechei os olhos e deixei o sono me dominar. Acordei muito tempo depois, com a cabeça no braço de Gabriel, estômago doendo de tanta fome. Me sentei e olhei para ele, os cortes e machucados no rosto dele estavam cada vez piores, apenas um corte no canto da boca parecia ter melhorado de forma surpreendente. Ele estava com os braços abertos, olhando fixamente para o teto.


- Você tá bem? – perguntei, me aproximando e olhando as pupilas dele que estavam estranhamente dilatadas.


- O seu sangue... – disse ele, sonhadoramente.


- O que tem?


- É maravilhoso e sagrado...


- O que quer dizer com isso?


- Seu sangue cura, Angel. Aquela pequena gota que eu peguei ontem, me fortaleceu de forma surpreendente. Deixa eu beber um pouco do seu sangue... Por favor, bem pouco, daí você come os meus pães também.


- Não, você vai me matar!


- Não! De jeito nenhum, eu jamais te mataria, por que eu ainda quero ter você de corpo, daqui a algum tempo. Você é minha, eu vou te proteger o seu sangue vai me ajudar – ele se ajoelhou e segurou minhas mãos – ele vai me fortalecer... E eu preciso disso...


- Não sei... Gabriel, eu tenho medo...


- Olha... Deixa eu beber um pouco do seu sangue e passar um pouco do meu fluído vampírico pra você, você vai se sentir bem, seus instintos vão melhorar, seu reflexo será quase perfeito, e até sua visão ficará melhor...


- Não sei...


- Eu imploro...


Me rendi e deixei ele beber um pouco do meu sangue. Na hora me senti fraca, mas depois de comer os pães, eu melhorei um pouco. O tempo parecia não passar naquela pequena sala. Algum tempo depois começou a jorrar água de dois pequenos chuveirinhos no teto.


- Droga, o que é isso? – perguntei, me levantando.


- É a última parte do castigo. Eles jogam água fria e depois refrigeram essa sala. A intenção é nos enfraquecer e ter um princípio de hipotermia.


Depois de uns 5 minutos de água fria veio a refrigeração, como Gabriel havia falado. Eu batia queixo descontroladamente e tremia tanto que chegava a me bater na parede. 15 minutos depois, a mulher destrancou a porta sorrindo e nos arrastou até a cela. Devia ser por volta das 11 horas e o sol estava forte. Quando ouvi o trinco fechar, corri para a sala aberta e me sentei de olhos fechados, escorada na grade, e Gabriel se deitou no chão quente.


- Angel, você tá bem? – perguntou Amanda, sentando ao meu lado.


- Sim – respondi secamente.


Durante toda a semana, eu fiquei quieta, na minha, passava o dia inteiro na cela externa. A comida estava cada vez mais nojenta e repulsiva, e eu estava pegando uma gripe forte, mas isso foi ignorado por quem nos mantinha ali. Tive mais duas sessões de castigo na geladeira com Gabriel, e fui obrigada a beber um pouco do sangue dele quando nos deixaram 2 dias sem comer.


Os meus planos de fuga foram todos frustrados, e no final de duas semanas eu parecia um zumbi, pálida e quase sem forças. Na manhã de terça-feira, quando completou duas semanas e meia da minha chegada naquela cela, a carcereira destrancou a porta e eu corri para trás do Gabriel.


- O que nós fizemos agora? – perguntou ele, quando ela nos olhou e deu um sorriso torto.


- Eu vim buscar a 4 olhos loira – rosnou ela, indo até nós e tentando me pegar.


- A Angel não vai a lugar nenhum.


- Vai sim – respondeu ela, debochada, dando um choque no estômago dele e me arrastando para fora da cela.


Eu tava muito fraca e mal conseguia caminhar, ela me levou para a sala depois do corredor e me entregou minha mochila.


- O que houve? – perguntei.


- Entra ali e veste sua roupa, rápido.


- Sim, senhora.


Fiz o que ela mandou, mas como quase não tinha forças, eu vesti a minha roupa por cima do uniforme, e coloquei a mochila nas costas, saindo da sala. A mulher me levou até uma outra sala, onde haviam duas mulheres sentadas de costas para a porta e a diretora do reformatório, Maria Helena, estava de frente para elas, sorrindo falsamente.


- Pronto, senhora – avisou a carcereira – Aqui está a menina.


A mulher fardada se levantou e foi até mim, e a outra se virou na cadeira, sorrindo. Ela estava com um belo vestido azul claro, e tinha cabelos pretos, curtos e cacheados, a pele branca com algumas sardas.


- Oi Angel – disse a mulher com farda, se abaixando na minha frente – Lembra de mim?


- Tenente Presley, do Corpo de Bombeiros... – respondi.


- Lembra que te prometi que nos veríamos novamente? – perguntou ela, e eu concordei com a cabeça – Então... eu vim, e você vai embora daqui, e então, esta feliz?


Concordei com a cabeça, a bela mulher de cabelos pretos levantou sorrindo a foi até nós. Ana ficou de pé e segurou minha mão direita.


- Oi... – cumprimentou ela – Eu sou a Débora, amiga da Tenente Presley, e você vai vir morar comigo, tudo bem?


Não respondi.


- Ela está surpresa, só isso – disse Maria Helena, se levantando nervosa – Bom, senhora Feberman, todos os documentos já foram assinados, acho que a senhora já pode ir, desculpe, mas é que tenho muitos outros compromissos...


- Sim, claro, muito obrigada por tudo, Sra. Diretora, foi um prazer conhecê-la.


Quando saí daquela sala e fomos para o carro, eu senti uma fraqueza muito forte, minha visão escureceu e eu desmaiei.


- Angélica! – disse Ana, me pegando rápido no colo e me colocando dentro do carro – Vamos levar ela ao hospital.


- Eu vou atrás, com ela – respondeu Débora, entrando e colocando minha cabeça sob as pernas dela, acariciando meus cabelos.


Ana foi o mais rápido que pode, até o hospital, estacionando na porta, me pegando no colo e entrando rápido, Débora estava logo atrás.


- Ei! A senhora não pode estacionar ali – advertiu um enfermeiro.


- Tenente Presley, Corpo de Bombeiros, e isso aqui é uma emergência! – disse ela, me segurando com mais força.


O enfermeiro olhou para a farda dela e depois para mim, inconsciente no colo dela.


- Venham comigo.


Me colocaram numa maca e me levaram para dentro do hospital, deixando Ana e Débora na sala de espera.


- Eu vou estacionar o carro direito, já volto.


- Já aproveita e trás a minha bolsa, Ana. Eu vou ficar aqui. Me empresta o seu celular, por favor...


- Toma.


Ela entregou o celular para Débora e foi para a rua, para estacionar o carro. Débora viu que horas eram e discou nervosa.


- Alô, Fausto?


-  Débora? O que houve? Por que estão demorando tanto?


- Nós estamos no hospital...


- O que aconteceu, você esta bem?


- Eu to, mas a Angélica não...


- O que ela tem?


- Eu... ainda não sei, desmaiou quando estávamos entrando no carro. Assim que ela for liberada, nós vamos pra casa, agora eu preciso desligar, o médico tá voltando, beijo te amo.


Ela desligou e Ana se aproximou dela, lhe entregando a bolsa. Elas ficaram mais 5 minutos na sala de espera, até que o médico se aproximou.


- Quem é a responsável pela menina? – perguntou o médico.


- Eu, sou a... mãe dela – respondeu a morena – Débora Feberman, e essa é Ana Presley...


- Me chamo Rodrigo, e vou cuidar do caso dela – respondeu o homem, apertando a mão de Débora e depois de Ana – me acompanhem, por gentileza.


Elas entraram na sala onde eu estava e eu me sentei na maca, ajeitando os óculos.


- Como você está garotinha? – perguntou a militar.


Ela tentou se aproximar, mas eu me esquivei em silêncio, séria.


- O-O que ela tem? – perguntou Débora, preocupada.


- Eu posso falar com a senhora lá fora?


- Claro...


Os dois saíram e eu pude ouvir mesmo assim a conversa.


- Preciso que seja muito honesta comigo, essa menina esta completamente traumatizada, em estado de choque... Sra. Débora, a senhora bate na sua filha?


- O que? Não! Nunca! Eu... eu acabei de adotá-la, fui buscar ela hoje...


- Veja isso... – os dois entraram novamente na sala e o médico se aproximou de mim e levantou a manga do meu casaco, mostrando meu pulso machucado e as queimaduras – Esses números e letras, foram gravados com tinta e fogo... Ela foi torturada...


- Meu Deus, que horror... E o que esses números e letras significam?


- Não sei, mas alguma coisa me diz que ela sabe, mas não vai falar... – ele levantou minha blusa e mostrou minhas costas – Isso, são sinais de tortura, e ela teve princípio de hipotermia e insolação, raríssimo os dois juntos, por isso o desmaio.


- Licença – disse uma mulher loira, de uns 43 anos, cabelos nos ombros, lisos, toda de preto, bem arrumada e carregando uma maleta, um homem entrou depois dela – Sou Catherine Willows, do CSI, Instituto de Criminalística...


- No que posso ajudá-los?


- Sou Warrick Brown – o homem era negro, alto, e tinha cabelo black – Recebemos uma ligação, disseram que uma menina de 9 anos deu entrada com sinais de tortura e inconsciente...


- Sim, mas ela esta viva – respondeu o médico.


- A senhora é a mãe? – perguntou o homem.


- Sim, Débora, e essa é a Tenente Presley, foi quem trouxe a Angélica para cá...


- Será que eu poderia conversar com as senhoras, sobre a menina? – perguntou Catherine.


- Claro – respondeu Débora – Vamos sim... Já voltamos...


Débora se aproximou e tocou meu braço de leve, mas me esquivei com medo e ela me olhou com tristeza e preocupação. O grupo saiu da sala, me deixando sozinha, eu estava fraca de mais para andar, e assustada demais para falar, então fiquei em silêncio, com a mesma cara de nada. Longe dos meus ouvidos, os policiais explicaram o por quê da visita.


- Bom, Sra. Débora, no último mês, 4 crianças com idade entre 7 e 10 anos, e 3 adolescentes entre 12 e 15 anos, apareceram mortos, com diversos machucados pelo corpo inteiro... – explicou o policial Warrick.


- Machucados iguais aos identificados na sua filha – continuou a mulher – Ela pode ser uma sobrevivente, da pessoa que está fazendo isso, se nos deixar ter uma conversa com ela, talvez possamos encontrar o assassino, ou assassinos...


- Por mim tudo bem, só que tem um problema, eu peguei a Angélica hoje, e ela se nega a falar qualquer coisa... Mas posso dar o endereço de onde a buscamos...


- Vocês vão ter que me dar licença, mas eu preciso ir, acabei de receber um chamado – avisou Ana, consultando o celular – Fica com o carro, estão passando por aqui, mais tarde me liga dizendo como a pequena está...


- Tá bom, obrigada por tudo...


Eles tornaram a entrar e a mulher se aproximou de mim, colocando luvas de borracha.


- Olá, tudo bem com você? Qual seu nome? – perguntou a policial, me olhando, mas não respondi – Acho que não quer conversar né? Pode tirar o casaco pra mim?


Fiz um gesto afirmativo com a cabeça, e tirei o casaco largando ao meu lado na maca.


- Deixa que eu pego – disse Débora, pegando o casaco e nos observando.


- Ótimo, fizemos contato. Er... será que vocês poderiam nos deixar sozinhas?


- Ah, claro, eu espero lá fora – disse Débora, indo para a sala de espera.


- Se for útil, ela chegou com outra roupa por baixo desta, eu coloquei num pacote, só toquei nelas de luva, achei prudente guardar – avisou o médico.


- Ótimo – respondeu Warrick.


- Me acompanhe, eu deixei na minha sala, ia chamar o conselho tutelar...


Os dois saíram e a enfermeira foi logo atrás.


- Ok, estamos sozinhas, o que acha de falar agora? – perguntou ela, me observando, e eu fiz um gesto negativo com a cabeça – Beleza, então vamos combinar uma coisa: eu preciso te examinar, daí eu faço umas perguntas e você responde “sim” ou “não” com a cabeça, será que pode ser?


Ela se aproximou e tentou pegar meu braço. Me esquivei e mostrei os dentes, na hora os meus caninos cresceram e ela parou e ficou me olhando.


- Ninguém vai me machucar de novo... – rosnei.


- Você falou... – disse ela, surpresa, observando meus caninos e pegando o celular.


“- Instituto Xavier para Jovens Super Dotados, com quem eu falo?” – disse alguém do outro lado da linha.


- Catherine Willows – respondeu a policial – Eu preciso falar com o professor Xavier, código X...


“- Só um momento, por gentileza... – a linha ficou muda por uns instantes e então um homem atendeu – Agente Willows, é o Charles...”


- Professor, estou com um código X...


“- Idade?”


- 9 anos... Apresenta caninos salientes e pontiagudos, olhos vermelhos... Como um...


“- Como um vampiro?”


- Sim, desses de filmes... E bem irritada...


“- Estou mandando uma enfermeira nossa aí agora mesmo para fazermos um teste... Converse com ela.”


- Ok – concordou ela, desligando e guardando o celular – Então... me conta, o que fizeram com você? Eu juro que não vou te fazer nenhum mal, só quero te ajudar...


- Eu to com fome... – falei com dificuldade, colocando os braços sobre a barriga.


- Claro, o que você quer? Um sanduiche, um bolo, o quê?


Alguém bateu na porta e uma enfermeira entrou com uma caixa, voltando a fechar.


- Sangue... – falou a mulher, sorrindo.


- Tem certeza?


- Ororo, trabalho com o professor Xavier, e sim, temos certeza...


- Sim... – respondi, me sentindo mal.


- Ta bom, sangue então. Depois podemos conversar e eu posso te examinar?


- Pode – concordei.


- Combinado – ela olhou para a mulher que entregou um saco de sangue com um pequeno tubo que virou um canudinho.


- Vou esperar lá fora – avisou a mulher, saindo e fechando a porta.


- Pronto – falou a policial – Agora é a sua vez.


Larguei o saco na cama e tirei a blusa, ficando sem nada.


- Trato é trato – respondi, voltando a beber o sangue.


Ela se aproximou e começou a olhar meus machucados, por todo meu corpo, parou o olhar no meu pescoço com as duas marcas de dentes.


- Quem te fez isso?


- Meu protetor...


- Ele te pegou a força?


- Não, eu deixei.


- E esses cortes nas suas costas? Foi seu protetor também?


- Não, foi a carcereira e a filha dela... A senhora acredita em bruxos ou mutantes?


- Talvez... por quê?


- Por que eles existem, e morrem aos montes, diariamente...


- Posso tirar algumas fotos? – perguntou, pegando a câmera fotográfica, daquelas profissionais – para analisarmos os machucados e esse código...


- Pode – respondi.


Ela tirou várias fotos, do meu rosto, das minhas costas, na mordida no meu pescoço e do código no meu pulso.


- Pronto, pode por a blusa.


- O que vocês vão fazer com essas fotos e com o que eu disse? – perguntei, me vestindo.


- Vamos tentar descobrir quem matou os outros adolescentes e crianças. Se você pudesse me dizer o nome da carcereira ou da filha dela...


- Eu não sei.


- Quem te levou para lá?


- Eu não lembro...


- Vamos fazer um acordo? – perguntou, colhendo uma amostra do meu sangue – Eu vou deixar você ir, mas caso você se lembre de alguma coisa, ou decida me contar, me liga, feito?


- Feito.


- Se sente melhor?


- Bastante.


- Isso é muito estranho... – comentou a policial, pegando o saco de sangue vazio e jogando no lixo, sem tirar o olhos de mim.


Ela tornou a abrir a porta e chamou os outros.


- E ai? – perguntou Warrick.


- Ela é uma ótima menina. Posso fazer só mais uma pergunta? – perguntou, me olhando.


Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.


- Vocês conversaram assim? – perguntou o homem.


- Sim – sorriu ela, e voltou a se dirigir a mim – O seu protetor... conhecia ele antes de ir para esse lugar? - fiz um gesto negativo com a cabeça - E você não vai me dizer o nome dele, não é?


Voltei a repetir o movimento.


- Acho que por hoje já chega – pediu Débora, colocando o casaco em mim – A Angélica precisa descansar...


- Tudo bem, a senhora tem razão, Angélica, foi um prazer, e qualquer coisa... é só me ligar... – disse Catherine, me dando o seu cartão – Muito obrigada por tudo, Sra. Débora...


- Espero ter ajudado...


- Muito. Obrigado – agradeceu Warrick – E desculpe o incomodo, se a senhora lembrar de alguma coisa...


- Pode deixar, eu ligo...


- Eu gostaria que me mantivessem informado sobre a investigação... – pediu o médico.


- Manteremos – respondeu Catherine.


A enfermeira se aproximou quando os dois policiais saíram e o médico se aproximou de nós, com um papel nas mãos.


- Sra. Débora, - chamou o médico - aqui estão as recomendações e os cuidados que a Angélica deve tomar. Faça curativos nos principais e maiores machucados e coloque esse creme, no final da folha, nos outros...


- Eu queria conversar com a senhora – falou a enfermeira – Er... Angélica é uma criança especial, e temos lugar para ela na nossa escola...


Ela entregou um cartão a Débora e eu a observei.


- É um internato para jovens super-dotados... – leu Débora – Não vou mandar minha filha para um internato, ela acabou de voltar de um lugar horrível, precisa de uma família e um lar de verdade, mas obrigada, e pode deixar Doutor, cuidarei bem dela, obrigada por tudo. Vamos Angélica? – ela ofereceu a mão direita para mim, e eu a peguei.


Débora parecia uma boa pessoa, me ajudou a entrar no banco de trás da caminhonete preta, colocou o cinto em mim e ajeitou o espelho retrovisor para ficar de olho em mim. Além de bonita, ela parecia ser muito carinhosa também, mas eu havia decidido não dizer nem uma palavra até ter certeza que ela realmente não me faria nada de mal. Aquelas semanas naquele maldito reformatório haviam me ensinado a não confiar em qualquer um. Logo que saímos do estacionamento do hospital, Débora ligou para o marido, avisando que passaríamos na farmácia e depois iríamos para casa.


- Você não é de muito papo né? – perguntou ela, quando fomos para a estrada, depois de comprar os remédios. Não respondi e continuei a olhar para ela através do espelho retrovisor – Sabe... eu tenho uma filha, um ano mais nova que você, tomara que se deem bem... ela ta empolgada... er... a Ana é muito legal né? Foi ela que me falou de você, chegou a me dizer que queria te adotar, mas ela não tem nem tempo para cuidar da Fernanda e da Gláucia... Desculpa se estou te enchendo, é que estou um pouco nervosa... Bom, essa é a cidade, bem vinda a terra dos canaviais...


Olhei pela janela. A cidade era pequena, daquelas bem interior mesmo, e eu só tinha visto um lugar como aquele pela televisão, gente sorrindo, cidade bonita e limpa, quem olhava para aquela miúda cidade, com toda a sua perfeição, jamais diria que estávamos a apenas a 2h30 da gigante e incansável São Paulo, uma das cidades mais populosas e poluídas do mundo.


A casa de Débora ficava a uns 15 minutos do centro da cidade, mais em meio ao campo e os vizinhos mais próximos chegavam a estar a quase 50 metros de distância. A casa tinha dois andares e era toda branca com detalhes em azul, bem grande, linda. Tirei o cinto e desci do carro, pegando minha mochila. Débora foi até o porta-malas e pegou umas coisas.


- Deixa que eu pego isso para você – disse ela, pegando a mochila da minha mão – Antes de irmos te buscar, passamos na casa da sua avó e pegamos as suas coisas.


Aquela casa era incrível, eu sempre vivi num bairro pobre, em uma pequena casa, aquilo para mim, era uma mansão. Subimos o pequeno lance de escadas até a porta e, quando Débora ia largar as coisas para abri-la, uma mulher apareceu, sorrindo, de dentro da casa, escancarando a porta. Ela usava um avental rosa claro, e um uniforme preto de empregada.


- Dona Débora, que bom que a senhora chegou...


- Boa tarde Lurdes, me ajuda com essas coisas, Angélica, entra por favor...


A empregada pegou as coisas da mão de Débora e colocou no chão da sala.


- Seu Fausto, Clarinha, ela chegaram...


Um homem veio da sala de jantar e uma menininha loira desceu correndo as escadas até a sala, ela usava chiquinhas, era pouco menor que eu.


- Mãe! – disse ela, correndo.


- Ei, ei, ei, sem correr – avisou Débora, dando um beijo na filha e outro no marido – Essa é a Angélica, Angélica este é o Fausto, o meu marido e essa é a Clara, minha filha...


- Oi... – disse Clara, apertando minha mão.


- Seja bem vinda a família... – disse Fausto, tentando me abraçar, mas me esquivei. Ele ficou sem jeito – Desculpe...


- Er... Licença, Angélica, você gosta de bolo de chocolate? – perguntou Lurdes – Eu fiz um com bastante recheio e cobertura com granulado.


- O bolo da Lurdes é o melhor do mundo! – riu Clara.


- O que? – protestou Débora, fingindo indignação.


- Só perde para o da mamãe... – corrigiu ela, rápido.


- Er... tive uma ideia – disse Débora, ao perceber o clima tenso – Que tal vocês três arrumarem a mesa para o lanche enquanto eu vou ajudar a Angélica?


A pequena Clara parecia muito feliz com a minha chegada e eu estava começando a achar que aquela família era legal. Débora me levou até o banheiro e me colocou sentada na pia.


- Dona Débora – disse Lurdes, batendo na porta – A senhora vai se sentar a mesa também?


- Vou sim, e você também – e se dirigindo a mim – quer tomar um banho primeiro? Depois nós fazemos os curativos?


Respondi com um gesto afirmativo com a cabeça, e ela me desceu da pia e foi buscar minhas roupas. Tomei um banho morno e, quando já estava vestida, Débora me sentou na pia novamente e me fez os curativos, com muita delicadeza e cuidado para não me machucar.


Como a policial, ela também parou o olhar na mordida no meu pescoço, quando percebeu que eu a olhava, ela disfarçou e fez um curativo ali também. Quando fomos para a sala de jantar eu não acreditei no que vi. A mesa era grande e estava cheia de coisas, desde bolo até frutas e sucos, além de lindos sanduíches.


- Surpresa! – disseram Clara e Lurdes, juntas.


- Huau! – disse Débora, eu só olhei tudo, de boca aberta, nunca tinha visto tanta comida junto.


- Eu e a Clarinha queríamos fazer uma surpresa para a Angélica, pra dar as boas vindas – explicou Lurdes.


- Foi uma ideia maravilhosa! – disse Débora, rindo – vem, vamos sentar.


Fausto sentou na ponta da mesa, do lado esquerdo dele, sentou Débora e ao lado dela, Lurdes. Eu me sentei ao lado de Clara, de frente para Lurdes. Fausto parecia meio apreensivo e olhava, nervoso, para a esposa. Aquele lanche já era a janta, e eu comi muito, tanto que me sentia a pessoa mais feliz do mundo. As 22 horas, Débora nos mandou para cama.


- Mãe, deixa eu mostrar para a Angélica o quarto dela?


- Pode, daqui a pouco eu subo para dar um beijo em vocês e quero as duas deitadas.


- Eu já coloquei as coisas no quarto e a cama ta arrumada – avisou Lurdes.


- Vem comigo – chamou Clara, e eu a segui para o 2º andar.


- Débora... – disse Fausto, quando estávamos longe do campo de audição deles – Eu acho que a Angélica não foi com a minha cara, viu o jeito como me olhou quando tentei abraçá-la?


- Meu amor, não é que ela não tenha ido com a sua cara, ela só tá assustada. Pelo que o médico disse, ela foi torturada, e agora se recusa a falar. Tenho certeza que, se dermos tempo para ela, logo ela vai confiar em nós.


Lurdes começou a tirar a mesa, enquanto isso, Clara me mostrava o segundo andar da casa.


- Os quartos da direita são da mamãe e da tia Raquel, e os da esquerda são os nossos, esse é o seu... – disse ela, abrindo a porta do quarto mais próximo da escada. O quarto era grande e bonito e tinha uma janela em cima da cabeceira da cama, que dava para o jardim dos fundos, onde havia uma enorme piscina. Ao lado da cama havia um criado-mudo com uma foto da vó Nanda num porta-retratos – gostou do quarto? Tentamos deixar o mais parecido com o seu antigo quarto. Se não gostar de alguma coisa, é só dizer que podemos trocar... Você deve estar cansada né? Bom, boa noite...


Ela baixou a cabeça e ia saindo do quarto quando eu pus a mão no ombro dela. Ela parou e se virou, me olhando. Dei um sorriso torto e ofereci a mão para ela apertar. Ela sorriu e apertou minha mão, depois que ela saiu do quarto eu fechei a porta e me deitei na cama, olhando para o céu e pegando a foto da vó Nanda.


- Eu não desisti vó... – falei sussurrando – eu ainda vou vingar sua morte, nem que seja a última coisa que eu faça...


Bateram na porta e eu me endireitei na cama.


- Licença... – disse Débora, entrando – posso falar com você? - fiz que sim com a cabeça, ela sorriu e entrou no quarto, fechando a porta e sentando na beirada da cama, ao meu lado – Gostou do quarto? A Clarinha e a Ana ajudaram a decorar... se não gostou é só dizer, ou se quer acrescentar algo... Bom, amanhã eu vou te matricular ma escola da Clara, quer ir comigo? – fiz que sim com a cabeça e passei para debaixo das cobertas – Boa noite...


Débora me deu um beijo na testa e me cobriu direito, quando saiu do quarto, apagou a luz e fechou a porta. No dia seguinte, levantei com o raiar do sol, tomei banho e passei o remédio onde eu alcançava. Sempre e totalmente em silêncio, eu sai do quarto e desci para a cozinha e encontrei Lurdes, já de uniforme, fazendo o café, quando me viu, abriu um sorriso.


- Bom dia pequena! Acordou cedo eim, quer um pedaço de bolo? – perguntou ela com carinho e eu respondi com um gesto afirmativo com a cabeça.


Ela colocou um pedaço grande de bolo e um copo de suco de manga na minha frente, na mesa, e eu sentei e comecei a comer satisfeita. Quando eu tava quase terminando o café, uma mulher da altura de Débora, um pouco mais magra, cabelos cumpridos, lisos e um ar arrogante, parou ao meu lado.


- Quem é você? – perguntou ela, com nojo, obviamente não respondi – responde sua mal-criada, quem é você? Lurdes, eu já não te avisei para não trazer criança de rua para dentro desta casa?


- Mas dona Raquel... – tentou Lurdes, se aproximando da minha cadeira.


- Mais nada, tira essa trombadinha daqui!


- Não... – disse a coitada, nervosa.


- Se você não põe ela para fora, eu mesma ponho – a mulher arrogante se levantou, segurou meu braço direito com força e tentou me por para a rua, Lurdes tentou impedir e foi jogada com força no chão no momento que Débora entrou na sala de jantar, séria.


- O que tá acontecendo aqui? – perguntou indignada – Raquel, o que pensa que esta fazendo?


- To colocando essa sem-teto abusada para rua.


- SOLTA A MINHA FILHA! – gritou Débora.


- O quê?


- Eu disse para soltar minha filha – ela repetiu, me afastando de Raquel e se colocando a minha frente – Se eu te ver perto dela, mais uma vez, eu te ponho para fora de casa, eu fui clara?


Abaixei a cabeça e fui para a rua. Uns 10 minutos depois, Clara e Débora saíram e foram para o carro.


- Bom dia – disse ela, sorrindo.


Eu estava tão indignada com o que havia acontecido, que nem me dei ao trabalho de sorrir, apenas continuei a olhar para os meus sapatos e entrei no carro colocando o cinto. Fomos até a escola e Débora me matriculou na 4ª série, na escola de São Bento, depois passamos em uma floricultura, e eu escolhi rosas brancas, as favoritas da vó Nanda, e Débora escolheu um buquê de rosas vermelhas. Ela não explicou o por quê das flores, apenas entrou no carro e foi para a estrada. Depois de 20 minutos, eu peguei no sono e só acordei quando o carro parou e Débora me chamou.


- Acorda, dorminhoca... – chamou ela, rindo.


Descemos do carro com as flores nas mãos e entramos em um cemitério, simples e bem cuidado. Eu estava totalmente confusa, passear num cemitério, não parecia nada legal.


- Eu tava devendo uma visita para uma pessoa especial e um presente para uma nova amiga – comentou ela, segurando minha mão direita – é aqui...


Parei e li a lápide a nossa frente.


“Maria Fernanda Trajano Kubschesk + 1941 – 1997


A uma grande avó, uma grande amiga, uma grande mulher, e acima de tudo, um verdadeiro anjo na terra.”


Na hora, a emoção me dominou e eu me ajoelhei na frente do túmulo, chorando, e abaixei a cabeça, com os braços cruzados em cima do mármore. Débora, que estava com um vestido florido alaranjado, se agachou com cuidado ao meu lado e acariciou os meus cabelos. Respirei fundo, levantei a cabeça e olhei nos olhos dela, naqueles lindos olhos.


- Obrigada – agradeci, quase sem voz.


- Meu Deus... Era o mínimo que poderia fazer por você – respondeu ela, começando a chorar e me abraçando – Obrigada por confiar em mim...


- Achei que ela ia ficar numa gaveta... Não temos dinheiro...


- Ela ia... se não tivesse como pagar um pedaço de terra aqui. Fiz questão de pagar tudo, a Dona Nanda merecia o melhor, ela me deu o melhor presente que eu poderia ganhar...


- O que?


- Ela me deu você... Me deu um anjo...


Ficamos um tempão ali, em silêncio, com Débora me abraçando. Quando voltamos para São Bento dos Canaviais, Débora me levou na feira para comprar umas coisas para a casa.


- Que cheiro é esse? – perguntei, olhando ao redor.


- Laranja... Por que decidiu falar comigo?


- Porque a senhora me defendeu daquela mulher no café da manhã, e depois me levou para me despedir da minha avó... porque se não fosse a senhora, eu ainda estaria naquela jaula de gente...


- Não precisa me chamar de senhora... obrigada por confiar em mim, significa muito... Gosta de carambola?


- O que é isso?


- Uma fruta... pega, experimenta...


A fruta era esquisita, amarela, em formato de X. Cheirei e olhei mais um pouco, não tinha cheiro de nada. Respirei fundo e dei uma dentada, não podia ser pior que a comida do Instituto. Na boa? Era muito ruim aquele negócio. Engoli o pedaço que eu tinha na boca, fazendo uma careta, enquanto Débora ria.


- Eca, é horrível... – reclamei.


- Posso te confessar uma coisa? – cochichou ela, se abaixando um pouco para ficar da minha altura.


- Pode...


- Eu também sempre detestei carambola...


Dei risada e ela tirou a fruta da minha mão, pagou e deu ela para um menino que corria ao redor das mini-quitandas, o garoto aceitou o presente muito feliz e voltou a correr enquanto comia. Compradas as frutas, fomos para os frutos do mar.


- Bom dia Dona Débora! – disse um homem de uns 30 anos, com um jaleco azul e boné da mesma cor.


- Bom dia Seu Juvenal, e o peixe hoje, como esta?


- O “namorado” tá fresquinho, chegou a pouco, e tá na promoção.


- Gosta de peixe? – me perguntou ela.


- Sim... a vó fazia violinha frita 1 vez por mês...


- Excelente escolha, Juvenal, me vê um namorado e 5 bandejas de violinha...


- Sim senhora – respondeu o homem, pegando o peixe e enrolando em um papel branco e grosso – E essa menininha linda, quem é?


- Essa é a Angélica...


- Angel – interrompi – Prefiro que me chamem de Angel, por favor...


- Bom, essa é a Angel, minha filha mais velha... – respondeu ela, sorrindo.


- Prazer Angel, sou o Juvenal, seja bem vinda a São Bento dos Canaviais e a Quitanda do Sr Manuel...


- Obrigada...


- Terminamos bem na hora – concluiu Débora, consultando o relógio – Vem, vamos buscar a Clarinha na escola...


Ela pagou os peixes e fomos para o carro. Quando paramos em frente a escola eu olhei aquele grupo de crianças da minha idade, conversando animadas.


- Quando começo na escola?


- Amanhã.


- Obrigada pelos cadernos e os outros materiais...


- Não tem que me agradecer, e sempre que precisar de algo, pode me pedir, qualquer coisa... olha ela ali...


Débora desceu do carro e foi de encontro a filha, fiz o mesmo. Clara conversava animada com dois garotos e uma garota. Havia também um homem com eles, alto, bonito, de cabelos pretos e tinha um belo sorriso.


- Mãe? Achei que a Lurdes vinha me buscar hoje...


- Eu e a Angel resolvemos fazer uma surpresa...


- Olá Débora... – cumprimentou o homem, sorrindo.


- Oi Amador, Paulo... – respondeu ela, se dirigindo ao homem e ao menino a frente dele.


- Oi Dona Débora... – sorriu o menino.


- E como esta o meu amigo Fausto?


- Está bem, saiu cedo hoje para os canaviais...


- Psiu... – chamei, puxando Débora pela mão, e ela me olhou sorrindo – O que é um canavial?


- É uma plantação de cana-de-açúcar, - explicou Amador, se agachando a minha frente - depois de pronta e cortada, ela é mandada para uma usina, onde vira açúcar, ou combustível...


- E tem isso em livros? – perguntei.


- Tem sim... – sorriu ele.


Olhei para Débora novamente que me sorriu.


- Quer um livro que fale sobre canaviais? – perguntou ela.


- Posso ter?


- Claro que pode... Amador, esta é Angel, minha filha mais velha...


- Minha nova irmã... – sorriu Clara, orgulhosa.


- Eu sou o Paulo... – disse o menor.


- João de Deus – respondeu o outro menino, mais gordinho.


- Mirela... – respondeu a menina que parecia meio hippie.


- Eles são meus amigos – explicou Clara.


- Oi – respondi secamente.


- Bom... vamos? O Fausto deve estar esperando para almoçar... – disse Débora.


- Dona Débora – chamou João de Deus – A Clarinha pode brincar hoje a tarde?


- Pode sim João... tchau Amador – ela deu um beijo no rosto ele e depois em Paulo.


Fomos para casa e o almoço transcorreu numa boa. Decidi não falar com Fausto e Raquel, e alguma coisa me dizia que a irmã mais nova de Débora não era nada confiável. Depois do almoço fui até o estábulo, tinha um cavalo preto, com uma mancha branca na cabeça, os olhos eram maus e ele pateava o chão com violência.


- O nome dele é Trovoada... – disse uma voz masculina as minhas costas – Ninguém conseguiu domá-lo ainda... é muito agressivo... Gosta de cavalos?


- São legais... – respondi secamente, me virando de frente para o homem.


- Débora me contou que começou a falar... achei que não tivesse ido com a minha cara – comentou Fausto, sorrindo.


- Raquel... não confio nela... ela é má...


- Fiquei sabendo o que aconteceu no café da manhã... ela é meio assustadora mesmo, mas não chega a ser má... quer dar uma volta a cavalo?


- Não sei montar...


- Não tem problema, eu te ensino... quer?


- Quero...


Ele deu um sorriso e caminhou até o estábulo, onde haviam mais 3 cavalos e pôs a sela no menor e no outro maior, marrom com manchas brancas.


- Vem, eu te ajudo a subir...


Subi no cavalo menor e Fausto subiu no outro, rindo.


- Eu vou cair... – falei assustada.


- Não, não vai, é só segurar as rédeas com firmeza. Se quiser que o cavalo vá para a direita, puxe as rédeas para a direita, se quiser que ele vá para a esquerda...


- É só puxar as rédeas para a esquerda, entendi, como faço para ele parar?


- Puxe as rédeas em direção ao seu peito, mas não com muita força, se não ele pode empinar e você cair.


- Ok – ofeguei, eu tava muito nervosa e com medo, mas não podia demonstrar – to pronta, só mais uma coisinha...


- O que?


- Como eu faço para ele andar?


- É só bater com os calcanhares o mais perto possível das patas traseiras...


Fiz o que ele disse e o cavalo começou a andar. Passeamos algumas horas, tempo o suficiente para nos conhecermos um pouco. A minha facilidade para aprender as coisas, fez com que em pouco tempo eu me tornasse uma especialista na arte da montaria.


- Então... tudo isso é seu? – perguntei, quando passávamos pelos canaviais.


- Pra falar bem a verdade... não...


- Não? – perguntei, sem entender.


- Não – repetiu ele – Os canaviais são da Débora... Só uma parte muito pequena é minha... Débora herdou dos pais, por ser a irmã mais velha, mas sou eu quem cuido de tudo. Er... obrigado por ter me dado uma chance...


- O senhor parece ser legal, merece ser respeitado.


- Você é uma menina muito bacana. Pra falar a verdade, eu não gostei muito da ideia de adotar uma criança, quando a Débora falou pela primeira vez. Acho que fiquei com medo de não ser um bom pai, ou talvez tenha ficado com ciúmes com a ideia de ter que dividir a Débora e a Clara. Pode parecer uma ideia infantil, mas...


- Quando minha avó morreu, eu não sabia o que ia fazer... Ela era tudo que eu tinha. Aquela cena dos bombeiros tentando ressuscitar ela, deitada no chão da sala, aquilo tudo me deixou confusa. Acho que entendo o que você sentiu quando Débora sugeriu a adoção, pois eu senti o mesmo em relação a vó Nanda.


- Não é a primeira vez que tenho a sensação que você não tem 9 anos, quero dizer... pelo pouco que te conheço, parece muito séria...


- Não é seriedade, é tristeza... Se importa se eu voltar? Eu... to cansada...


- Claro, quer que eu volte com você?


- Não precisa, eu lembro do caminho...


- Tem certeza?


- Tenho sim, obrigada...


Fiz a volta e resolvi pegar um caminho diferente, pela beira do riacho. Quando eu estava próxima de uma pequena corredeira, ouvi o estalar de alguns galhos e puxei as rédeas do cavalo rapidamente, fazendo o animal patear o chão, irritado. Apurei os ouvidos e tornei a ouvir os passos abafados pelas folhas.


- Angel... – sussurrou uma voz, não dava para identificar se era de homem ou de mulher.


- Quem é? – perguntei assustada.


- Venha... – chamou a voz, friamente.


- O que quer comigo? – perguntei, decidida.


- Quero que me diga o que esta fazendo no meio do mato – disse uma voz de mulher, de trás de uma árvore.


- Quem é você? – desafiei, a essa altura o meu medo já havia passado.


- Remédios – respondeu a mulher, saindo de trás da árvore e me encarando.


Ela tinha uns 40 anos, os cabelos castanhos, levemente ondulados, estavam bagunçados, lhe dando um ar de louca. As roupas eram um tecido neutro, com poucas imagens e esbranquiçado, um vestido que ia até os pés em um tom bem fraco de marrom. Ela trazia nas mãos um cesto cheio de ervas de todos os tipos.


- Isso é um nome? – perguntei.


- É sim, e você, quem é?


Desci do cavalo e olhei para ela, séria.


- Angel... – respondi.


- De onde veio? Nunca te vi por aqui...


- São Paulo... cheguei ontem...


- O que veio fazer aqui? Não sabe que essa parte da cidade é muito perigosa para alguém da sua idade?


- Não tenha medo do perigo...


- Olha só, uma pequena corajosa! – riu ela.


- É a senhora que mora ali? – perguntei, apontando para a velha cabana.


- Sim... Você não tem medo de mim?


- Por que teria?


- Todos da cidade me chamam de bruxa... – sorriu ela.


- E a senhora, por acaso, é?


- Sou! – disse ela, tentando me assustar.


- Legal, eu também... – respondi dando de ombros.


- Você? – perguntou ela, meio que me analisando – Você não parece uma bruxa...


- Nem a senhora... – retruquei.


Ela sorriu e se aproximou de mim.


- Gostei de você – comentou ela – com quem você veio para São Bento?


- Débora Feberman... ela me adotou...


- Dona Débora é uma ótima pessoa. Angel, aceita tomar um suco comigo?


- Aceito sim, muito obrigada...


Amarrei o cavalo em uma árvore próxima e segui ela até dentro da cabana. O lugar era pequeno e bem simples, com 2 pequenos quartos que tinham cortinas ao invés de portas, um banheiro miúdo e uma cozinha. Me sentei na mesa em silêncio e fiquei olhando tudo. O lugar tinha um ar sombrio, muito legal.


- Por que diz que é uma bruxa? – perguntou ela, colocando o copo com o suco na mesa e se sentando na minha frente.


- Porque eu sou.


- Como assim? Er... bebe o suco.


- Primeiro a senhora – desafiei.


- Muito bem, uma menina cautelosa...


Ela bebeu um gole e me passou o copo.


- Não sei como, mas eu sou uma bruxa mutante.


- Como nos filmes?


- Acho que sim, mas é segredo... – respondi, tomando o suco.


- Ok, então... Tem como provar? – desafiou ela.


- Tenho sim... – respondi, abrindo a boca e fazendo os caninos crescerem.


- Meu Deus... – disse ela apavorada, olhando fixamente para os meus dentes – Isso não é possível!


- É sim... – respondi, tomando o último gole do suco.


- Você bebe sangue?


- Normalmente não, mas adoro carne mal passada, apesar do sangue humano ser muito saboroso. Por que chamam a senhora de bruxa?


- Porque eu moro no meio do mato, com minha neta, em um barraco velho e trabalho com plantas medicinais e amuletos.


- Legal, mas isso não é bruxaria...


- É, eu sei... Eu ainda não acredito que existem pessoas vampiras, é muito impressionante...


- Pois é, mas ninguém pode ficar sabendo.


- Pode deixar... Segredo nosso...


Nasceu naquele momento uma importante amizade em minha vida. A bruxa Remédios, como era conhecida na cidade, era muito parecida com a vó Nanda, na forma de sorrir, no jeito de andar e na desconfiança em qualquer pessoa que sorrisse muito e por qualquer motivo.


Com o passar do tempo, eu comecei a perceber que a minha desconfiança em Raquel, fazia todo o sentido. Ela era cínica e nem tentava disfarçar o quanto era má.


Em duas semanas eu já estava com o caderno em dia e era a melhor aluna da turma. Comecei a sair com Clara e os amigos dela, e ajudá-los com a escola. Durante muito tempo, tudo ocorreu numa boa, com exceção das brigas que eu tinha com Teresa, mãe do Paulo, que odiava Clara, eu e qualquer outra que tivesse a ver com Débora Feberman. Teresa acreditava que Débora e Amador eram amantes, desde que eram jovens e namoravam.


- Você gosta de ler, né? – perguntou Débora, quando estávamos em uma livraria comprando uns presentes para mim, para comemorar o 1 ano da minha chegada na família Feberman, e meu aniversário de 10 anos.


- Muito... – respondi distraída, lendo alguns títulos – Mãe...


- Do que me chamou? – perguntou ela, surpresa.


- De mãe... eu... desculpa, foi sem querer...


- Não, não, eu amei, de verdade...


- Então posso te chamar assim?


- Você me tornaria a mãe mais feliz do mundo se me chamasse assim, minha filha... – respondeu ela, me abraçando carinhosamente e me dando um beijo na cabeça – O que ia dizer, meu amor?


- Que eu estou disposta a contar tudo o que eu sei sobre o reformatório, para a detetive Catherine Willows... sei que pode ser tarde pra isso, mas... Agora eu tenho minha família... Tenho vocês e sei que ninguém vai me tirar isso...


- Tem certeza meu amor?


- Tenho... desta vez quero falar tudo... Eu preciso...


- Por quê? Aconteceu algo?


- Deu no jornal mãe... 4 mortes em 1 ano, acho que é culpa minha, se eu tivesse colaborado antes... E se uma delas for a Amanda?


- A sua amiga né?


- Ela foi legal comigo lá... se ela morrer é culpa minha...


- Não fala isso... Vamos fazer o seguinte, eu vou ligar para a detetive Willows e pedir que ela venha amanhã, pode ser?


- Pode sim... obrigada...


- Ótimo, agora termina de escolher os livros que vai querer...


- Já escolhi...


- Quais?


- Esses aqui ó... O ataque do Comando PQ, do Moacyr Scliar, O Código de DaVinci e Anjos e Demônios, do Dan Brown, O Cortiço, de José de Alencar...


- Ei ei, você não acha que esses livros são adultos demais para sua idade, não? – perguntou ela sorrindo, eu amava o sorriso dela.


- Talvez um pouco – respondi rindo e abraçando ela – Mas por favorzinho...


- Ok então, são seus... – riu ela.


- Eu também vou querer esse livro de História, de literatura, de física e de matemática...


- Minha pequena gênia, quer mais algum?


- Não, tá ótimo esses... Você é a melhor mãe do mundo...


- Beleza, então vamos pagar e depois vamos para casa?


- Vamos... – concordei.


Ela comprou todos os livros que eu pedi e depois fomos para casa ouvindo música. Débora era igual aquelas mães de novela: me colocava para dormir, me dava conselhos, conversava com os meus professores e me ajudava com os deveres da escola.


Eu tinha sorte de ter ela como mãe. Quando chegamos em casa, eu peguei meus livros e Débora pediu que eu entrasse primeiro, me entregando as chaves. A casa estava totalmente escura e eu abri a porta cuidadosamente. Quando ascendi a luz, houve uma explosão de agito e um grito de “Feliz Aniversário!”


- Surpresa! – disse Clarinha, indo até mim e me abraçando. Ela estava com um chapéu de aniversário e jogou confete em mim.


- Eu... eu... – tentei falar, largando as coisas em cima do sofá, eufórica.


- Gostou da surpresa? – perguntou Débora, entrando e fechando a porta.


- Muito – respondi sorrindo e olhando para aquele aglomerado de pessoas que agora se dissipava.


- E ai baixinha! – disse uma mulher, saindo do meio de toda aquela gente.


- TENENTE PRESLEY! – vibrei, quando ela me pegou no colo e me abraçou forte.


- Que bom que veio, minha amiga... – falou Débora, tocando o ombro da bombeira.


- Essa é uma data especial, eu não poderia faltar, não depois do que eu descobri...


- O que?


- Descobri que essa pequena gênia salvou a vida de um garoto que se perdeu perto da reserva, me conta essa história direitinho mocinha...


- O Pedro tem 5 anos, e fugiu de perto da mãe. Eu estava dando uma volta a cavalo, pela floresta, e ouvi um choro, então fui até o lugar de onde vinha o barulho e encontrei o menino pendurado no barranco. Não foi nada de mais, só desci do cavalo e puxei ele pra cima, logo depois o corpo de bombeiros chegou e levou ele para a mãe.


- E o que os bombeiros da cidade disseram? – perguntou Ana, empolgada com a história.


- Que eu não deveria ficar andando sozinha por ai, que poderia ser perigoso... – respondi.


- Só isso? – perguntou Ana, indignada.


- Só – confirmou Débora, rindo – Eu concordo com eles, mas ela salvou alguém, podiam ter sido mais legais...


- Esses bombeiros não estão com nada, tenho um presente para você, uma herói – disse a militar.


- O que é isso? – perguntei, quando ela me largou no chão e me entregou um pacote.


- Abre – disse ela, animada, me observando.


Abri o pacote rapidamente e encontrei dentro dele 2 uniformes do Corpo de Bombeiros, o que eles usam para combater o fogo e a farda, incluindo o quepe e o capacete com meu nome.


- Huau! – falei radiante, olhando a roupa de boca aberta.


- Gostou? – perguntou Ana, me observando agitada.


- Muito!


- Que ótimo – comentou ela, feliz – Tomara que sirva, você e a Fêfa tem mais ou menos o mesmo tamanho, e eu medi por ela, experimenta!


Coloquei o casaco da roupa especial que tinha o nome Feberman nas costas. Serviu direitinho e eu corri e pulei no colo de Ana, que me abraçou radiante.


- Obrigada, madrinha, acho que vou ser bombeira quando eu crescer...


- Do que me chamou? – perguntou ela, rindo.


- Eu e a Angel conversamos e queríamos saber se você aceita ser madrinha dela. – contou Débora - E ai? O que você me diz, aceita ou não?


- Nossa, é claro que eu aceito! Mas... por que eu?


- Porque se não fosse você, eu nunca teria conhecido a Angel e ganhado essa filha linda... – respondeu Débora, sorrindo.


- E eu ainda estaria naquele lugar horrível, ou talvez estivesse até morta.


- Sendo assim, é uma honra aceitar esse maravilhoso convite. Agora vai brincar que eu vou conversar com sua mãe...


Ela me colocou novamente no chão e eu saí para brincar com as outras crianças, depois de tirar o casaco dos bombeiros. Ana e Débora saíram da casa e foram para o pátio, sozinhas.


- Olha minha amiga... eu nem sei como te agradecer...


- Agradecer pelo que, Débora?


- Por ter me convencido a adotar a Angel. A Clarinha tá amando a irmã, sabe... A Angel é uma menina muito especial, com um coração muito bom... as vezes tenho a impressão que ela é muito mais velha, no jeito de falar, na forma como estuda, é incrível pensar que ela só tem 10 anos...


- Er... Aqueles livro na sala, são seus? Vi que tem de história, matemática... não sabia que tinha voltado a estudar...


- Não são meus, são dela... Me impressiona a facilidade que ela tem para aprender as coisas. Ela nunca tinha andado a cavalo, depois de ler um livro sobre montaria, ela montou num como se tivesse nascido fazendo aquilo...


- Já pensou em mandar ela para uma escola especial? Ela é uma gênia...


- Já, ela recebeu uma proposta, quando estava no hospital, a um ano, mas é um internato, nos Estados Unidos, aliás ela aprendeu a falar inglês fluente já, com um curso que dei a ela... Tenho tanto orgulho da minha filha, não vou mandar ela pra longe de mim, não encontrei nenhuma escola dessas por aqui... também não vou mandá-la para São Paulo... Mas me fale de você, como estão as meninas?


- Bem, cada dia detestam mais a minha profissão, mas estão bem...


- Reparei que o Maurício não veio, aconteceu alguma coisa?


- Estamos nos separando... as crianças não sabem de nada ainda, não tenho coragem de contar...


- Mas...  o que aconteceu?


- Ele disse que não dou bola para a família, que só consigo pensar no meu trabalho e que, por minha culpa, ele não pôde realizar os sonhos deles...


- Mas isso não é verdade...


- É sim, não sou uma boa mãe, e muito menos uma boa esposa...


- E as crianças, como ficam nisso?


- Ficam com ele.


As duas ficaram um bom tempo caminhando pelo jardim e conversando. A festa foi até umas 20 horas, e antes de ir embora, Ana me convidou para conhecer a corporação onde ela trabalhava e ficou de me buscar na segunda, depois da aula.


Débora ligou para a C.S.I Catherine Willows dizendo que eu estava decidida a falar, e no dia seguinte, mesmo sendo domingo, que era o dia de folga dela, as 7 horas da manhã, ela foi me buscar para conversarmos. Quando ela chegou eu estava me trocando.


- Meu amor, o que vai vestir? – perguntou Débora, abrindo o guarda-roupas.


- Mãe, posso por a camisa da corporação e uma calça jeans?


- Pode – respondeu ela, pegando a roupa – mas põe o casaco também, e vê se não demora eim madame...


- Pode deixar mãe...


Ela saiu do quarto e em menos de 10 minutos eu já estava pronta. Desci correndo as escadas e encontrei a detetive na sala, conversando com Débora. Quando me viu, se levantou e me olhou sorrindo.


- Quanto tempo! – disse ela.


- 4 meses e meio desde a última visita – respondi sorrindo e apertando a mão dela.


- Está pronta?


- To sim... – concordei.


- Não vai tomar café? – perguntou Débora, preocupada.


- To sem fome, mãe...


- Pode deixar, comemos alguma coisa no caminho. Bom... até logo, Dona Débora...


- Até, detetive...


- Tchau, mãe... Eu... eu te amo... – falei, abraçando forte ela.


- Tchau Angel... eu te amo... te comporta tá – falou ela, retribuindo o abraço e me dando um beijo na cabeça.


Soltei ela com um sorriso e fui com a policial para o carro. Depois de colocar o cinto, fomos para o reformatório, no caminho coloquei Catherine a par de algumas coisinhas.


- Débora disse que queria me contar sobre o reformatório...


- Lembro que uma vez a senhora me disse que não acreditava em bruxos e mutantes...


- Não acreditava, até você beber um pacote de sangue, muita coisa mudou em um ano...


- Então agora a senhora acredita?


- Digamos que sim, por quê?


- O código, no pulso: BQ-31-10-1988-I/B. Significa Bruxa Quimera nascida em 31 de outubro de 1988, nascida na Inglaterra e criada no Brasil. Todos que vivem na cela 13 tem esse código, cada um com a sua data de nascimento e o lugar onde foi criado.


- Como eles colocam esse código?


- Com ferro e fogo... É um processo bem doloroso... vira a esquerda depois da sinaleira...


- Então a cela 13 abriga...


- Os bruxos. A crença mundial vê o número 13 como um sinal de bruxaria, porém estão absolutamente errados, levando em consideração que o número das bruxas é o 7, e o dia das bruxas é comemorado dia 31 de outubro, ou seja, ontem... no meu aniversário... Existem várias lendas para o 13 ser mal visto...


- Você é muito inteligente, para alguém da sua idade...


- Gosto de ler... É ali – falei, apontando para um prédio.


- ICJA?


- Instituto de Correção para Jovens Abandonados. Usamos uniformes amarelo-escuro. A comida é mandada por um buraco debaixo da porta, dentro de pratos de alumínio, junto com um garfo de plástico por semana. Na cela 13, os jovens não tem direito de sair, tem uma parte onde podemos pegar sol e não cabe mais de 8 pessoas por vez. Deve ter por volta de umas 25 pessoas, os mais novos tem por volta de 7 anos, idade que a magia se manifesta na pessoa. Seguida o vaso esta entupido e eles só liberam a água do chuveiro duas vezes por semana. Mas isso não é nada se considerarmos a geladeira, ou, como a carcereira prefere chamar, sala de ensino...


- E o que tem nessa sala de ensino?


- É o lugar onde torturam os internos. É lá que a maioria morre... Um cubículo sem luz, de pedra.


- Você já foi pra lá, não é?


- Fui, e fiquei um bom tempo. Quem vai pra lá, recebe um pedaço de pão por dia. Passando frio, apanhando e comendo pouco, fica bem complicado de sobreviver.


- Quem é o seu protetor?


- Gabriel, uns 4 anos mais velho que eu...


- Por que chama ele de protetor?


- Porque se não fosse ele, talvez eu tivesse morrido quando fiquei presa aqui.


- Ele também é um bruxo?


- É, e também é um vampiro.


- Esta pronta para entrar?


Respirei fundo, olhei para o prédio, depois para Catherine.


- É, to sim...


Saí do carro, tremendo e esperei Catherine parar ao meu lado. Entramos juntas no lugar que era todo gradeado e no alto do muro havia uma cerca elétrica. De fora, aquele lugar parecia ainda mais uma cadeia. Na “recepção” encontramos a velha e gorda carcereira. Ela não mudou nada naquele último ano e quando me viu, deu um sorriso torto.


- Bom dia – falou Catherine, para a mulher – Eu tenho uma reunião com a senhora Maria Helena.


- Veio devolver a pestinha? Eu sempre falo para não levar ninguém daquele setor, são todos uns demônios...


- Cala a boca imprestável – disse Maria Helena, parando na porta do seu escritório – Senhora Willows, que bom que veio, por favor entre, deixa a menina com Laina e venha.


A carcereira me olhou com cobiça, e eu segurei a mão direita de Catherine e apertei. Ela pareceu entender o recado, pois olhou decidida para Maria Helena.


- Não, obrigada, ela entra comigo.


- Então... – falou ela, dando um sorriso amarelo e liberando a porta para que passássemos. Me sentei em uma das cadeiras oferecidas e Catherine sentou ao meu lado.


- Obrigada por nos receber, sei que a senhora é uma mulher muito ocupada.


- Imagina, senhora Willlows, é sempre um prazer colaborar com a polícia – falou a diretora, sentando a nossa frente, atrás da mesa – Bom... No que posso ajudá-la?


- Bom...


- Er, desculpe... – interrompi – Será que eu poderia ver o Gabriel?


- Seria possível, diretora?


- Er... Claro. Peça para Laina te levar até a sala de visita.


- Tá – falei, levantando e saindo da sala, deixando as duas conversarem sozinhas. Laina me colocou em uma sala com grades na janela e pouca iluminação e foi buscar Gabriel.


- Saiam de trás – rosnou ela, batendo na porta de ferro com o cassetete. Ela abriu a porta e foi até Gabriel, levantando-o pelo cangote.


- Me solta sua velha nojenta! – disse ele, tentando se soltar – Eu não fiz nada de errado!


- Cala a boca! – disse ela, batendo o cassetete no rosto dele, fazendo-o cair no chão. Ela aproveitou o momento para algemá-lo – Anda logo imprestável, tenho mais o que fazer...


Ela arrastou Gabriel para fora da sala e ele olhou-a desconfiado quando ela passou reto pela geladeira.


- Aonde ta me levando?


- Você tem visitas – respondeu, abrindo a porta da sala onde eu estava, empurrando ele para dentro e trancando a porta pelo lado de fora.


- O que quer comigo? – perguntou ele, olhando para os próprios pés.


- Tava com saudades – respondi.


- Angel? – perguntou, levantando a cabeça para me olhar – Não... acredito...


- Posso te dar um abraço?


- Você voltou – disse ele, caminhando até mim e passando os braços por cima da minha cabeça, para me abraçar, já que ele ainda estava algemado.


- Uma vez você me disse que cuidaria de mim – falei, abraçando ele – disse que se conseguisse sair, voltaria para me buscar...


- É, eu prometi... – concordou ele – Como você esta? Estão cuidando bem de você?


- Tão sim, falei com a minha mãe, ela prometeu que vai fazer o possível para tirar todos daqui, daí você e sua irmã vão poder voltar para casa...


- Angel... eu to morrendo...


- Não, você não pode morrer. Quem vai cuidar de mim?


- Sua nova família, e quando completar 11 anos, alguém a serviço do Lorde, vai procurá-la.


- Não posso deixar você morrer...


- Você não pode fazer nada...


- Posso sim, você não disse que meu sangue deixa você mais forte? Então... – falei, afastando os cabelos. No lugar da antiga mordida havia apenas uma pequena cicatriz.


- Não posso fazer isso...


- O que você não pode é morrer e me deixar sozinha. Vai, bebe um pouco do meu sangue.


- Tem certeza?


- Tenho.


Ele me olhou nos olhos, abriu a boca fazendo os dentes crescerem e me mordeu no pescoço, quase em cima da mordida anterior. Quando ele me soltou eu senti uma fraqueza e ameacei desmaiar, mas ele me segurou bem em tempo.


- Ei, você tá bem? – perguntou ele, limpando o sangue dos lábios e fazendo os dentes diminuírem.


- To, só um pouco tonta, mas to... – respondi, me sentando em uma cadeira.


- Você veio com quem? – perguntou, se sentando a minha frente e segurando as minhas mãos.


- Com a detetive Willows, do Instituto de Criminalística. Ela esta investigando as mortes de crianças, que tiveram perto daqui.


- Entra senhora policial – disse Laina, abrindo a porta para Catherine entrar. Gabriel se levantou rápido e parou na minha frente, olhando sério e fixamente para a detetive.


- Tá tudo bem, foi ela quem me trouxe – falei quando a carcereira tornou a trancar a porta e nos deixar ali, sozinhos.


- Sou Catherine Willows, CSI – disse ela, estendendo a mão – Você deve ser o Gabriel.


- Gabriel Gaunt – respondeu ele, apertando a mão dela e sentando novamente.


- Por que você está algemado?


- Aqui é assim. Só se sai da sala 13 algemado ou quase inconsciente.


- Esses machucados, quem te fez isso?


- Aquela gorda velha que lhe trouxe até aqui.


- Você é órfão?


- Não. Eu e minha irmã fomos sequestrados... Na Inglaterra...


- A quanto tempo você e sua irmã estão aqui?


- Uns 3 anos, mais ou menos. Dentro desta jaula acabamos perdendo a noção do tempo.


- Quem é que esta aqui a mais tempo?


- A Amanda, eu acho. Parece que já faz quase 5 anos que tá trancafiada naquela sala.


- E os pais dela? Não a procuraram?


- Amanda é órfã, como eu – respondi.


- Eu andei olhando os outros quartos. Todos são bem limpos e as crianças parecem bem, O que tem de errado com o quarto de vocês?


- Nós não temos quarto, senhora detetive – disse Gabriel, alterando o tom de voz e se irritando – Da onde eu venho, quarto é um lugar bem ventilado, com iluminação e camas, e o que nós temos é uma sala de pedra, sem luz, onde quase 20 crianças e adolescentes ficam apertados. A diferença da gente, da cela 13, para os outros que também estão aqui, é que nós somos bruxos.


- Como assim, “bruxos”?


- Eu vou lhe contar o que aconteceu antes de eu parar nesse buraco. Bom... tudo começou quando eu completei 11 anos e fui mandado para Hogwarts, uma escola onde bruxos aprendem a lançar feitiços, fazer poções e conhecem a história da origem dos bruxos. Vivemos na clandestinidade, nos escondendo o tempo todo, mas mesmo assim muitos sabem que existimos, e aqueles que nos temem se juntam e nos roubam de nossas famílias, o destino final é a morte para muitos. Mais de metade do mundo bruxo está atrás de mim e da minha irmã. Esses trouxas não fazem ideia de com quem eles se meteram.


- Trouxas?


- Aqueles que não são bruxos. Olha só, detetive – disse Gabriel, se sentando direito e olhando nos olhos dela – Se a senhora conseguir tirar eu e a minha irmã daqui, meu pai irá lhe recompensar muito bem. Somos uma família de posses e seríamos muito gratos a senhora.


- Não precisa me oferecer nada, eu vou te tirar daqui por que é o meu trabalho. Só preciso de uma foto, para conseguir um mandato de busca.


- As ordens...


Catherine tirou algumas fotos dele e eles conversaram mais um tempo. Quando nos despedimos, abracei ele forte, rezando para que não fosse o nosso último abraço.


Saímos dali e fomos tomar café em uma confeitaria. Eu estava meio zonza pela falta de alimento e a perda do sangue. Depois de um café da manhã bem reforçado, Catherine me levou até a casa da vó Nanda, para que eu pudesse explicar o que aconteceu na noite em que fui levada para o reformatório pela primeira vez. Estava tudo exatamente do jeito como eu lembrava.


Depois de um ano, a única coisa que havia mudado era a grossa camada de poeira que se acumulou durante um ano, nos móveis.


- A casa é sua. Quando completar 16 anos vai poder fazer o que quiser com ela. Até lá tudo fica trancado e os seus pais adotivos guardam as chaves.


- A maioridade não é só aos 18 anos?


- Não no seu caso. Você é maior aos 16 anos. O que acha de me contar o que aconteceu aqui, quando você foi levado pela primeira vez?


- Bom... foi mais ou menos assim...


Eu comecei a contar tudo a ela, desde o momento que minha avó me chamou para jantar, até o dia quando voltei e a encontrei morta. Catherine ouvia tudo com atenção e fazia algumas anotações em um pequeno bloco. Acho que passamos umas 3 ou 4 horas ali, recriando os fatos. Durante o almoço eu falei como foi a minha chegada e a minha “estadia” no ICJA.


Por volta de 1 hora da tarde, o tempo começou a fechar e o céu azul sumiu atrás de nuvens negras. Com a chuva forte o passeio ao parque foi cancelado e a detetive me levou para conhecer o seu lugar de trabalho: O Instituto de Criminalística de São Paulo. Com uma credencial de visitante eu conheci todos os laboratórios e os principais procedimentos para desvendar os assassinatos.


- Bem vinda ao meu habitat...


- É incrível... – comentei, olhando tudo com interesse.


- Kate? – perguntou um homem bonito, forte, olhando Catherine – Hoje não é seu dia de folga?


- Oi Nike, é meu dia de folga sim, mas eu to acompanhando o caso da Angel desde o início...


- Quem é Angel?


- Eu sou Angel – respondi.


- Há! Oi pequena, não te vi ai em baixo, tudo bem com você? – perguntou ele, apertando a minha mão.


- Tudo sim, obrigada.


- Qual é o caso dela? – perguntou ele.


- O das crianças encontradas mortas, perto do reformatório.


- Há! Então essa é a pequena guerreira sobrevivente?


- Isso mesmo.


- Ta gostando do passeio, Angel? – falou o policial, me observando.


- To... quero ser uma CSI e bombeira quando crescer...


- Bom, inteligência para isso, com toda a certeza ela tem... Nike, sabe se a Sara e o Gilbert estão ai?


- Sara está na sala de evidências, preparando uma arma e Gilbert está no escritório dele, lendo.


- Outro caso estranho?


- Eu chamaria de intrigante. Leve a Angel para vê-lo, acho que ele vai gostar...


- Valeu Nike, vamos Angel...


- Tchau pequena – sorriu o homem.


- Tchau detetive Stokes – respondi, indo atrás de Catherine. Nick ficou me olhando um tempo e depois seguiu o seu caminho.


- Como sabia o nome dele? – perguntou Catherine, batendo na porta de um escritório.


- Sou esperta.


- Entre – respondeu uma voz masculina, de dentro da sala.


- Licença... – disse Catherine, abrindo a porta devagar e entrando.


- Kate? Hoje não é seu dia de folga? – perguntou um homem, de uns 50 anos, gordinho. Ele usava óculos e lia um grande livro.


- Eu...


- Veio me trazer pois esta acompanhando meu caso desde o início... – respondi.


- E quem é você? – perguntou ele, me olhando por cima dos óculos.


- Angélica Feberman...


- Ela é a menina de quem te falei, a que fui com Warrick, visitar no hospital.


- Hum... gosta de ler? – perguntou, ao ver o meu interesse no livro aberto em cima da mesa.


- Muito...


- Quantos anos você tem?


- 10... – respondi, pegando um livro de cima de uma pilha, abrindo e lendo.


- Aqui não vai ter nenhum livro que você goste.


- E que tipo de livro o senhor supõe que eu goste? – perguntei sem parar de ler.


- Livros para a sua idade, de contos...


- O senhor não crê que seja muita pretensão, de vossa senhoria, supor, que eu só me interesse por contos infantis? – perguntei em desafio.


- O que disse?


- Não sou uma retardada que só sabe ler contos da carochinha... – respondi, voltando minha atenção para o livro que falava sobre armas - Legal, a detetive Willows tem uma Comet 9mm...


- Do que está falando? – perguntou Kate.


- A sua arma, uma Comet 9 mm – respondi, passando os olhos em outras páginas do livro e largando novamente na pilha.


- Como sabe qual a minha arma? Não estou com ela hoje...


- Não, não esta... pelo menos não a mostra, esta nas suas costas. Mas estava com ela amostra no ano passado, quando foi até o hospital...


- Mas... eu não cheguei a te mostrar...


- Não, mas eu vi. Sou boa com detalhes, e tenho uma memória de ferro. Sobre o que esta lendo?


- Insetos – respondeu ele, meio receoso.


- Hum... bacana. Mas devo admitir que o reino dos cnidários e dos cordados, é muito mais atraente, não que os artrópodes não sejam legais também, é claro.


O detetive olhou para Kate, surpreso.


- Essa menina não é normal... – comentou, me olhando de canto de olho.


- Eu sei – respondeu Kate, rindo.


- Sou o... – disse ele, estendendo a mão para apertar a minha.


- Gilbert Grissom, um CSI nível 4, o chefe – respondi, apertando a mão dele.


- Isso mesmo, como sabe?


- Bom... Eu sei, e isso é o suficiente, não é?


- É, pode ser. Já sabe o que quer ser quando crescer?


- Quero ser uma CSI.


- Tem que estudar muito para isso...


- Eu sei. Sra. Willows, nós poderíamos ir na sala de evidências?


- Er... claro, vamos. Boa sorte Gil...


- Obrigado.


- Só mais uma coisa – falei, parando e me virando para olhá-lo – Página 242, terceiro parágrafo.


- O que tem?


- O inseto que você esta procurando. Ta na página 242.


- E como sabe qual eu to procurando?


- Tá no pote a sua frente, 6 patas, antenas curtas, olhos nas pontas das antenas, formato oval, casca de 1 mm... Muito resistente e vive em áreas mais secas.


Saí da sala com as mãos nos bolsos e Kate me seguiu. Depois que ficou nos observando sair e fechar a porta, Grissom olhou para a capa do livro, olhou novamente para a porta, e resolveu abrir na página que indiquei.


- É, amiguinho – comentou o policial, segurando um pote de vidro com o bicho que eu havia descrito – ela te achou...


A criminalística de São Paulo era muito grande e bonita, e eu olhava tudo com um ar de fascínio.


- Chegamos – disse Kate, parando em frente a uma divisória de vidro.


Dentro da sala havia uma mulher de cabelos pretos, até os ombros, parecia mais nova que Kate. Ela usava um óculos protetor nos olhos, luvas, tampões para os ouvidos e colete a prova-de-balas. Ela levantou a arma, apontou para algo a sua frente, disse alguma coisa – não deu para ouvir pois o vidro era a prova de sons – e atirou uma vez. Depois largou a arma, tirou os protetores para os ouvidos e anotou alguma coisa em uma planilha. Kate bateu na porta e entrou, segui ela.


- Não vi você ai... – comentou a mulher – chegou a muito tempo?


- Não, acabamos de chegar. Essa é a Angel.


- Prazer Angel, sou a detetive...


- Sidle – respondi, apertando a mão dela – A senhora é a detetive Sara Sidle...


- Como faz isso? – perguntou Kate, me olhando confusa.


- Segredo – respondi, me espichando e olhando a arma em cima da bancada.


- Não falou para ela qual era o meu nome? – perguntou a mulher.


- Não, não sei como, mas ela sabe o nome de todos aqui. Problemas com a arma?


- É, já atirei de vários ângulos, mas nenhum é o mesmo. Parece uma falha na altura, como se tivesse sido uma criança, o atirador...


- Posso tentar? – perguntei.


- O que? Você, atirar? Nem pensar... – respondeu Kate – Sua mãe não ia gostar nada disso...


- Ela não precisa saber, precisa?


- Você é muito pequena...


- Pode ajudar vocês. Se o tiro foi realmente foi dado por uma criança, talvez eu consiga atirar como ela...


- Por mais absurdo que pareça, acho que pode ser uma boa ideia – comentou Sara – Afinal, que perigo poderia ter, estamos em uma sala fechada, usamos proteção, sei que é errado, mas pode ser decisivo para o caso...


- Não sei...


- Deixa vai... – pedi, com cara de anjo.


- Tá bom, mas ninguém pode ficar sabendo disso.


- Combinado – respondeu Sara, fiz que sim com a cabeça, sorrindo.


- Tá bom, Sara, você viu o Warrick?


- Acho que tá fazendo um lanche...


- Ótimo, vou falar com ele, cuida da Angel para mim?


- Claro.


- Obrigada, eu já volto. Comportem-se, as duas.


Esperei Kate sair da sala e olhei Sara.


- Por que a detetive Willows está brava?


- Ela não tá, esse é o normal dela – riu Sara.


- Você é bem diferente dela...


- É bastante, põe as luvas.


- Você consegue me entender, não consegue?


- Do que está falando? Agora coloca os óculos...


- Também cresceu em um orfanato. Sabe o que é não ter uma mãe e um pai...


Ela parou de por o cartucho na arma e me olhou nos olhos, séria.


- Como sabe disso?


- Sei tudo sobre você, somos parecidas, detetive Sidle.


- Vi sua ficha. Tem uma mãe e um pai, não viveu em orfanatos – falou ela.


- Fui adotada a 1 ano... antes disso morei 5 anos com minha avó, também adotiva.


- O que aconteceu com os seus pais?


- Não sei. Vivi na rua quando era pequena, me virava sozinha...


- Pronta para atirar? – perguntou ela, respirando fundo, desconfortável pela conversa.


- Pronta...


- Vamos fazer o seguinte: vamos ali para frente da bancada, e você atira mais ou menos onde a pessoa atirou...


- Ta...


Me posicionei e apontei a arma para o alvo. Ela se curvou e segurou meu braço.


- Eu te seguro, dou o sinal, e você atira.


- Não precisa, posso fazer isso sozinha...


- Mas esta arma tem muita pressão, pode repuxar e te machucar.


- Bom, então teríamos os mesmos ferimentos do assassino. Eu não vou me machucar, tá tudo bem...


- Tem certeza?


- Absoluta...


- Ok, pronta?


- Sim – confirmei respirando fundo.


- Sabe o que dizer né?


Me posicionei, apontei novamente a arma para o alvo, respirei fundo, e mirei para o X vermelho.


- Dois tiros – anunciei, e atirei duas vezes. Um tiro na cabeça e o outro do peito.


Sara tirou a arma da minha mão, largou na bancada e caminhou até o alvo.


- Eu não acredito... – comentou, olhando bem de perto, o tiro da cabeça e depois do peito.


- O que houve? – perguntei, me aproximando.


- O seu tiro...


- O que tem?


- Ele foi... perfeito... você conseguiu atirar exatamente onde foram os tiros de verdade...


- A isso, é, tenho boa mira – comentei, largando as luvas.


- Conseguiria fazer isso de novo?


- Claro, sem problemas – respondi, tirando os óculos.


- Vem comigo... – chamou Sara, recolhendo as duas balas do chão e largando junto com umas anotações.


- Onde nós vamos? – perguntei, segurando a mão esquerda dela, quando saímos da sala.


- Falar com o Greg.


- E quem é Greg?


- Ele trabalha com as análises de DNA...


- E o que vamos falar com ele? – perguntei.


- Nós vamos pedir o Jimmy emprestado.


- Quem é Jimmy?


- Você já vai descobrir... – respondeu ela, abrindo a porta e entrando no laboratório – Oi, Greg...


- Sara, que surpresa, precisa de alguma coisa?


- Sim, onde está o Jimmy?


- No armário, mas... por que precisa dele?


- Tive uma ideia, louca e genial ao mesmo tempo – respondeu ela, soltando minha mão e pegando um boneco de borracha, com um suporte em baixo, desses que só possuem o tronco e são do tamanho de uma pessoa – Vem comigo, Angel. Obrigada Greg...


- De nada.


Voltamos para a sala de tiro, Sara posicionou o boneco no fundo da sala e colou um adesivo marcando os lugares onde eu deveria atirar. Tudo pronto, atirei novamente, acertando o centro do alvo indicado.


- Muito bom! – vibrou Sara, tirando meus óculos de proteção e os meus tampões de ouvido.


- Você fez faculdade de psicologia, não é? – perguntei.


- Como sabe que faculdade eu fiz?


- O jeito como fala comigo...


- O que tem?


- Só quem fez faculdade de psicologia fala desse jeito. Só que você é especial, como uma irmã mais velha... ai... – reclamei, sentindo uma terrível dor de cabeça. Algumas imagens apareceram em flashes na minha mente, não consegui distinguir o que era, mas senti que tinha a ver com Débora.


- Você está bem? – perguntou Sara, se abaixando e ficando da minha altura.


- Eu quero ir pra casa... – respondi, nervosa, tremendo inteira – Eu quero ver minha mãe, agora... AGORA!


- Tá bom, calma. Vem, vou te levar até a Kate.


Ela segurou minha mão e me levou até a sala onde eles lanchavam. Não havia ninguém lá, então fomos até Grissom.


- A Kate? Foi atender a um chamado urgente, algum problema?


- Er...


- Minha mãe, eu quero a minha mãe!


- Angel? – perguntou Gil – Aconteceu alguma coisa?


- Não sei – respondeu Sara – Ela ta estranha, quer ir embora urgente...


- Leva ela, eu te cubro. Er... Obrigado pela dica da página, Angel...


Não respondi nada, só apertei mais forte a mão de Sara. Quando entramos no carro e fomos para a estrada, eu tive novamente os flashes na minha cabeça, agora cada vez mais nítidos. Chovia bastante e o movimento na estrada estava intenso.


Na ideia de evitar o engarrafamento, Sara cortou caminho indo para uma estrada de terra que cortava Terra Branca e ia para São Bento. Quando estávamos próximas a terra dos canaviais, um carro atravessado no meio da estrada chamou atenção de Sara, que freou bruscamente e desceu do carro.


- Fica ai... – ordenou ela.


- Não – respondi.


Tirei o cinto e desci correndo do carro, quando nos aproximamos mais, eu pude ver que o carro estava seriamente amassado, como se tivesse capotado, e ao lado da porta havia uma senhora, ajoelhada no chão, chorando.


- Vai ficar tudo bem – dizia a mulher para a outra, pela janela quebrada, dentro do carro, no banco do carona, sangrando bastante.


Quando estava perto o suficiente para reconhecer as pessoas, o meu coração disparou e eu corri até a mulher.


- Mãe! – gritei, parando ao lado da porta, junto com a mulher. Sara pegou o celular e discou um número bem rápido – Mãe... não...


- M-minha pequena... – disse ela, com dificuldade – eu te amo tanto...


- Eu também, mãe... – falei chorando – Vai ficar tudo bem, eu te juro...


- Não chora minha princesa... a mamãe esta bem...


- Não fala mais mãe... tem que guardar energia...


- E-eu to morrendo...


- Não... Não pode morrer, não você...


- Diz para sua irmã que eu amo muito ela, pede para o Fausto cuidar bem de você e da Clarinha, e diz para ele nunca me esquecer, a sua tia Raquel, eu tentei, eu tentei impedi-los... eu juro...


- Mãe, acorda, abre os olhos – chamei, chorando e passando a mão no rosto dela – Acorda mãezinha... não pode me deixar... você também não...


- Não adianta pequena... – chamou Remédios, me abraçando e me puxando para longe do carro.


- Me solta! Eu quero a minha mãe!


Consegui me soltar de Remédios e corri novamente para o carro, sacudindo a porta amassada com bastante força e raiva, e conseguindo abrir. Abracei o corpo de Débora, fazendo com que o sangue que havia nela, me sujasse muito. Coloquei os braços em volta do pescoço dela e escorei meu rosto no seu colo. Era a segunda pessoa em um ano, que era tirada de mim a força, fazendo com que o ódio e a sede de vingança que eu tinha dentro de mim, só aumentasse.


- Angel... – disse Sara, parando ao nosso lado – Vem comigo, daqui a pouco os paramédicos vão chegar...


- Eu não consegui impedir... – chorei.


- Você não tinha como, pequena, agora vem...


Soltei Débora e abracei Sara. A chuva só piorava e eu tremia de frio. A detetive me levou até o seu carro, pegou um casaco seco no porta-malas, e colocou em mim. Me sentei no colo dela e escorei minha cabeça em seu ombro, chorando muito e olhando para o carro batido. Dona Remédios já havia subido na sua carroça e voltado para a cidade. Demorou uns 15 minutos até o socorro chegar. Sara teve que descer do carro para falar com os paramédicos e eu me deitei no banco de trás.


Acho que nem preciso dizer que foi uma noite agitada. Sara me levou para casa e quando eu entrei no meu quarto, encontrei Clara, sentada em um canto, abraçada numa foto nossa com Débora, chorando. Fechei a porta e me sentei ao lado dela, colocando o braço sobre o seu ombro. Ela apoiou a cabeça em mim e respirou fundo, soluçando.


- Você acha que ela sofreu? – me perguntou ela.


- Ela dormiu... – falei, ainda chorando – não doeu... Sabe que ela te amava muito ne?


- Eu quero a mamãe Angel... Por que ela tava nos abandonando?


- Ela não tava, sabe que não... ela nunca nos abandonaria...


Ficamos um tempo ali, juntas, chorando, eu tentando manter a calma, e depois Clara foi se trocar. Tomei um banho quente e me deitei na cama, pronta para dormir, quando ouvi alguém bater na porta, Clarinha entrou, já de pijama e abraçada no travesseiro, e fechou a porta.


- Posso dormir com você hoje? Não quero ficar sozinha... – perguntou ela, parando ao lado da minha cama.


- Vem... – chamei, dando espaço para que deitasse ao meu lado.


Clarinha chorou até cair no sono, abraçada em mim, quando amanheceu, Ana foi me buscar, como havia prometido, e foi Lurdes quem atendeu a porta.


- Oi dona Ana – cumprimentou ela, desanimada.


- Lurdes, que cara é essa? Aconteceu algo?


- A senhora ainda não sabe?


- O que eu deveria saber? – perguntou a bombeira.


- A dona Débora...


- O que tem a Débora, Lurdes? O que houve com a minha amiga?


- A Débora morreu – respondeu Raquel com frieza, descendo as escadas.


- O que?! – perguntou ela, chocada – Como assim? Isso é alguma brincadeira de muito mal gosto Raquel?


- Não – respondeu Raquel, ainda sem demonstrar o mínimo de sentimento – A Débora morreu, o corpo vai ser enterrado agora, já devem estar levando ele para o cemitério.


- E você fala isso assim?! – perguntou a bombeira com indignação – Ela era sua irmã mais velha!


- Todo mundo morre um dia, e a Débora mereceu, você acredita que ela me trancou no quarto para fugir com o Amador Giácomo? Eu não sei se você sabia, Ana, mas a sua querida amiga era amante dele...


- Sua... – bufou Ana, avançando em direção a Raquel.


Desci correndo as escadas e parei na frente de Ana, segurando ela.


- Deixa madrinha, vai ter volta... O que é dela ta guardado. Leva eu e a Clarinha ao cemitério? A Dona Amália e o Seu Miguel, padrinhos da Clara, vão nos encontrar lá...


- Claro Angel, vai chamar sua irmã, eu vou esperar no carro antes que eu faça uma bobagem...


Ela saiu da casa batendo a porta com força e eu subi correndo as escadas. Clara já estava pronta, ela usava um vestido preto, e eu usava o uniforme da corporação, como Ana, com uma fita preta de uns 6,5 cm de largura, com velcro, enrolada no braço direito, por cima do casaco com as iniciais Sol. Feberman no peito.


A Tenente Presley nos levou ao enterro e depois de muita insistência da minha parte – eu precisava ocupar minha mente o máximo possível - ela me levou para passar o dia com ela no corpo de bombeiros, onde todos adotaram a faixa de luto. Lá eu conheci os procedimentos básicos de segurança e participei de um treinamento de resgate e de primeiros socorros. Voltamos para casa a noite, depois de jantarmos na corporação. Quando entrei no meu quarto, levei um susto. Haviam duas malas em cima da cama, fechadas e aparentando estarem cheias.


- Mas... o que aconteceu aqui? – perguntei em voz alta.


Desci correndo as escadas em tempo de ver Fausto brigando com Clara.


- Eu tenho nojo de você! – gritava ele, apertando o braço esquerdo dela – Você é podre igual a ela! Aquela imunda que me traía!


- Pai... – pediu ela, chorando.


- NÃO ME CHAMA DE PAI! – gritou ele, fedendo a álcool.


- Solta ela – avisei, séria.


- QUEM VOCÊ PENSA QUE É PARA ME OBRIGAR, SUA ÓRFÃZINHA? – gritou ele, era visível sua alteração devido as histórias que Raquel contou, e a grande quantidade de álcool que havia ingerido – ELA ME TRAIU A VIDA TODA, SÓ TE ADOTAMOS POR QUE ERA O QUE ELA QUERIA, EU NÃO TE QUERO MAIS AQUI!


- Mamãe não te traiu... – falei, tentando ignorar a dor pelo que ele dizia – Ela te amava de verdade, não pode acreditar em tudo o que Raquel diz, ela nunca gostou de ver a felicidade da mamãe... tem uma explicação para que ela estivesse naquele carro com o Amador, algo que a Raquel poderia explicar, se quisesse...


Ele cambaleou até mim e me deu um tapa forte na cara.


- CALA BOCA, SUA IMUNDA DELINQUENTE! QUEM VOCÊ ACHA QUE É PARA FALAR DA RAQUEL, UMA MULHER SANTA!


Ele pegou o braço de Clara, sacudindo-a com raiva.


- Eu sou Angel Feberman... – respondi, levantando a arma e apontando para ele.


- O-Onde conseguiu isso? – perguntou ele, assustado, recuando uns passos.


- Peguei no carro da detetive Sidle, agora solta a Clarinha... – alertei.


- Pronto... – respondeu ele, soltando Clara, que correu e se escondeu atrás de mim – P-Por que pegou essa arma?


- Fiz uma promessa...


- Ótimo – respondeu Raquel, descendo para a sala também com uma arma na mão – então pegue sua promessa e as suas coisas e saia da minha casa agora.


- Mas... eu moro aqui...


- Não, não mora. Você veio pra cá por que a Débora queria, ela morreu, agora você vai embora...


- Mas pra onde eu vou? Não posso sair...


- Sai ou eu atiro em você, sua trombadinha imunda, não quero você na minha casa, se vira...


Desengatilhei a arma e subi correndo as escadas, entrando no quarto e batendo a porta. Quando peguei minha mochila e minha mala para sair do quarto, Clara entrou e fechou a porta rápido, colocando a chave no bolso.


- O que tá fazendo? – perguntei.


- Você não pode ir – falou ela, chorando – Não pode me deixar aqui.


- Você ouviu a sua tia, não posso ficar Clarinha...


- E pra onde você vai?


- Não sei... vou falar com a madrinha, amanhã de manhã... o telefone dela só dá desligado agora...


- Onde vai passar a noite?


- Tem uma caverna perto do lago, vou ficar lá...


- E o que vai acontecer comigo?


- Você vai ficar aqui, com sua madrinha, o seu padrinho e a Lurdinha...


- Você é minha irmã! – falou ela, aos soluços - Não pode me deixar também!


- Sabe que eu não sou... Ouviu a Raquel, só a mamãe me queria aqui...


- Ela mentiu, eu queria... queria muito você... Eu te amo... é minha irmã mais velha...


- Vou sentir sua falta – falei, soltando as coisas e abraçando ela forte, chorando – Se cuida ta... e nunca deixa ninguém te maltratar, entendeu?


- Não vai... – implorou ela – Por favor...


- Te amo... – respondi, dando um beijo na testa dela, coloquei a mão no bolso do casaco e tirei uma foto da Débora – pega, pra você nunca esquecer dela... nem de mim... vi que sumiram as fotos dela da casa...


- Angel... – pediu ela aos soluços.


Respirei fundo, peguei minhas coisas e saí. Não chovia, mas a umidade do ar deixava a noite fria. Fui até o estábulo, peguei o cavalo que Débora havia me dado de presente, o Trovoada, que aprendi a domar, e coloquei todas as minhas coisas em uma grande mochila especial para cavalgar, junto com os meus livros, e amarrei a mala com a minha mochila em cima. Como eu era a única que conseguia chegar perto do cavalo, montei nele e saí a galope para a floresta onde morava a “bruxa” Remédios.


Perto do riacho havia uma gruta escura. Com a ajuda de uma lanterna, me ajeitei lá dentro. Aquele lugar era frio, mas servia para me esconder. Coloquei mais um casaco e me encolhi contra a pedra, deitando a cabeça na mochila.


Fiquei vivendo ali por uma semana, mais ou menos, saia para comer e tomava banho no riacho, sempre a noite e escondida. Na terceira noite, eu já não chorava mais, só ficava em silêncio, relembrando todas as cenas que presenciei... vó Nanda morta, Débora morta... a dor rasgava e me queimava por dentro, eu pensava em Fausto, bêbado, Raquel andando com uma arma e ameaçando a todos, a máscara havia caído, as fotos de Débora incendiadas... e eu estava novamente nas ruas.


- Angel... – ouvi um sussurro, de fora da gruta – Angel...


- Quem é? – perguntei, segurando a arma e saindo devagar, olhando ao redor.


- Alguém que pode te ajudar... – falou um homem com um turbante, se aproximando de mim, suas roupas eram estranhas e ele caminhava quase flutuando, sem fazer barulho nas folhas secas da floresta.


- Como? – perguntei desconfiada.


- Você já ouviu falar em Lord Voldemort?


- Já...


- E se eu dissesse que, se você aceitar trabalhar para ele, ele pode lhe dar tudo o que mais quer nessa vida?


- E como sabe o que mais quero? – perguntei séria, segurando ainda a arma com força, ao lado do corpo.


- Você quer vingança... Milorde gosta disso... Será que seria capaz de matar em nome dessa vingança?


- Eu... não sei...


- Milorde acredita em você, e ele acha que você consegue... Ele pode te dar comida, dinheiro... e a chance de vingar a morte da sua avó e até da sua mãe, se quiser...


- Por que eu?


- Porque você é especial... – respondeu ele, largando um pacote no chão – Isso é para mostrar o quanto pode valer a pena, estar ao lado dele... Pense... diga o nome dele em voz alta, e eu voltarei, caso aceite...


O homem sumiu numa nuvem preta e deixou o embrulho. Olhei ao redor, procurando-o e caminhei devagar até o pacote, pegando-o. Voltei para dentro da minha gruta e abri a embalagem, dentro havia um saco com moedas douradas, uma pequena adaga e comida. Meu coração disparou e eu peguei tremendo um pedaço do bolo e enfiei inteiro na boca, fechando os olhos. Era a primeira coisa nova que eu comia em uma semana.


Comi devagar, e fiz aquele pacote de lanche render a semana seguinte inteira, foi então que mais um dos meus problemas começou, Ana estava atrás de mim. Óbvio, eu era uma garota órfã que havia roubado a arma de uma policial... No inicio eles ficaram somente na cidade, mas então começaram a procurar também na reserva e na floresta, bateram na casa da bruxa Remédios e estavam vasculhando cada pedaço daquele lugar, se eu não queria voltar para o Instituto, eu precisava dar um jeito de ir embora dali antes que me achassem. Esperei anoitecer e tudo silenciar, aproveitando o tempo para criar coragem para o que pretendia fazer.


- Lord Voldemort... – falei em voz alta, do lado de fora da gruta e com a mochila nas costas.


- Sábia escolha... – falou o homem, aparecendo atrás de mim e me assustando – Eu tinha certeza de que era muito esperta... Então, o que vai querer fazer?


- Me vingar... – falei, deixando os olhos avermelharem e os caninos crescerem - quero matar quem matou minha avó e tirar todas as crianças de lá...


- Como quiser... – falou ele, pegando um galho e uma pedra do chão. Tirou então um graveto do meio das vestes e apontou para os dois, murmurando alguma coisa, os objetos brilharam e ele guardou o graveto de volta na roupa – Pronto... a pedra vai lhe levar até o Instituto, e o galho, até a casa dos Gaunt... lá voltarei a te procurar... terá 20 minutos no máximo para tirar quem quiser do lugar.


Ele me entregou as coisas e recuou dois passos, sorrindo. A pedra na minha mão brilhou e eu a segurei firme entre os dedos. Senti então um puxão que parecia vir do umbigo, e meus pés saíram do chão, senti náuseas, como se tivessem me sacudindo dentro de uma máquina de lavar roupas, e então caí no chão de pedra, rolando e batendo com força contra uma parede.


- Ai... – resmunguei, levantando e verificando se o pedaço de madeira que ele me deu ainda estava comigo, e o encontrei caído a uns 2 metros de distância.


Peguei e escondi-o atrás de um tonel de lixo, coloquei minha mochila dentro de uma caixa e coloquei algumas sacolas de lixo em cima, para esconder. Não tinha sido uma viagem confortável e eu não entendi o que era aquilo, mas reconheci o lugar quando saí do beco. Eu estava a pouco mais que duas quadras do Instituto, não era hora de reclamar de dor. Coloquei a arma presa na cintura, na frente, por debaixo da blusa, e coloquei meu capuz, fechando o casaco.


Caminhei decidida até o lugar, devia ser por volta das 3h da manhã e a rua estava completamente deserta. Meu corpo tremia no que era uma mistura de frio, medo e excitação. Toquei a campainha e uns 5 minutos depois, uma mulher abriu a porta, os olhos inchados, aparentemente estava dormindo.


- Olá... – falei no tom mais doce que encontrei, e minha voz saiu tremida – Eu sou a Angélica... já vivi aqui na cela 13... fui expulsa de casa, eu não sabia para onde ir...


- Na 13? – sorriu ela, maliciosamente, aparentemente despertando, e caminhando até o portão, abrindo o cadeado – Que bom que voltou...


Quando entrei, tirei a arma da cintura e apontei para ela, eu tremia descontroladamente, mas estava decidida do que tinha que fazer.


- Que bom que ficou feliz – respondi, mostrando um pouco a raiva.


- O que pensa que esta fazendo? Quer me assustar com um brinquedo?


Ela deu um passo na minha direção e eu atirei, acertando seu rosto, que explodiu e espirrou sangue por todos os lados com o tiro, o estouro alertou quem estava lá dentro, e eu peguei as chaves da cintura dela, tentando não olha-la, controlando a vontade de vomitar, e me escondi. O homem careca saiu e olhou a mulher, apavorado, então procurou ao redor, quando fez menção de voltar e fechar a porta, segurei a arma com as duas mãos, para controlar a tremedeira e atirei, acertando-o no peito, o homem caiu, os olhos arregalados. Saí de onde eu estava e entrei no lugar, abrindo, ainda trêmula, o cadeado que dava para o corredor, e olhando assustada ao redor... Eu havia matado duas pessoas em menos de 5 minutos, e estava com muita vontade de vomitar, a cena do rosto estourado da mulher fixado na minha cabeça. Me concentrei e corri pelo corredor, indo direto para a cela 13 – A, destranquei todos os cadeados e puxei a grade, ouvi então um grito e vi a filha da carcereira correndo na minha direção com o taco de basebol, segurei a arma com a mão direita apenas e atirei, novamente o tiro foi no rosto e sangue espirrou pela parede, parte do cérebro dela, exposto.


Aquilo era demais para mim, me apoiei na parede e vomitei em frente a porta da salinha onde eram feitas as marcas nas crianças. Limpei a boca na manga do casaco e destranquei as fechaduras da porta, empurrando-a. As crianças estavam encolhidas a um canto, apavoradas e eu entrei correndo e procurando Gabriel, ele estava sentado na sala externa, observando a escuridão.


- Angel? – perguntou uma menina atrás de mim, e eu me virei, observando-a.


- Amanda? – perguntei sorrindo e abraçando-a – Você esta viva...


- O que ta acontecendo? Você está pálida, ta tremendo... e o que foi aquele barulho?


- Eu vim tirar vocês daqui... – avisei, e então olhei para todos e gritei – FUJAM, A PORTA ESTA ABERTA, SAIAM E CORRAM O MÁXIMO QUE PUDEREM...


As crianças não se mexeram, aparentemente em pânico, mas Gabriel puxou a mão de Latifa e correu até mim. Segurei a mão de Amanda, sem dar chance para que ela falasse, e corri para fora, arrastando-a. Amanda pegou as chaves da minha mão e parou bruscamente.


- Precisamos soltar os outros também – falou ela, assustada.


- Tá – concordei – Mas rápido...


Ela abriu a porta da 13-B e a empurrou, haviam adolescentes mais velhos lá dentro, era uma sala escura e completamente sem janelas, tinham pelo menos 15 pessoas lá.


- Saiam, estão livres... – falou ela, nervosa – ajudem as crianças da 13-A, e corram...


- Vem Amanda – pedi, pegando sua mão.


Ela jogou as chaves para a primeira menina a aparecer na porta.


- Tira todo mundo daqui, por favor... – pediu ela, e a menina concordou.


- Obrigada – gritou a garota, correndo até a sala 13-A enquanto os outros se dividiam e abriam as portas das celas.


No final do corredor, Laina apareceu com uma arma, e eu apontei para ela e atirei duas vezes, decidida, fazendo a mulher cair ainda com vida, sangrando muito, em frente a saída do corredor.


- Angel, o que você fez... – falou Amanda, apavorada, cobrindo a boca.


- To salvando a vida de vocês – respondi, voltando a puxá-la, correndo com Gabriel e Latifa atrás de nós.


Pulamos por cima do corpo da mulher. Com os barulhos mais dois homens apareceram com cassetetes, e eu atirei nos dois, Amanda gritava e pulava de susto a cada tiro. Quando passamos pela porta, o homem careca estava sentado, com dificuldade de respirar, discando no celular. Gabriel saiu na frente com a irmã e eu apontei para a cabeça do homem, que me olhou rindo, completamente ensanguentado.


- Eu vou sobreviver... – riu ele, com a voz rouca – e acabar com a sua vida... Vou te caçar até o inferno... fedelha imunda...


- Angel, vamos... – chamou Amanda, puxando minha mão, mas eu não conseguia parar de olhar para ele – Anda... deixa ele aí...


- Você não vai sobreviver... – falei entre dentes, descarregando a arma no peito dele, os gritos de Amanda abafados pelo som dos tiros – E eu não acredito no inferno...


O homem caiu morto e eu baixei a arma, já sem uma bala sequer, ainda quente. Um barulho de sirene me tirou dos meus devaneios, meu corpo formigava e eu segurei a mão de Amanda o mais forte que consegui e corremos juntas para fora dali, deixando os corpos espalhados pelo caminho. Corremos até o beco eu tirei as sacolas de lixo, encontrando minha mochila e escondendo a arma dentro, colocando-a nas costas. Quando peguei o pedaço de madeira, ele começou a brilhar, e eu segurei novamente a mão de Amanda.


- Todos – avisou Gabriel, ofegando – segurem onde conseguirem do galho...


Vi as crianças e os adolescentes correndo pela rua, se escondendo, fugindo do Instituto. Obedecemos a ordem dele, relutei um pouco, mas o barulho dos carros de polícia ficaram mais alto, o brilho ficou mais intenso e novamente senti meus pés saírem do chão.


Fomos arremessados contra um gramado verde, o sol estava despontando e o ar era muito frio. Levantei rápido, procurando por Amanda, e a encontrei caída inconsciente, a alguns metros de mim. Corri até ela e a sacudi, levou alguns segundos para que abrisse os olhos devagar, e então respirei aliviada.


- Não gostei disso... – resmungou ela, sentando devagar – Não gostei nada disso MESMO.


- Onde conseguiu uma chave-de-portal? É magia muito avançada... – falou Gabriel, olhando ao redor.


- Tenho meus meios – respondi.


- Estamos em casa... – falou Latifa, reconhecendo o lugar – Gabi, estamos em casa...


- Mas... como... – falou ele, olhando ao redor, sem acreditar.


- Eu fiz uma promessa – falei, abrindo a mochila e pegando a arma.


- O que pretende fazer com isso? – perguntou Amanda, me observando, segurando o pulso direito.


- Não vou precisar dela aqui – respondi, caminhando até um riacho a alguns metros de nós, e jogando a arma na água, que logo sumiu na correnteza.


Latifa correu em direção a mansão que se erguia ao longe e Gabriel a seguiu. Minha mochila brilhou e eu corri, pegando-a e segurando Amanda contra ela, quando Gabriel olhou para trás, nós já havíamos sumido. Aparecemos em um beco sujo, ratos caminhavam sem pressa, ignorando nossa presença.


- Onde estamos? É sério, não quero fazer isso mais isso, dói muito... – falou Amanda, levantando, ainda segurando o pulso com uma careta de dor e olhando ao redor.


- Como está o seu inglês? – perguntei, espiando para fora do beco.


- Tão bom quanto meu português, nasci falando ele, então... por quê?


- Porque acho que estamos em Londres... – respondi, olhando o Big Ban, ao longe, que reconheci de fotos que vi nos livros de história, me virei e voltei a encará-la – Preciso te contar algo...


- É o tal do Voldemort, não é? – perguntou ela, sentando em um caixote e me observando, sem soltar o pulso – Foi ele que nos trouxe até aqui...


- Aceitei trabalhar para ele, em troca, ele me deu ferramentas para salvar vocês...


- E agora? Ainda somos órfãs, e agora estamos na rua... Ou melhor, eu sou órfã, cadê sua mãe?


- Ela... ela morreu... E você esta livre, pode ir onde quiser... – respondi, respirando fundo e sentando ao lado dela.


- Eu vou onde você for...


- Amanda, eu não tenho mais ninguém, de novo...


- Agora tem... – respondeu ela, segurando minha mão, com a mão esquerda – Estamos juntas nessa...


- Não precisa fazer isso...


- Não, mas eu quero...


- Você esta machucada – desconversei, pegando o pulso direito dela com cuidado e olhando.


- Caí em cima do meu braço, essas viagens não foram legais, mas não é nada demais, daqui a pouco passa...


Olhei ao redor e encontrei um pedaço de madeira pequeno, peguei uma faixa na minha mochila, e imobilizei o pulso dela.


- Assim deve diminuir um pouco a dor... – falei, voltando a me sentar, e me escorando na parede.


- Onde aprendeu isso?


- Minha madrinha... Ela me ensinou primeiros socorros, e me deu um kit...


- Angel, como teve coragem, para matar aquelas pessoas?


- Não sei... É como se eu soubesse que era capaz de fazer, antes de fazer... eu só... só precisava salvar vocês... era o certo...


- Ta tudo bem... – interrompeu ela, enganchando o braço no meu e apoiando a cabeça em meu ombro – Eles mataram muitos antes, o mundo esta mais seguro agora, sem eles... Não precisa se explicar.


Quando começou a amanhecer, o cheiro de pão saindo do forno, tomou as ruas, e percebemos que já estávamos a muitas horas sem comer. O ar estava muito frio, e deixei Amanda com meu casaco do corpo de bombeiro,s e colocamos uma peça de roupa extra, por cima da que estávamos usando.


Saí pelas ruas escutando atenta as pessoas que madrugavam para colocar frutas e verduras nas feiras de rua, absorvendo cada palavra, assimilando com tudo que aprendi no curso de inglês que fiz durante 1 ano em São Paulo. Me aproveitei da distração dos trabalhadores e roubei algumas frutas e legumes que podiam ser comidos cru, enfiando nos bolsos.


Uma padaria jogou um saco de bolos e salgados na lixeira dos fundos, e eu peguei e corri para o beco. Dividimos o que peguei e comemos primeiro as sobras da padaria, os doces estavam borrachudos, mas maravilhosos, principalmente pra quem já tinha perdido a noção de quanto tempo estava sem comer.


- Nos dias que se seguiram, ficamos nos alimentando de pequenos furtos, fosse de restos de comida, fosse de dinheiro. Não foi difícil aprender a identificar alvos fáceis de bater a carteira.


Amanda não se sentia bem em roubar, então fiquei com essa tarefa. Por um mês a polícia corria e eu a despistava, mudávamos de beco toda noite, éramos crianças sozinhas na rua, um alvo fácil para alguém com más intenções, mas eu tinha a malandragem, e Amanda a cara de menor doce e abandonada, éramos boas em nos safar.


O frio ficou mais intenso quando dezembro entrou, uma fina neve tomou a cidade. Com a queda da temperatura, as noites ficaram mais complicadas de se aguentar, era difícil achar um lugar seguro e quente, e logo fomos pegas, já que as opções de esconderijos fechados eram poucas.


- A quanto tempo vocês vivem na rua? – perguntou o homem, enquanto nos levava para um abrigo.


Amanda segurou minha mão com força, e olhou para o homem pelo retrovisor, o corpo todo dela tremia, eu retribuí o aperto e a olhei nos olhos com o máximo de confiança que consegui, e então olhei para o homem, pelo retrovisor.


- Não vai nos machucar – avisei, séria.


- Claro que não – respondeu ele, com sinceridade – Vou levar vocês para um lugar onde possam tomar banho, e comer algo. Que idade vocês tem?


- O suficiente para se virar, pode nos deixar ir, não vamos criar problemas... – falei.


- Eu tenho 32 anos e ainda acho que não tenho idade o suficiente para me virar sozinho, ainda moro com a minha mãe... vocês são irmãs?


- Somos – respondeu Amanda, se enchendo de coragem.


- Posso estar muito errado, mas algo me diz que vocês são a dupla dos “Pega-bobos” ali do centro... não é muito comum que meninas de rua sejam loiras de olhos azuis... as pessoas acham que um anjo levou suas carteiras... digo que... não é comum, porquê geralmente meninas bonitas assim são pegas rápido e morrem nas mãos de negociantes, vocês devem ser extremamente inteligentes. Estamos chegando...


Ele estacionou o carro em um pátio e desceu, abrindo a porta para nós. Amanda desceu e continuou segurando minha mão com força.


Ele nos levou para dentro e uma mulher jovem nos recebeu com um sorriso, eu estava com medo, mas por Amanda, não podia demonstrar.


- O anjo batedor de carteira! – falou ela, animada, me olhando – Por Deus, você pegou O Anjo do Pega-Bobo!


- Fui eu que roubei – mentiu Amanda, e eu a olhei surpresa.


- Não – respondi – Fui eu...


- Sabem que se não falarem a verdade, as duas vão para a sala do reformatório né? – perguntou ela, nos observando.


- Acho que elas não ligam para isso – falou o homem, nos observando – Só vamos dar banho nelas e alimentá-las, amanhã resolvemos a situação das duas.


- Venham comigo... – chamou ela, pegando minha mochila e seguindo na frente.


- Não toca na minha farda! – avisei, séria.


- Você tem família, Feberman? –perguntou a mulher, lendo o nome nas costas de Amanda, e olhando para ela.


- Minha mãe morreu – respondi, séria – O casaco é meu.


- Como se chamam? – perguntou ela, abrindo um caderno.


- Angélica Kubschesk Feberman – respondi.


- Amanda Reynaldo – respondeu Amanda.


A mulher pegou o celular e discou.


- Elas estão nas listas... – avisou a mulher, e voltou a desligar – Não vou por suas roupas fora, mas vocês vão tomar banho e colocar roupas limpas e quentes, venham.


Ela viu as roupas dos nossos tamanhos nos armários, e nos levou até um banheiro onde nos deu sabonete, toalhas, pasta de dentes e escova. Era um vestiário com aparência feia, mas parecia limpo, e nós não tomávamos um banho de verdade a semanas.


No Brasil, passei quase todo o verão tomando banho de cachoeira com Clarinha e as outras crianças, eu amava água, e aproveitei e me esfreguei o máximo que pude. Quando saí do banho, parecia outra pessoa, completamente irreconhecível.


Ganhamos tudo limpo, roupas intimas e abrigos, além de tênis, grossos casacos, luvas e gorro. Como tínhamos sobrevivido as noites de neve na rua, era algo que nem nós, nem quem nos encontrou, podia explicar.


- As outras crianças, já estão dormindo – avisou a mulher, antes de abrir a porta – Acho que não vai adiantar separar vocês, então podem dormir na mesma cama, mas não quero um ai...


- Sim senhora – concordou Amanda, segurando minha mão.


Nos deitamos juntas e nos cobrimos, era a primeira vez, desde que fui expulsa de casa, que eu deitava em uma cama para dormir. Quando amanheceu, senti falta das ruas.


- Acorda anjinho... – falou uma garota, me arrancando da cama e me jogando no chão.


Tateei os bolsos do casaco, procurando meus óculos, mas antes que eu conseguisse colocá-los, senti um chute na mão, e ele caiu. Tudo que eu via ao redor, não era mais que um borrão, vultos que me empurravam, e o que me doeu mais do que os socos que eu estava levando: o choro de Amanda.


Vi um vulto arrastando outro aos gritos, e corri na direção deles, me atirando contra o vulto maior, que caiu. Eu queria achar Amanda, mas sem os óculos era quase impossível, e os gritos de incentivo a uma luta, tornavam difícil me orientar. Levantei sem saber para que lado andar, e alguém pulou em mim, começando a me encher de socos, a única certeza que eu tinha, era que sem meus óculos, nem fugir eu conseguiria.


O vulto grande que me batia, me ergueu pelo casaco e me jogou contra a parede, rindo, eu parecia um brinquedo na mão de alguém que, pela voz, parecia uma menina bem mais velha.


- Então o “Anjo Pega-Bobo” foi finalmente pega... – falou ela – Sabia que mais da metade de quem tá aqui, tá só por quê estavam caçando você? Só não entendo como foi tão difícil pegar duas pirralhas idiotas...


- Não posso fazer nada, se vocês são tão burras a ponto de serem pegas – retruquei, e os socos ficaram mais fortes e vieram de mais lados.


Amanda gritava e implorava que parassem, mas eu continuei apanhando. Quando finalmente alguém chegou, eu mal conseguia parar em pé, não via nada, mas sentia o sangue escorrer do meu nariz e da minha boca. Quem me batia parou e a próxima pessoa a me tocar, foi Amanda, que colocou meus óculos na minha mão.


- O que aconteceu aqui? – perguntou uma voz masculina.


- Ela me atacou – falou a pessoa que tinha me atacado, agora eu podia ver seu rosto, parecia um pouco mais velha que eu, mas tinha o dobro do meu tamanho – eu só me defendi...


- Tem 3 pessoas machucadas, as 3 vão para a detenção, essas são as regras – avisou o homem, me pegando pelo braço e nos arrastando até outra sala.


- Ela não fez nada – respondi, me referindo a Amanda – Eu e ela fomos arrastadas para fora da cama e começamos a apanhar...


- Não quero saber, se 3 pessoas estão machucadas, as 3 são castigadas, fácil. To só com duas salas, então já que vocês não se desgrudam mesmo, vão ficar juntas.


Ele nos trancou em uma sala pequena, sem janelas, com uma cama embutida na parede de concreto. Meu corpo inteiro doía, então me arrastei até a cama e deitei. Amanda sentou comigo e me fez colocar a cabeça em seu colo.


- Por que nem quando esta apanhando, você consegue ficar quieta? – perguntou ela, mexendo no meu cabelo.


- Não consigo controlar – respondi, tentando respirar fundo, mas sentindo uma dor terrível – Você precisa parar de assumir a culpa pelas bobagens que eu faço...


- Se eu fizer isso, acabo num orfanato e você morre num lugar como esse...


- Dada, você precisa e merece uma família...


- Você é a minha família, to bem como estamos...


- Estamos ferradas... – respondi rindo, com uma careta de dor – Dada... o que acha de fugirmos?


- E se for pior?


- Pior do que acordar apanhando? Acho meio difícil...


- Uma coisa temos que concordar – riu ela – Somos uma ótima dupla... para encrencas ou fugas, temos um dom, o que acha que aquela mulher quis dizer com “estão na lista”?


- Não sei, mas boa coisa não pode ser... e não sei também como podemos estar em qualquer lista daqui, viemos do Brasil, era para sermos fantasmas...


- Nós duas nos superamos – riu ela – Conseguimos ser procuradas em dois continentes...


- Sou uma péssima influência para você – falei rindo.


Passamos 2 dias trancadas ali, banho individual, de 3 minutos e com vigilância, duas refeições por dia. Quando saímos, aproveitamos uma oportunidade de segundos, na troca dos responsáveis pela vigia do pátio, e fugimos, correndo o máximo que era possível, eu com a minha mochila nas costas. Demorou até nossa ausência ser percebida, na verdade só notaram a noite, quando alguém foi nos visitar.


- Chamem a dupla do Anjo Pega-Bobo – pediu a mulher, para o monitor do dormitório.


O rapaz saiu a nossa procura, e uma mulher magra e alta, com óculos na ponta do nariz, e vestes compridas, a observou curiosa.


- “Dupla do Anjo Pega-Bobo”? – perguntou a mulher.


- Elas foram pegas por pequenos furtos no centro, a polícia as apelidou assim. A senhora vai levá-las?


- Vou, para um local mais apropriado... É bom contar com a sua ajuda...


- É um prazer ajudar, meu irmão era um de vocês... – falou a mulher.


- Um excelente auror, lamentamos muito a sua perda...


- Horiana – chamou o rapaz, voltando corendo – Temos um problema...


- O que houve? Elas brigaram de novo?


- Elas brigaram antes? – perguntou a mulher, preocupada.


- Um desentendimento das duas com outra interna, nada grave, acontece o tempo todo, mas o que houve Elias?


- Elas sumiram... – respondeu ele, nervoso – Procurei por tudo, nem sinal delas...


- Você perdeu duas órfãs?! – perguntou Horiana, irritada, correndo para os dormitórios e deixando a mulher sozinha – Como perdeu duas meninas de 10 anos, seu inútil?!


- Não sei... Elas simplesmente sumiram...


- Elas fugiram no início da tarde – avisou a menina que havia me batido, rindo – Tenho que admitir, a Anjo Pega-Bobo é muito esperta, eu fiz um belo estrago nela, e mesmo assim ela conseguiu pensar numa fuga e executar... essa garota ganhou o meu respeito...


- Revira Londres de cabeça para baixo, procura em cada beco, cada lata de lixo – avisou Horiana, furiosa – Mas acha estas garotas! Eu vou falar com a professora Minerva, preciso dar um jeito de não piorar ainda mais esta situação...


A mulher aguardava em silêncio o retorno com as informações, olhando tudo ao redor com ar de preocupação. Quando Horiana voltou, ela a olhou com esperança.


- Encontraram as duas? – perguntou a mulher, esperançosa.


- Elas fugiram no início da tarde, já mandei alguém atrás dela... Me desculpe professora, sei que falhei com a senhora, mas nós vamos encontrar as duas e voltarei a lhe procurar...


- Essas crianças não podem ficar perdidas por aí, você sabe o risco que é para elas, e para todos ao redor...


- Eu sei, conheço os riscos, vamos disparar um alerta geral...


- Voltaremos a conversar – avisou a mulher, saindo.


- Sim senhora.


Ela entrou em um beco e sumiu no ar, aparecendo em uma estrada de terra, diante de imensos portões que se abriram para ela passar e voltaram a fechar logo depois. Havia um imenso castelo com as luzes acesas, os terrenos iam até onde a vista alcançava, e ficava próximo a um lago de água negra, a neve se acumulava em alguns cantos da paisagem.


Ela entrou pelas grandes portas que davam acesso a área interna do castelo e parou em um imenso salão com 4 grandes mesas dispostas, cheias de alunos, em frente a uma 5º mesa. Um senhor com idade avançada e uma barba que ia até a cintura, de óculos meia-lua atravessou o salão devagar, quase sendo atropelado por dois jovens idênticos, ruivos, que corriam ao longo de uma das mesas.


- Weasley’s! – ralhou a mulher, e eles diminuíram o passo.


- Elas fugiram? – perguntou o homem, sorrindo.


- O senhor sabia?


- Evidente, minha cara Minerva, estamos lidando com uma criança com uma inteligência, muito além de qualquer uma já vista. Seja paciente, vamos encontrá-la...


Em Londres, eu encontrava um lugar seguro para passarmos a noite, uma casa de máquinas abandonada, não era quente, mas ajudava a proteger do frio. Por volta das 3 horas da manhã acordei com passos do lado de fora, Amanda dormia profundamente e não acordou quando levantei, peguei uma barra de ferro e saí devagar, olhando tudo ao redor.


- Fizemos um acordo – falou uma sombra, e reconheci a voz do homem da floresta – Você teve sua vingança, mostrou coragem e ódio, sede de sangue, agora é hora de cumprir sua parte...


- É só falar, eu farei, mas agora tenho um acordo...


- Diga.


- Ninguém toca em Amanda, e onde eu for, ela vai comigo.


- Amanhã, vá a biblioteca de Londres... vá todos os dias, um velho de barba até a cintura vai procurá-la e fará uma proposta, aceite... Vá com ele, e logo entrarei em contato novamente.


- Assim será feito – concordei, voltando a entrar na casa de máquinas e fechando a porta, deitando com Amanda, abraçando-a por causa do frio intenso.


De manhã, foi Amanda quem me acordou, me sacudindo.


- Angel, precisamos sair daqui, eu to faminta...


- Também to... – concordei, sentando e apertando o estômago – Er... O que acha de irmos na biblioteca hoje, pode ser divertido...


- O que duas garotas de rua, vão fazer em uma biblioteca?


- Se proteger do frio e ler?


- Gostei da ideia... só que não sei ler, como vamos fazer para tomar café da manhã, precisamos bolar um plano...


- Eu vou te ensinar a ler, e já tenho um plano, vou buscar algo e já volto, você fica aqui... – falei, levantando e abrindo a porta. Encontrei um pacote e o peguei, olhando ao redor e voltando a encostar a porta de ferro – Tem um bilhete, é para mim...


- Alguém sabe que estamos aqui... como?


- Voldemort – respondi, abrindo o pacote e sentando ao lado dela – Ele sempre sabe onde estou, e precisa que eu realize outro trabalho para ele...


Mostrei o conteúdo da caixa e ela me olhou, sem acreditar. Por alguns segundos, ela só observou os bolos e sanduíches, até que eu peguei um dos pães e coloquei na mão dela, pegando um para mim também...


- Por que ele não nos da comida sempre? – perguntou ela, mordendo o pão e suspirando.


- Pra que eu aprenda a me virar sozinha, não vou ser útil, se for incapaz de me alimentar sem que um adulto me ajude... Ele ta me tornando uma guerreira...


- Ele ta fazendo você não ter medo de nada, e isso é ruim...


- O medo só atrapalha – retruquei.


- Então, se não se importar, terei medo por nós duas, porque acho que o medo nos ajuda a não fazer bobagem e nos mantém vivos...


- Fique a vontade...


- Angel, você vai matar novamente? Por que não gosto nada dessa parte...


- Se ele pedir, vou. É o meu trabalho, mas relaxa que hoje só vamos a biblioteca, vai ser divertido... vou guardar o resto para comermos ao longo do dia.


- Já sabe que tipo de livro vai querer ler?


- Algum que ensine a construir coisas, abrigos, eu acho, gosto de números também... Mamãe fazia charadas matemáticas comigo...


- Eu não sou boa com nada...


- Logo você descobre, e acho que você é boa em ter paciência... Sei que não concorda com o meu jeito de conseguir as coisas...


- Você nos mantém vivas, no momento acho que isso é tudo o que de fato importa. Er... vamos?


- Claro...


Usamos o metrô para chegar a biblioteca, nos misturando entre as pessoas quando tentaram nos pegar. Na corrida, peguei dois gorros de lã de dois garotos distraídos, e um par de luvas que um homem carregava no bolso de trás de calça, e coloquei uma das mãos, entregando a outra para Amanda, enquanto colocávamos os gorros na cabeça.


Passamos a manhã inteira na biblioteca, sentadas próximas a uma grande lareira, saímos para lanchar, e voltamos para perto das chamas. Na semana que se seguiu, fomos todos os dias para lá, eu ensinava Amanda a ler e escrever, e ela aprendia rápido. Conseguimos um banheiro em reformas com água encanada, para tomar banhos rápidos, continuamos dormindo na casa de máquinas e eu consegui lavar todas as minhas roupas, que dividíamos, parecíamos apenas duas crianças que gostavam muito de livros.


- Devo admitir – falou um homem de vestes estranhas e óculos meia-lua, sentando na mesa a nossa frente – Vocês são de fato muito boas em fugir e se esconder.


- O nome disso é inteligência, o senhor, no entanto, teve muita dificuldade em nos encontrar... – retruquei.


- Estou ficando velho... – riu ele – Passar o dia numa biblioteca é realmente uma ideia brilhante... Um lugar que carrega muita sabedoria...


- Quem é o senhor? – perguntou Amanda, olhando-o com interesse.


- Me chamo Alvo Dumbledore, e vocês são Angel Kubschesk Feberman, e Amanda Reynaldo... Estou a procura de vocês a um bom tempo...


- Foi na sua lista que aquela mulher falou que estávamos? – perguntei, observando ao redor, para ver se havia alguém perto, era 23 de dezembro e só estávamos nós 3 na biblioteca – É uma lista de crianças bruxas abandonadas né?


- Então sabem que são bruxas, isso é ótimo – falou ele, surpreso.


- Sim – confirmei – E eu sou mais que só uma bruxa, sou uma bruxa-quimera... sei sobre o assunto, Gabriel me contou tudo...


- Os irmãos Gaunt – confirmou ele – Vocês sabem como eles fugiram de onde estavam sendo mantidos?


- Eu os tirei – respondi sorrindo – Eles e todos os outros. Então, qual sua proposta para mim?


- Vejo que é direta, então vamos ao assunto, eu quero levar as duas para um orfanato, e em setembro, para Hogwarts, uma escola onde vocês vão aprender a usar a magia que possuem.


- Sabe que não temos dinheiro, né?


- Vocês duas tem uma vaga na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, desde o dia em que nasceram. O que me dizem, vamos para um orfanato?


- Eu e Amanda não vamos a lugar nenhum separadas...


- Temos um acordo – concordou o homem, sorrindo – Só mais uma coisa, em Hogwarts é proibido roubar, e conheço suas fichas...


- Eu roubo para comer, vai ter comida lá?


- Muita... o quanto aguentar comer...


- Já gosto deste lugar, nós vamos... – concordei.


Dumbledore nos levou para um orfanato, mas de cara já tive problemas e depois de 2 dias, fui mandada para o castigo por me negar a comer uma das refeições servidas.


Depois do ano novo fomos transferidas para um reformatório, por eu ter enchido de baratas e lixo orgânico o travesseiro de uma garota, depois dela dar um soco em Amanda, que foi punida comigo depois de mentir que tinha me ajudado.


Na metade de fevereiro, briguei com outra interna que, para mostrar que era a mais forte que eu, me ameaçou e quebrou metade da louça da cozinha, colocando a culpa em mim. Como vingança, por eu denunciar todos os pequenos roubos dela, ela mandou me atacarem no meio da noite, me fazendo parar na enfermaria. Depois do ataque, fui transferida para outra instituição, Amanda entupiu todas as privadas e pias do vestiário, com toalhas, e foi transferida comigo.


Em meados de agosto, Dumbledore foi nos visitar no Instituto de Correção onde estávamos a pouco mais de 1 mês. Eu e Amanda fomos chamadas na sala de visitas, onde ele nos aguardava com duas pastas em cima da mesa.


- Srtas. Feberman e Reynaldo – cumprimentou ele com um grande sorriso, fazendo um gesto para que sentássemos – Eu precisava ter certeza de que as duas ainda estavam bem, apesar de todas as transferências por problemas comportamentais... 9 em 8 meses, é um número admirável.


- Se batem em mim, eu reajo – respondi em tom de desafio – Se ameaçam a mim, ou a Amanda, eu reajo, a lógica é bem simples.


- Vocês estão acumulando um histórico e tanto... confesso que a quantidade de coisa na ficha de vocês, é incrível... Eu vim, por que em um mês virá alguém a meu serviço, buscar as duas, um auror da minha confiança, então tentem pegar leve...


- Estamos trabalhando na biblioteca daqui... – respondeu Amanda – E limpamos a neve, nos mantém longe dos outros internos, e de encrencas...


- Vocês já receberam todas as vestes e materiais de um ex aluno, está tudo em Hogwarts, aguardando a chegada de vocês, menos o primeiro uniforme que irão usar, este vocês receberão de quem vier buscar vocês, junto com uma mochila, vão precisar. Só tem uma coisa que eu queria perguntar...


- Sim senhor – concordei.


- O que sabem sobre o massacre no instituto onde vocês ficavam, no Brasil?


- As crianças torturadas e assassinadas? Somos sobreviventes... – respondeu Amanda, mas entendi que não era das crianças torturadas que ele queria saber.


- Fui eu – respondi com tranquilidade – Eu cometi aquele massacre. Eram eles ou as crianças, eu escolhi as crianças...


- E o que sentiu, ao fazer aquilo?


- Alívio... Professor, eu não sou uma pobre menina abandonada, eu sou a seguidora do maior bruxo das trevas que já existiu, e sou capaz de tudo, para cumprir minha promessa de lealdade a ele. Ele respeita a sua magia, mas o meu Senhor pediu que eu desse um recado, ao senhor...


- Qual? – perguntou ele, mantendo o sorriso gentil.


- Ele está vivo, ainda tem seguidores, e a guerra não acabou... Está apenas começando na verdade... Ele não tem medo do senhor...


- E você, não tem medo dele?


- Nem um pouco. Sou inteligente, mais do que o normal, calculo as probabilidades de resposta de tudo, o medo é para quem não conhece os números, além do mais tenho 10 anos, se ele me recrutou, é por quê precisa de mim...


- Eu sinto medo pelas duas – respondeu Amanda – afinal é o medo que nos mantém vivos...


- Obrigado pelo recado – agradeceu ele, sem tirar o sorriso do rosto, levantando e apertando minha mão, e depois a de Amanda – Nos vemos em setembro, e feliz aniversário, Srta. Reynaldo...


- Obrigada, professor.


Dumbledore saiu, nós voltamos para a biblioteca, e ele para o castelo, completamente deserto. Ele entrou na própria sala e parou na janela, observando a floresta que se estendia a um lado, para além do alcance dos olhos.


- Alvo... – chamou Minerva, parando atrás dele e o observando.


- Chegamos tarde... – falou ele, perdido em pensamentos – Chegamos muito tarde, minha cara Minerva, o que mais temíamos aconteceu...


- Como assim? – perguntou ela, sem querer acreditar.


- Ele esta vivo... Voldemort está vivo, e agora ele tem Angel... Precisamos nos preparar para tempos sombrios minha amiga... teremos um longo caminho de luta assim que esta menina por os pés neste castelo...


 


FIM DO CAPÍTULO



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Autor(a): tammyendres

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