Fanfic: Através das barreiras do tempo | Tema: amizade, ternura,
Assim que deixei minha filha de doze anos de idade no centro odontológico, no centro da cidade, enquanto ela passava por seu atendimento de rotina, na manutenção do aparelho que toda criança pequena (que ainda não usa) adora e depois, pré-adolescente, detesta, porque usa e percebe que não é lá tão bonito e confortável quanto parece. Inclusive me fazendo rir, ao lembrar-me de que meu sobrinho de seus lindo oito aninhos de idade têm apenas um sonho: “completar quinze anos para poder usar tal apetrecho”.
Enquanto aguardava a filha, que já não tem mais tal sonho bobo, aproveitei para sentar-me no banco da bonita e confortável praça do centro da cidade, para sentir a brisa da água que a gigantesca fonte jorrava muito alta.
O relógio da matriz, uma quadra abaixo, acusava duas horas da tarde de terça-feira, dia dois de abril do ano dois mil e dezoito, início de outono e o calor já dava lugar para um clima mais ameno, com algumas madrugadas até frias.
Saquei do bolso o viciante aparelho eletrônico que todo mundo usa neste tal mundo moderno, abandonando a ideia de apenas me vislumbrar com a beleza do lugar e me vi perdido, navegando por páginas virtuais de tal aparelho que, quando inventaram tinha a função de ser um telefone móvel, agora se transformara em correio, câmera fotográfica, lanterna, rádio, televisão, moldura de fotografia… Tudo, quase só não o seu verdadeiro intuito, pois a maioria das pessoas deixam de alimentá-los com dinheiro e o coitado fica assim como se diz: sem créditos. Por isso mesmo muitos fazem piadinhas com tais de: “igual pai de santo. Só recebe”.
De repente fui interrompido ao sentir o leve toque de uma mão sobre meu ombro, junto com uma voz cansada:
— Posso falar um pouco com você?
Olhei para ele e percebi um ancião de cor parda, cabelos grisalhos, espetados, corpo arcado e mãos trêmulas, aparentando quase cem anos de idade.
— Pois não, senhor — levantei-me e educadamente o tomei pelo braço. — Sente-se aqui comigo.
Ele sentou-se com um pouco de dificuldades, devido as pernas e o corpo que já não ajuda muito, depois, percebendo o que eu fazia, me perguntou com leve sorriso:
— Você estava ocupado?
— Não! — Guardei o aparelho celular no bolso da bermuda. — Estou em uma praça pública, sentindo a brisa suave da água.
— Já é um jovem aposentado?
— Aposentado sim — confirmei. — Jovem… nem tanto.
Claro que não! Quase sessenta anos de idade, próximo a entrar na terceira idade, minha juventude já foi a muito tempo.
— Pra mim você continua sendo só uma criança — riu de jeito cansado tal ancião. — Até as roupas continua sendo.
De fato, devido ao calor que faz em cidade interiorana do Brasil, me habituei a andar por todo lado usando apenas camiseta, bermuda e sandálias, parecido com um adolescente. Só usando mesmo uma calça comprida e camisa em raros eventos especiais, como viagens, igrejas…
— Lembra de mim? — emendou ele.
Só então passei a reparar direito naquele homem, que sim tinha um semblante e um sorriso cansado conhecido, porém, minha memória talvez já não fosse da tal criança que ele mencionara.
— Sempre gostei de crianças. E você esteve em minha pequena lista.
Ainda assim não me recordara de imediato de tal homem.
— Vamos lá, menino, puxe pra essa memória perdida em seu neurônios. Afinal só se passou quase cinquenta anos. Minha fisionomia não mudou quase nada. Eu já era um velho e você era só um menino.
— Senhor Pedro…
— Prazer enorme em reencontrá-lo — riu ele com o mesmo jeito de antigamente. — Eu de fato praticamente não mudei nada, mas você mudou muito. Nem sei como o reconheci.
— É! A metamorfose da adolescência para a vida adulta é bem cruel.
— Não cruel! Mas original. A fisionomia e a índole não mudam jamais.
— Puxa! — fiquei deveras feliz com aquele reencontro. — Que grande surpresa! Posso abraça-lo?
— Esta pergunta é minha! — riu ele. — Posso abraça-lo?
Claro que podíamos! Nos levantamos e nos abraçamos como dois entes queridos que há muito tempo não se reencontrava.
Aquele homem fizera parte, não de minha infância, mas de minha pré-adolescência, quando aos onze anos de idade comecei a trabalhar em uma fábrica de garrafas de vidro. Não no início, mas depois de algum tempo passei a trabalhar em um dos setores da fábrica com um grupo de outros cinco (só meninos) e ele, único adulto no meio de nós crianças.
Na verdade, naquela fábrica, pelo menos cinquenta por cento de seus funcionários era assim como nós, quase crianças. Seu verdadeiro motivo para nos manter ali: ensinar-nos uma profissão?… Sermos responsáveis?! Não! Pagar irrisórios salários.
Até aos quatorze anos ganhávamos metade de um salário mínimo, depois, até aos dezoito, três quartos do tal salário. Só depois dessa idade a fábrica negociava.
Só que isto aí é outra história.
O senhor Pedro, aquele meu amigo que me reencontrava na praça naquele momento, adorava trabalhar no meio de nós e eu trabalhava consigo uma semana sim, a outra não, pois ele sempre trabalhava no período vespertino (das treze e trinta até as vinte e duas horas) e eu revezava entre este período e o matutino (das cinco até as treze e trinta horas).
Ele sempre me falava que adora trabalhar na minha turma, pois entre todos, eu era o único amigo de verdade dele.
Bem, o que acontecia de fato, era que eu trabalhava em uma parte do setor que me ocupava praticamente o tempo todo, enquanto que os demais tinham períodos ociosos, quando então, sendo crianças, aproveitavam para se verem livres, fugindo para outros recintos da mesma fábrica e com isto eu me tornara o único que estava sempre presente para ouvir suas repetidas estórias sobre tudo, que aliás, os demais meninos detestavam, vindo a caçoar de pobre (quase) idoso, dizendo-lhe:
— O senhor já contou isso mil vezes!
Eu, embora sabendo que ele já tivera contado (mil vezes), fingia que era novidade e o ouvia atentamente. Foi assim que ele me adotou como… talvez seu netinho.
— Não acredito, senhor Pedro, reencontrar o senhor depois de tantos anos — insinuei admirado.
— Quase cinquenta — riu ele.
Na verdade, quarenta e um anos depois que o teria visto pela última vez.
— Eu nunca me esqueci do senhor! Mas… desculpe-me, eu pensei que já tivesse…
— Morrido? — riu ele. — Partido pra outra?
— É que… eu era só um menino bobo e o senhor já tinha quase… sessenta! Quantos anos têm agora?
— Estou a completar cento e oito anos de vida feliz. Mais feliz agora, por poder rever uma criança que gostava… ou fingia gostar de ouvir tal velho bobo repetindo várias vezes suas mesmas histórias. Você era o único que me dava atenção, garoto. Obrigado por ter se importado com meu jeito. Quando não trabalhávamos juntos eu tinha saudades de você.
— E quando trabalhávamos juntos me dava carne de tatú peba pra comer — ri irônico devido o que de fato acontecera. Ele sempre repartia comigo sua refeição.
— Isso mesmo! — riu ele. — E garanto que era saborosa.
— Tatú peba come carniça, carne humana também, senhor Pedro.
— Não os meus! Eles vinham de longe da civilização.
— O senhor se lembra de quando colocamos óleo queimado na garrafinha de café para as pessoas beberem?
— Sim! Você era deveras peralta!
— Eu não! Foi ideia do senhor! O senhor é que foi malvado!
— Eu não! De quem era a garrafinha?
— Minha!
— Você deixou que eu colocasse?
— Sei lá! Faz tanto tempo. Acho que sim!
— E por que diz que fui malvado?
— Colocou o óleo para as pessoas beberem!
— Não é maldade! A garrafinha sendo sua você coloca dentro o que quiser! Você nunca mandou ninguém beber o seu café. Eles eram safados e bebiam sem autorização. Pois então…
— É verdade! Minha mãe sempre me mandava uma garrafinha cheia de café. Tinha dia que não conseguia beber nem um pouco, pois os safados roubavam tudo.
O fato era que, como a garrafa era de vidro e não era térmica, eu a deixava sobre uma estufa quente com intuito de manter o café sempre quente e era de lá que tal delícia era “surrupiado”.
— Eu gostava de trabalhar naquela fábrica — continuou ele. — Eu era o único velho no meio de um monte de garotos.
— O senhor não era um velho! Tinha menos de sessenta anos de idade.
— E vocês eram frágeis bebês.
— O senhor era assim uma espécie de nosso pai, ou avô, naquele lugar perigoso.
— Você tem razão — insinuou ele com jeito triste. — Um lugar perigoso pra vocês. Vi coisas lá que me dá nojo de humanos até agora.
— Não muito com quem estava embaixo de suas asas, não é, senhor Pedro? — Lembrei-me um pouco triste.
— Eles me respeitavam um pouco. Pobre das crianças que trabalhavam em outros setores. Você, por exemplo, quando foi mandado praquele inferno humano.
— Não consigo entender como os pais do Pedrinho permitia que ele trabalhasse lá. O menino não tinha nem dez anos de idade e tinha um pedófilo do capeta que não o deixava em paz — fiz questão de dar forte ênfase na palavra sujeito da última oração.
— Dez ou onze é a mesma coisa — riu nervoso tal ancião.
— Ele não tinha dez!
— Não ter dez ou ter onze, ou que seja doze, é a mesma coisa. E você também tinha sua “sarna”.
— Tinha sim! Fabricio. Mas ele era só um moleque no corpo de um adulto. Não fez coisas graves comigo não. Só gostava de brincadeiras idiotas.
— Sei! Como morder seu peito, beliscar seus músculos, pegar… deixa pra lá!
— Não se preocupe, senhor Pedro. Ele nunca passou do tal pegar. Nunca fui abusado naquela fábrica. Minha maior revolta continua se chamando Pedrinho.
— Mas eu não vim aqui pra falar sobre essas tristezas. Só quis mesmo reencontrar o meu melhor amigo daquela época.
— Obrigado por ter me adotado como tal naquela época. Se não fosse pelo amparo do senhor, não só pra mim, mas para todos os que trabalhavam conosco, pelo menos naquele setor, acho que hoje teríamos coisas pra relembrar. E o senhor sabe tanto quanto eu, que não seriam boas lembranças.
— Eu adorava quando trabalhava na sua turma.
— Acho que o senhor… acho não! Pensando melhor, o senhor era apenas um anjo que estava lá pra nos proteger e era por isso que tinha que revezar as turmas, porque senão os demais meninos estariam à mercê dos safados da fábrica.
— Não eram tantos safados assim! – riu ele com seu jeito cansado de dezenas de anos. — Apenas dois ou três.
— Concordo que sim! Porém os demais eram coniventes. Por exemplo, se hoje eu perceber um adulto abraçar um garoto com jeito suspeito, vou dar um murro na cara dele.
— Vamos mudar de assunto — pediu ele.
— Por quê? Não estou criticando o senhor! O senhor nos protegia. Era de fato nosso anjo da guarda. Por isso trabalhava nas duas turmas. Deus escolheu assim! Ou que seja, o destino escolheu assim!
— Fico feliz que me julga como anjo — tornou a rir com o jeito cansado pela longa vida de sacrifícios. — Também tinha meus pecados.
— Como é gostoso um adulto ser amigo de criança. Eu adoro crianças! Em minha infância eu tive dois amigos adultos especiais, o senhor e o senhor Manoel Rodrigues e também sua esposa, dona Marcelina. Eles me adoravam e se eu soubesse o quanto isso era importante para o adulto, eu teria sido ainda mais carrapatinho deles.
— Eu ganhei um prêmio — mudou de assunto, o senhor Pedro. — Mas eu não quero ele pra mim! Não preciso dele!
— Bacana! Que prêmio? Ganhaste na loteria?
— Nada disso! Não é um prêmio materialista. É muito melhor do que isto.
— O céu, senhor Pedro! O senhor ganhou o céu?
— Não é isso! Não por enquanto! Mas… tomara que de fato eu seja merecedor.
— E é! Pelo menos naquela fábrica o senhor ganhou muitos pontos com Deus.
— Exceto pela garrafinha de óleo preto — riu ele, ainda com seu jeito ofegante.
— A garrafinha era nossa e a gente poderia pôr dentro dela o que a gente queira.
— Eu ganhei um poder mágico, pra realizar aquilo que eu quero. Apenas uma vez, é claro!
— Qualquer coisa?!
— Sim!
— Peça um grande tesouro! Um baú recheado de ouro… e diamantes…
— Não pode ser materialista, já disse! E mesmo que pudesse… pra que eu quero?
— E o que o senhor almeja então?
— Não quero ele pra mim! Não preciso dele!
— O que fará então com ele?
— Vou transferir para o que foi um amigo que não tinha cobiça. Era simplesmente amigo sem exigir nada em troca. Um amigo que embora sendo criança serelepe tinha tempo para um velho bobo.
— Já disse que o senhor não era um velho bobo! Era mais novo do que eu sou hoje e eu não me sinto velho!
— De fato! Pra mim você ainda é só uma criança.
— E o senhor tá dizendo que…
— Vou transferir meu prêmio pra você. Se quiser! É apenas um desejo único. O que você almejaria?
Nem precisei pensar muito, pois sempre imaginei estas coisas idiotas e impossível de realizar:
— Voltar lá em meus nove anos de idade. Aquela infância que eu achava que não tinha nada.
— Mas você tem uma família aqui! Vai abandoná-la?
— Sim! Quer dizer! Sei que tenho uma família e não quero abandoná-los. Se eu pudesse gostaria de passar um período na época de minha infância, depois retornaria.
— Está bem! Vou transferir meu desejo pra você. Está pronto?
— Por que me faço merecedor?
— Pergunta sem necessidade de respostas! Não se ache importante. Casualmente eu te encontrei e eu não preciso do desejo.
— Por que o senhor não usa tal desejo pra voltar a infância do senhor?
— Não tenho saudades dela. Sequer tenho boas recordações, portanto você tem cinco segundos para decidir se aceita ou não!
— Calma, senhor Pedro! Vamos devagar!
— Quatro…
— Minha filha está comigo!
— Três… Me dê a chave de seu carro!
— O quê?
— Dois…
— Minha filha! — apontei-lhe a chave, que tomou-me imediatamente.
— Sua mulher busca. Um…! Diga sim ou não!
— Espere!… Sim!
De repente me vi como em um redemoinho, porém sem vento, que não demorou nem cinco segundos e então me vi na mesma praça, em pé diante do mesmo banco de concreto que estava diferente.
Autor(a): celso_innocente
Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).
Prévia do próximo capítulo
De repente me vi como em um redemoinho, porém sem vento, que não demorou nem cinco segundos e então me vi na mesma praça, em pé diante do mesmo banco de concreto que estava diferente. Ansiedade Meu corpo teria se encolhido para cerca de cento e dez centímetros de altura, com fisionomia de um menininho de seu ...
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