Fanfic: Classe A | Tema:
Kassandra
As paredes do cômodo eram de um branco puro, interrompido apenas pela grande janela à minha direita, muito bem fechada e coberta por finas cortinas também brancas. O ar condicionado, zumbindo fracamente de algum ponto atrás de mim, mantinha a temperatura do ambiente por volta de vinte e cinco graus... Nem frio, nem quente, suponho. Não havia mais nada no quarto além da poltrona reclinada na qual eu me sentava, parecida com as que se encontram em consultórios de dentista; outra cadeira, mais simples, onde o profissional se sentava, e uma pequena câmera no canto entre duas paredes, quase que indetectável. O barulho do pequeno motor que movia a agulha, lentamente mudando a cor de minha pele permanentemente, era o único som que se podia escutar com clareza, muito embora eu e o tatuador não estivéssemos sozinhos na sala.
Também haviam dois seguranças atrás de mim, um de cada lado; a sequer um metro de distância, acho. Já os havia observado o suficiente para saber que provavelmente estavam em sua pose de costume: coluna perfeitamente ereta, os pés paralelos, a mão direita repousando sobre o taser que só precisava ser puxado de seu compartimento no cinto de utilidades para estar pronto para ser utilizado. Ambos vigiavam cada mínima movimentação minha.
Enquanto isso, o tatuador sentado à minha direita, o rosto parcialmente coberto por uma máscara cirúrgica, passava a agulha por minha pele. Logo acima de meu pulso direito, na porção superior do braço. Eu ainda não sabia o que ele estava tatuando. Mas, inferno, importava? Não estava eu a caminho de minha execução? Rápida, sutil, longe dos abençoados olhos da sociedade? Qual era o propósito de me marcar se logo a marca identificaria apenas o braço de um cadáver, a ser cremado logo em seguida? Por mais sem sentido que fosse, contestar não faria qualquer efeito, tenho certeza. Portanto apenas esperei.
Com um suspiro, o tatuador fez uma pausa para enxugar uma gota de suor que descia por sua testa, para, logo em seguida, secar o excesso de sangue de meu braço com o papel dobrado que mantinha em sua mão esquerda. Mais minutos se passaram, parecendo arrastar-se deliberadamente. Bocejei, e o tatuador sobressaltou-se, possivelmente cometendo um erro duradouro no que quer que estivesse desenhando em meu braço. Tanto melhor; parecendo alarmado pelo pequeno deslize, o homem apressou-se e logo finalizou a tarefa. Esfregando o sangue de cima da nova tatuagem uma última vez, ele soltou a tira de couro que mantinha meu antebraço preso ao braço da poltrona e enrolou uma fina camada de filme transparente em volta da marca. Imediatamente depois ele se retirou, correndo porta afora como se sua vida dependesse disso. E talvez fosse isso mesmo que se passasse por sua cabeça.
Os guardas atrás de mim deram um passo à frente e, entendendo a mensagem, levantei-me. Eles, cada um com uma mão em um de meus ombros, guiaram-me para fora, seguindo os passos do tatuador, e durante a caminhada pelo longo e branco corredor, enfim pude ver o que havia sido feito em meu braço. Não sei o que eu esperava; na verdade, acho que não tinha expectativas em absoluto. Por conta disso, não surpreendeu-me encontrar um simples conjunto de letras, em tinta preta, que não possuíam nenhum significado para mim.
"DM".
E, logo abaixo, mais uma: "A".
Uma pequena faísca de curiosidade surgiu, mas sumiu rapidamente. Não importava o que aquilo significava. Não para mim.
Igualmente, eu tinha aproximadamente zero interesse no lugar para onde estava sendo levada. Sabia que, muito provavelmente, iam me matar; o que mais poderia ser? Todos que levavam o mesmo destino que o meu sumiam sem deixar rastros. Para o bem ou para o mal, jamais ouvia-se falar deles novamente. Suas existências eram esquecidas e, seus nomes, deletados dos registros. Falar a respeito era legalmente permitido, mas, mesmo assim, ninguém o fazia.
Ninguém.
Pelo canto do olho, percebi outra mulher sendo escoltada por guardas, andando na direção contrária à minha. Na direção do cômodo com a poltrona e o tatuador. Meus guardas, por sua vez, viraram à direita em uma bifurcação do corredor, então parando em frente à uma porta, abrindo-a, e empurrando-me para dentro.
Esta nova sala, apesar de igualmente branca, era dividida ao meio por uma parede de vidro que bloqueava totalmente a passagem de uma metade para a outra. Rente à ela, do nosso lado, havia uma solitária cadeira branca, junto a um simples interfone composto de um microfone, uma caixa de som, e um botão, todos instalados na própria divisória de vidro, em um pequeno painel. Para se comunicar com o outro lado, supus. Falando nele, era exatamente igual ao lado onde eu me encontrava, exceto pelo fato de possuir por volta de quinze cadeiras, em vez de uma. Toda e cada uma delas perfeitamente desocupada.
- Caso ninguém apareça dentro do limite de quinze minutos, seguiremos em frente - um de meus guardas falou, enquanto me forçava a sentar.
Nos era permitida uma última e curta despedida antes de o que quer que fizessem para se livrar de nós: uma breve reunião com nossos entes queridos, desprovida de qualquer tipo de contato físico. Por que aparentemente os guardas já não eram o suficiente.
Mas ninguém vai aparecer. Ninguém nunca aparece.
Não me entenda mal, eu tenho família. Uma mãe, uma irmã mais velha, diversos colegas da escola. Pessoas que afirmavam se importar comigo e gostar de mim. Pessoas que fizeram parte do meu dia a dia, que, no passado, sorriram e choraram por minha causa. Mas sequer uma dessas pessoas vai vir se encontrar comigo antes de minha execução. Por que elas, também, querem que eu morra. Querem se ver livres de mim, exatamente como o governo. E eu consigo entender perfeitamente.
Pacientemente, esperei os quinze minutos passarem, lutando contra o sono causado pelo tédio intenso. Se tem algo que eu não consigo entender é toda essa enrolação. Eles sabem que ninguém vai vir. Ninguém nunca vem, sob nenhuma hipótese. Querem me matar? Pois bem, vamos logo com isso. Não consigo ver como nenhum dos envolvidos se beneficia com essa situação. Meus guardas, por exemplo, por mais quietos que estivessem, também deviam estar entediados até a morte. Posso apostar.
- Cinco minutos restando - o mesmo guarda completou, uma eternidade mais tarde.
- Amém. - Esfreguei os olhos. Acho que eram as primeiras palavras que eu dizia desde que o furgão policial tinha aparecido na porta de casa com a ordem de me levar embora. Os guardas, ao menos, não aparentavam estar assustados.
Por falta do que fazer, observei atentamente as cadeiras vazias por trás do vidro. Esse era o momento no qual, em um filme de ação ou romance, uma pessoa amada aparecia. Colava-se no vidro, desesperada, não conseguindo aceitar minha iminente morte. Chorava e se lamentava, dizia-me que me amava e, finalmente, dava adeus, enquanto eu era arrastada para fora da sala e ela batia com os punhos no vidro, lágrimas silenciosas descendo por seu rosto e formando uma poça no chão.
Mas a minha vida não é assim. Para ser sincera, não há ninguém por quem eu me sinta dessa forma, e a recíproca é verdadeira. Para mim, é certo que minha execução ocorrerá sem problemas. Não escaparei no último minuto, ou serei perdoada, como uma típica heroína de filme. Eu vou morrer. E, surpreendentemente, estou ok com isso.
Só queria que toda essa enrolação acabasse.
Exatos cinco minutos depois, os guardas dão seu costumeiro passo à frente, e me levanto outra vez. Deixamos a sala exatamente como a encontramos. Ao sair, ouço conjuntos de passos à nossas costas. O próximo sortudo deve estar se preparando para passar quinze minutos sentado naquela cadeira, sem fazer absolutamente nada. Um estranho que provavelmente vai ser morto menos de meia hora depois de mim.
Nossa próxima parada é uma sala de escritório ocupada por um oficial da justiça que, de acordo com a placa de plástico sobre sua mesa, chama-se Sr. Davis. Um nome falso, se já vi algum em meus dezesseis anos de vida. Sua mesa é larga, e sou forçada a me sentar a uma considerável distância dela. O suficiente para ser agarrada pelos guardas antes que minhas mãos possam completar uma possível trajetória à garganta do Sr. Davis. Igualmente, não há objetos sequer remotamente perigosos sobre a mesa, sequer uma caneta. Apenas um terminal digital, a placa com o nome, e um arquivo impresso que aposto que tem meu nome escrito em algum lugar. É tão raro ver papel esses dias que me pergunto se há alguma razão especial para usarem nesta situação.
- Senhorita Kassandra Sparks - o oficial limpa a garganta e então diz o meu nome. Sua voz é calma e controlada e, sua expressão, régia. - A senhorita foi considerada incapaz de continuar vivendo em harmonia, e portanto está sendo removida do convívio em sociedade. Sua falta de...
Descobri-me então não só incapaz de viver em harmonia como também de prestar atenção no que ele dizia. Pouco a pouco, sua voz foi se tornando um ruído de fundo, tal como o sempre presente zumbido do ar condicionado, e perdendo todo e qualquer significado para mim. Me recuso a cooperar com qualquer outra forma de enrolação em que eu for posta, pensei, sentindo minhas sobrancelhas erguidas em descontentamento, mas minhas pálpebras caídas, os olhos apenas semi abertos, pesados de sono. Tive a impressão de que o Sr. Davis me perguntou alguma coisa, mas apenas encarei-o de volta, apática, e eventualmente fui carregada para fora da sala por meus dois guardas.
Minha próxima e última parada esperava-me atrás de outra porta branca, em nada diferente de todas as demais exceto pelo fato de que estava seguramente trancada. Após a identidade dos guardas ser confirmada através de uma câmera, ela foi aberta remotamente.
No entanto, em vez de ver a maca coberta de correias de couro, o material hospitalar e os médicos que eu esperava que fossem me aplicar uma injeção letal, fui cegada pela luz do sol. Eu estava a céu aberto, algo que não achei que faria novamente com vida. Talvez planejassem me matar do lado de fora? Me enforcar, me decapitar, ou talvez me fuzilar? Eu não duvidava que ainda planejavam se livrar de mim, embora estar ao ar livre me surpreendesse, até certo ponto.
Contrariando cada uma de minhas estimativas, fui levada a um pequeno e quase indetectável porto aos fundos da sede do governo. Não sabia de sua existência, e duvido que qualquer um que não trabalhe lá saiba. Sendo guiada pelas plataformas à beira do mar, cheguei eventualmente a um pequeno barco branco e azul, sem nome, mas marcado na lateral pelo logotipo governamental. Calculei que comportaria, além da tripulação, por volta de vinte pessoas nos assentos do convés, mas apenas dois desses estavam ocupados. A dupla estava sentada junta, e era composta de um guarda, silencioso como os meus, e um garoto assustado, parecendo querer sumir de tão encolhido que estava. Ambos os meus guardas me acompanharam a bordo do barco, e me perguntei porquê ele tinha um a menos. Alguma parte menos ativa de meu cérebro notou que a tatuagem do garoto, também envolta em filme, era um pouco diferente da minha.
Dentre a pouca carga que estava sendo carregada no barco, reconheci uma mala como minha, e tive uma distinta visão de minha mãe empacotando meus poucos bens pessoais e os entregando a oficiais do governo. Sem saber o motivo, mas tampouco sem se importar com ele. Mas será que foi isso mesmo que aconteceu?
Novamente, sentei-me, junto com meus guardas, para esperar, o mais longe dos outros ocupantes que era fisicamente possível dentro do pequeno barco. Virei a cabeça para observar o mar e me perguntei, pela milésima vez, quando é que a enrolação ia acabar.
Makena
Uma raiva que há muito tempo não me assolava estava crescendo, me fazendo trincar os dentes e apertar os punhos. Os guardas ao meu redor não pareciam ligar muito, mas se as mãos em seus tasers fossem qualquer indicação, eles esperavam que eu atacasse a qualquer momento. Não aconteceria.
Primeiro, porque eu já estava na merda. Infelizmente nada do que fizesse me livraria desse destino incerto, onde provavelmente a morte me encontraria. Esperava que no inferno eu encontrasse Júlia, aquela cadela. Tantos anos aguentando sua voz calma, seus conselhos idiotas e, quem diria, sua proteção, e um maravilhoso dia não aguentei e resolvi livrar o mundo de sua santa hipocrisia. O que se mostrou ser minha ruína.
Nem três dias após sua morte, fui fazer o teste e aparentemente reprovei. Inapta para viver em sociedade. O que isso significava?! Vinte e sete anos naquela porcaria de Mundo Perfeito e de repente eu seria descartada como lixo? E as minhas coisas? Meus imóveis, meu precioso dinheiro? Tudo que havia sobrado de uma vida miserável que vivi com meus pais agora era simplesmente recolhido pelo Governo? Era injusto!
Andando pelos corredores insuportavelmente brancos, escoltada pelos guardas, olhei para o meu braço que ardia de forma incômoda – DMA. Como se não bastasse se desfazerem de mim, ainda me fazem uma tatuagem horrorosa. Bufei.
- Vai demorar muito?
Ninguém me respondeu. Felizmente, chegamos a uma porta logo em seguida, e saímos para a luz do sol; direto em um porto, onde havia apenas um barco. Estava vazio, exceto por dois adolescentes e mais três brutamontes – seus guardas. Pulei para dentro, sendo seguida, e sentei em um canto. O silêncio era opressor, mas ninguém parecia disposto a conversar, então cruzei os braços e me contentei em esperar, sentada no banco bem na borda.
Assim que me acomodei, a rampa que conectava o barco à plataforma foi recolhida, e o motor foi ligado. E então estávamos todos indo em direção ao horizonte, sem nada a vista a não ser água. Os guardas continuaram parados, e o menino parecia que logo perderia todos os dentes de tanto que tremia; seu choro baixo chegava a fazer um barulho irritante. Enquanto isso, parecia que poderia entrar um dinossauro cor-de-rosa no barco e a garota não esboçaria reação – depois de um tempo, cheguei a me perguntar se ela não estaria dormindo de olhos abertos.
- Para onde estão nos levando? – questionei, quando não podia suportar mais o silêncio.
A adolescente tirou o cabelo roxo do rosto, que voou quando ela virou para me olhar, mas logo voltou a encarar o nada. O treme-treme pareceu surpreso e expectante para a resposta. Será que precisavam nos levar tão longe para nos matar? Nossos seguranças, principalmente os meus e da outra, deram um sorriso debochado de canto, apenas. Aparentemente, eu não teria minha resposta.
Parecia que o caminho era infinito como o mar e, em algum momento, embalada pelo movimento da água, adormeci sentada. Mais tarde, fui despertada por um movimento brusco que quase me levou ao chão; levantei, sobressaltada, e de repente o mundo parou de fazer sentido.
De pé, ainda na beirada do barco, apoiei as duas mãos no encosto do assento e arregalei os olhos.
Recém estava amanhecendo. O céu alaranjado iluminava e formava sombras pelas superfícies de um porto, que poderia ser em qualquer lugar, menos no Mundo Perfeito. Era sujo, feito em tons escuros. Os prédios, por sua vez, eram altos, e pareciam muito velhos.
- Que porra é essa? – sussurrei. Em que buraco haviam me enfiado?
- Sua nova casa, boneca – apresentou um de meus guardas. Ele apontou para frente. – A Ilha DM, para pessoas fodidas como vocês.
Esfreguei os olhos para ter certeza de que enxergava direito, e quem sabe dissipar a ilusão. Porém, não era um sonho. Então era isso o que faziam com quem sumia: jogavam em uma vala e esperavam que morressem.
- E como espera que eu viva aqui? – questionei, incrédula.
O homem sorriu. Agora que estavam prestes a nos despejar, ele parecia bem contente em falar, talvez porque soubesse que, ao menor sinal de agressividade, poderia apenas nos jogar no mar e esperar que nadássemos até terra firme – e a única que tinha por ali era a tal Ilha DM.
- Não sei… Vocês são bem espertinhos para quebrar as regras, podem se virar com gente da mesma laia.
Uma frustração intensa começou a subir pela minha cabeça. O menino, que soluçava, já não tinha lágrimas, apenas encarava sua nova casa como se finalmente tivesse se convencido de que iria morrer. Já a de cabelos roxos não parecia achar grande coisa – tinha algo de errado com ela.
Quando aportaram, jogaram nossas malas para fora e praticamente nos expulsaram de dentro do barco. Fiquei ali parada, observando eles se afastarem com meus pertences aos meus pés, sem ter para onde ir, pensando onde iria dormir e o que faria se alguém me abordasse.
- Hey – chamou a menina zumbi. Quem diria... ela sabe falar. – Tem um mapa aqui.
Fui até ela e vi que, realmente, havia uma grande placa desbotada com pontos e nomes, logo na entrada do porto. Analisei a figura esquálida ao meu lado e respirei fundo. Perdida em uma ilha que nunca soube que existia com dois adolescentes pirados. Bom, depois de tantas reviravoltas em minha vida, não deixaria que mais uma me abalasse. Estendi a mão para ela.
- Prazer, meu nome é Makena. Quer dar uma volta?
Autor(a): Mad Royals
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