Fanfic: Coração Envenenado | Tema: Livro
Merlin me segurou exatamente na hora em que as minhas pernas bambearam. Respirei fundo, sorri amarelo e fingi ter sido apenas uma brincadeira, irritada por aquela garota ter tanto efeito sobre mim.
Estendi a mão para ela.
— Oi, acho que já nos conhecemos.
Ela se voltou para mim com os olhos arregalados.
— Será mesmo?
— Sim, na feira de artesanatos. O pingente... lembra?
— É claro, essa Katy.
— Você estava com... uma aparência um pouco diferente naquele dia. — Não consegui evitar o comentário.
— Ah, é?
O sorriso dela era caloroso, mas por algum motivo me deixava desconfortável.
— Seus cabelos eram de outra cor, tenho certeza.
Os cabelos escuros deixaram a pele dela pálida demais; naquele instante estava fresca e orvalhada, como a de uma donzela campesina, contrastando com a minha, que estava opaca e sem vida. O mesmo valia para o casaco; o dela valorizava cada linha e curva do corpo, fazendo o meu parecer tosco e malcortado.
— Essa é minha cor natural — respondeu, e mexeu nos cabelos com uma expressão modesta. — Estava cansada de pintar o tempo todo e odeio ficar com a mesma cara.
— Mudar é bom — disparei, irritada —, mas gosto de manter meu próprio estilo e ser original.
— Nada é totalmente original — devolveu ela. — Na moda, na literatura, na arte... tudo já foi feito antes. Se você visitar o meu estande logo ali em frente, vou lhe mostrar quais artistas e designers me influenciaram.
Era impossível remover o tom de contrariedade da minha voz.
— Há uma diferença entre influência e imitação completa.
— Mas, Katy — foi dizendo ela, toda doce —, a imitação é a mais sincera forma de elogio.
Aquele bate-pronto estava começando a me cansar. Precisava de fato fugir dela e me agarrei à primeira oportunidade de tirar Merlin dali.
— Desculpe, mas Merlin e eu estamos de saída. Foi bom ver você de novo... Genevieve.
Nem respondi ao comentário de despedida que ela fez em seguida e que soou quase agourento.
— Espero que a gente se veja muitas vezes mais, Katy.
Merlin e eu andamos por um tempo em silêncio, mas sentia que o clima estava esquisito entre a gente sem saber por quê.
— Você está quieta — comentou Merlin.
— Estou apenas cansada.
Ele beijou o topo da minha cabeça.
— De mim?
— Claro que não.
Sentamos numa pequena cabana dentro de um parque local, ao lado de uma perfeita pista de boliche na grama. Os cabelos de Merlin ficavam ainda mais bonitos na chuva intensa, lembrando Heathcliff, personagem de Emily Brontë, com os cabelos varridos pelo vento. Já os meus começavam a parecer uma amoreira. Tentei domar as madeixas com os dedos e fracassei miseravelmente. A calça jeans dele tinha manchas de tinta e vários rasgos, mas não de um jeito artificial. Ele parecia um artista boêmio de outro século e, cada vez que eu fechava os olhos, vinha o pesadelo terrível com Genevieve deitada no sofá surrado, deleitando-se ao ser pintada por ele. Ele está pintando VOCÊ, fui forçada a me lembrar.
Minha cabeça repousou sobre o ombro dele enquanto eu pensava em como trazer à tona o assunto que tanto temia. Não havia alternativa a não ser encarar.
— Então... como sua mãe conheceu a Genevieve?
— É uma história bastante trágica — começou ele, baixinho, e precisei morder a língua para não disparar nada sarcástico. — Os pais dela morreram num acidente de carro na véspera de Natal, quando ela estava com apenas 7 anos de idade... Ela não se deu muito bem com os pais adotivos e passou por uma série de abrigos infantis desde então.
— Que horrível — murmurei, porque ele deu uma pausa, esperando alguma reação.
A voz dele foi ficando ainda mais preocupada.
— Ela acabou dormindo na rua por um tempo, até que uma das amigas da minha mãe a encontrou e a adotou.
— Onde ela mora?
— Em um celeiro improvisado, não fica muito longe da minha casa... perto dos estábulos.
— Hummm... Acho que sei onde é. Genevieve não tem idade demais para ser adotada?
— Ela já tem 16 anos — respondeu Merlin —, mas é para ajudá-la durante o período de transição.
— E foi assim que você a conheceu?
— Foi, minha mãe fez de tudo para conseguir que ela ingressasse na faculdade, porque a menina não completara todos os exames exigidos.
Mudei de posicionamento, inundada por uma raiva súbita.
— Ela ajudou a garota a conseguir uma vaga na faculdade? Mas nós tivemos que nos esforçar tanto para conseguir as notas necessárias.
A resposta áspera de Merlin me surpreendeu.
— Genevieve não tem culpa de ter ficado desabrigada. Ela não podia frequentar a escola, então minha mãe a encorajou a fazer um portfólio e apresentar para o conselho da faculdade. Eles concordaram que ela merecia uma vaga. Você já viu a coleção de trabalhos dela?
Cerrei os dentes com tanta força que chegaram a doer.
— Não, mas tenho certeza de que é impressionante.
— O mais incrível é que ela é muito completa mesmo... artes plásticas, design de moda, têxteis, bijuterias. A maioria das pessoas só consegue fazer bem uma dessas coisas.
— Bom para ela.
— E o trabalho dela é bem-embasado, não apenas experimental. Mas... Genevieve precisou vender a arte dela na rua ou não teria o que comer.
Eu respondia feito um robô.
— Claro.
— Conhecer a história de Genevieve faz a gente pensar no quanto a nossa vida é fácil.
— Com certeza.
— Não saia por aí repetindo nada do que contei, Katy. Não sei ao certo o quanto ela quer que as pessoas saibam.
— Não, claro que não.
Havia um buraco no teto da cabana e a chuva desabava sobre minha cabeça e escorria pelo meu nariz. Merlin nem sequer percebeu minhas respostas bruscas, pois seguia falando extasiado sobreGenevieve.
Ele fez uma pausa para respirar, e eu funguei.
— Você nunca a mencionou antes.
— Mamãe só a levou lá para casa muito recentemente.
— Você quer dizer na semana passada?
Ele me olhou esquisito.
— É, foi no... sábado, acho.
Então, enquanto Merlin estava pintando a minha figura, ela estava na casa dele, e pode ter sido ela a pessoa que vi entre as árvores.
— Isso é importante? — perguntou ele.
Fiz um leve aceno.
— Eu estava apenas curiosa para saber há quanto tempo ela está por aí.
— Não muito, mas vocês têm muita coisa em comum. Acho que podem se tornar amigas... Amigas de verdade.
Não era culpa de Merlin, mas ele parecia contaminado por ela. Ele fora meu e somente meu por um período tão curto. Já podia sentir como se ele estivesse me escapando por entre os dedos. Olhei ao redor. Não havia ninguém à vista, nem mesmo uma alma solitária e corajosa o suficiente para enfrentar a chuva e passear com o cachorro. Afundei meu rosto no pescoço de Merlin e passei a língua pelo contorno que sobe até o queixo. Ele tinha gosto de sal com um leve toque de suor.
Escorreguei minhas pernas por cima das dele até ficar sentada no seu colo, e comecei a beijá-lo. Ele soltou um gemido involuntário.
— Katy... você não estava assim naquele dia.
Eu ri.
— Talvez estando ao ar livre... eu me torne mais... hã...
— Selvagem — completou ele, segurando-me a certa distância para estudar meu rosto com espanto. — Não contava que seria engolido vivo no banco de um parque.
Merlin segurou meu rosto enquanto eu o beijava ainda mais, tentando apagar qualquer resquício de Genevieve. Abri os três primeiros botões da camisa dele e apoiei meu rosto em seu peito, ouvindo o seu coração.
— Está batendo como louco, Katy, está escutando?
— O meu também está enlouquecendo.
A mão de Merlin, hesitante, foi passeando por debaixo da minha camiseta, com ele sempre observando as minhas reações. Depois, passou pela barriga até pressionar o meu coração. Nenhum dos dois se mexeu por um tempo que pareceu durar séculos.
— Não seria bom se estivéssemos completamente sozinhos? — cochichou ele. — Em algum lugar a quilômetros daqui.
— Onde? — suspirei.
— Podíamos armar uma barraca em algum dos campings.
— Seria ótimo — manifestei, convencida de que ele não estava falando sério.
— Mas pode ficar muito frio.
— Amo o frio — rebati, o que era verdade. Sempre me sentia feliz quando os dias estavam encurtando e o verão chegava ao fim.
— Que desculpa você daria para sua mãe?
Eu me afastei.
— Está falando sério então?
O sorriso de Merlin era largo.
— Por que não? Você não consegue relaxar na minha casa, e a sua é área proibida...
Não estava preparada para revelar a real extensão dos problemas da minha mãe porque não sabia se ele seria capaz de compreender.
— Minha mãe é um pouco... grudenta — falei por fim. — Pode ser complicado. Ela não gosta nem que eu vá dormir na casa de uma amiga, e você... você é homem.
— Que bom que percebeu. — Brincou ele. — Só uma noite, Katy. Eu adoraria ver o pôr do sol com você... contar estrelas... e acordar do seu lado.
Tentei não me arrepiar com a ideia e sorri, cheia de esperança.
— Nada é impossível. Vou pensar no assunto e tentar formular algum plano.
— Mas você quer? — pressionou.
— É claro que eu quero.
Não tinha absolutamente nada a ver comigo concordar com algo tão arriscado assim, mas eu estava determinada a ter Merlin só para mim e descobrir seus pensamentos mais secretos. Mesmo quando estávamos juntos, às vezes me sentia isolada e sabia que havia um lugar escondido para o qual seus pensamentos iam e eu não poderia acessar. Quem sabe ficando sozinhos, juntos, longe de tudo que fosse familiar, nos aproximássemos. Fomos caminhando para casa a passos de tartaruga, saboreando cada minuto, enquanto eu tentava obliterar todas as lembranças de Genevieve. O beijo de despedida foi no mesmo ponto perto da minha casa, mas não importava o quanto eu tentasse me convencer de que tudo estava exatamente igual, não estava: Merlin ainda exalava a presença dela.
Autor(a): Fer Linhares
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