Fanfic: Coração Envenenado | Tema: Livro
Mamãe não estava na cama quando cheguei em casa, e suas bochechas estavam coradas como eu não via fazia muito tempo. A casa tinha um ar diferente — estava mais quente e quase aconchegante para variar. Era visível que ela estava se esforçando, e eu deveria ter ficado contente, mas as notícias sobre Genevieve estragaram tudo. Mamãe olhou para mim cheia de expectativas.
— Desculpe não ter podido ir, Katy. Como foi?
— Foi tudo bem — menti e inventei uma desculpa para subir direto.
Fui me trancar no banheiro, determinada a não chorar, e me olhei no espelho, alisando os cabelos e sugando minhas bochechas, tentando parecer com Genevieve. Mas minha aparência continuava lamentavelmente comum, como sempre. Em um frenesi, abri as portas do armário, arranquei as roupas que eu vestia e, sem pensar, fui puxando para fora dos cabides camisetas, vestidos, suéteres e camisas. Uma a uma, fui experimentando todas, criando combinações, tentando montar looks e ensaiar poses diferentes. Era patético, mas estava tentando imitar a atitude preguiçosa e nem aí de Genevieve, seu sorriso lânguido e seus movimentos descontraídos, pois acabara de comprovar que meu estilo de vestir não tinha nada de inusitado e descolado, eu mais parecia uma mendiga. Fechei os olhos em desespero, tentando banir sua imagem de minha cabeça, mas ela permanecia lá, como uma sombra. Assoei o nariz, passei um pente nos cabelos e desci para fazer companhia à minha mãe. Era tão raro ela ter um dia bom que me senti culpada por deixá-la sozinha e tentei fazer de conta que estava tudo bem.
— Então, como foi de fato lá hoje? — indagou baixinho.
Deveria estar tudo borbulhando muito perto da superfície, porque, sem pensar, botei tudo para fora.
— A exposição foi ótima, mas essa nova garota da faculdade... ela realmente me dá nos nervos.
Mamãe deu uma risada marota.
— Eu sabia. Consigo farejar inveja a um quilômetro de distância. Você está verde de ciúmes, sem tirar nem pôr.
— Isso também acontece comigo — comentei assombrada. — Vejo cores quando olho para as pessoas.
Ela se inclinou e deu uma palmadinha na minha mão.
— Não estava me referindo a esse tipo de percepção, mas é fácil identificar uma adolescente com crise de ciúmes. O monstro dos olhos verdes está mostrando a sua cara.
— Monstro dos olhos verdes?
— É uma citação de Otelo, de Shakespeare. Na tragédia, ele compara o ciúme a um monstro de olhos verdes.
Luke estava sempre citando Shakespeare para mim também, mas não estava disposta a fingir algum interesse. Apenas fiz uma careta.
— Você quer contar mais sobre ela, Katy?
Respirei profundamente.
— Esta garota, Genevieve, aparece em todos os lugares, fica me seguindo e, agora, está me copiando. Hoje descobri que ela tem uma história de vida trágica... passou por abrigos infantis e depois acabou dormindo na rua. Mas não consigo sentir um pingo de pena dela; é como se algo tivesse extirpado toda a minha bondade e transformado meu coração em pedra.
— Isso não tem nada a ver com você — disse, franzindo a testa. — Mais alguma coisa?
É claro que havia mais alguma coisa; algo que eu não queria encarar. Engoli em seco, fechei os olhos e espremi o rosto de dor.
— Acho que ela está tentando roubar o Merlin de mim.
Engasguei. Não fora minha intenção dizer aquilo. Queria ter balbuciado qualquer coisa sobre ter visto Genevieve flertando. Admitir aquela possibilidade era o meu mais tenebroso medo, a pior coisa que poderia imaginar.
Mamãe riu com deboche e meu coração se partiu.
— As adolescentes são tão dramáticas. As duas gostam do mesmo rapaz e acham que é o fim do mundo.
— É mais do que isso — olhei para ela furiosa.
Mamãe se ajoelhou no carpete aos meus pés para se aquecer no fogo que havia na lareira, pois já começara a esfriar à noite. Sempre adorei fazer fogo de verdade com lenha, mas em geral dava um trabalho danado para acender, então a gente acabava plugando um aquecedor elétrico feio quando a temperatura caía. Fazia muito tempo que eu não olhava para as chamas, buscando formas, como costumava fazer quando era pequena. Porém, mesmo ali, não conseguia escapar de Genevieve, as centelhas me lembravam da sua cabeleira vermelha gloriosa.
— Se ele está assim tão interessado em você, Katy, não irá traí-la. Mas não o assuste com seus ciúmes. O ciúme é um veneno que vai destruir você, não ela.
Eu mal estava escutando.
— O mais estranho é que... ela é tudo o que eu poderia ser, mas não sou.
Mamãe deu um puxão no meu braço de leve.
— Como assim?
— Temos mais ou menos a mesma altura — falei, aborrecida —, mas ela parece mais graciosa, porque é bem magra, temos o mesmo tom de pele, sendo que a dela é de uma luminosidade que dá raiva, e nossos cabelos são da mesma cor, só que os dela são um deslumbre de tão sedosos...
— Você tem sua beleza própria, Katy, e as pessoas a apreciam por ser quem você é.
— Só quero que tudo permaneça igual — respondi, melancólica.
Não quis acrescentar que levei anos para sentir que, finalmente, pertencia a algum lugar. Sempre fui a forasteira, que não conseguia fazer amizades, mas, durante o último ano do colégio, aproximei – me de Nat e Hannah, e agora era inacreditável, Merlin fazia parte da minha vida também. Bem no fundo, eu suspeitava de que fosse bom demais para ser verdade. Minha mãe não havia concluído o sermão.
— Você sempre vai conhecer pessoas que talvez ache que estão acima de você; pense nisso como umas das pequenas lições da vida.
— Não quero — respondi, amuada. — Só quero que ela vá embora, para o mais longe possível...
De preferência, para o outro lado do mundo.
Enfim ela perdeu a paciência comigo.
— Katy — repreendeu-me —, você sempre teve muita compaixão pelas pessoas, especialmente pelas que não tiveram as mesmas oportunidades na vida. Estou achando que é você quem está com problemas, não essa moça, Genevieve.
Fiquei sentada, quieta por um instante, digerindo aquela acusação desconfortável. Será que tinha razão? Genevieve não fizera nada, apenas deixara que eu ficasse com um pingente bonito, pelo qual ela poderia ter cobrado. Não tinha família e tivera que suportar coisas que eu nem podia imaginar. A vergonha tomou conta de mim, e percebi o quanto eu deveria estar aparentando ser ciumenta e vingativa.
— De fato, você não parece mais a mesma — acrescentou mamãe, porém com mais suavidade dessa vez. — Se namorar o Merlin vai fazer com que você se torne o tipo de menina que se esquiva de uma adolescente vulnerável, então... talvez ele não seja a pessoa certa para você.
— Ele é a pessoa certa para mim, mas... — mordi a língua e não me queixei de novo sobre Genevieve estar flertando com Merlin. Era provável que isso também fosse coisa da minha cabeça. E minha mãe tinha razão. Aquela insensibilidade não tinha nada a ver comigo, era como se eu fosse outra pessoa.
— Você precisa confiar no Merlin, Katy. Não pode aprisionar quem você ama.
Naquele momento, mamãe pareceu desmoronar diante dos meus olhos. Enlacei meus braços em torno dela e senti meu pescoço ficar molhado de lágrimas.
— Sinto muito — desculpou-se. — Não sei o que deu em mim.
Ela me abraçou mais forte e fiquei claustrofóbica, como se não conseguisse respirar. Fingi não ter notado que a pele ao redor das suas unhas estava vermelha e irritada. Mamãe tinha transtorno obsessivo-compulsivo e era capaz de roer os dedos até sangrarem. Em geral aquilo me deixava triste, mas naquele momento eu estava estranhamente incomodada. Esperava que ela me confortasse, e não o contrário.
— Se eu pensasse que um dia perderia você, Katy... isso partiria o meu coração.
— Por que você me perderia? — perguntei, perplexa.
Mamãe deu um sorriso pálido, tentando se recompor.
— Acontece... Coisas fortuitas podem mudar tudo.
— Mas não podem fazer com que deixe de ser minha mãe. — Ri.
Ela deslizou a mão pelos cabelos escorridos, uma expressão de dor lhe surgiu.
— Eu não queria que as coisas tivessem acontecido dessa forma — disse ela, por fim. — Queria ser a melhor mãe do mundo, estar sempre por perto para proteger você.
Tentei confortá-la.
— Você é a melhor... com toda a sinceridade.
A voz dela engasgou.
— Você merece uma vida linda... cheia de diversão e risadas, novas experiências, viagens. Não ficar sobrecarregada comigo, uma prisioneira nessa casa.
Por um segundo, vislumbrei outra mulher, uma da qual eu mal me lembrava, que era vibrante e vivia o momento. Não sei quando foi que tudo mudou, porque parecia que ela havia sido sempre desse jeito. Mas eu não podia perder aquela oportunidade. Era tão raro abrirmos nossos corações, que aquela poderia ser a chance que eu estava esperando.
— Os médicos dizem que apenas você pode mudar a si mesma — argumentei. — Existe ajuda disponível, você só precisa aceitar.
Mamãe falou tão baixinho que tive que aproximar meus ouvidos de sua boca.
— Já me esforcei tanto, mas algo fica me segurando... Uma nuvem negra estacionada em cima de mim.
— O que é?
Ela balançou a cabeça com pesar.
— Lembranças, acho...
— Talvez... se dividisse essas lembranças com alguém... elas não pareceriam tão difíceis.
Seus olhos se fecharam, e ela se debruçou abatida na poltrona.
— Algum dia vou lhe contar e sei que você vai entender... mas não nesse momento.
Fiquei desapontada, mas tentei não demonstrar. Vez ou outra uma fresta se abria e depois se fechava com a mesma rapidez.
— Vou me esforçar, Katy. Vou consultar o médico de novo e seguir os conselhos dele... prometo.
— É um começo — respondi, sem graça.
— Vamos assar uns muffins — sugeriu mamãe, um pouco alegre demais.
Fiz que sim com a cabeça e tentei parecer entusiasmada. Gemma, nossa gata, estava dormindo na sua cesta, e fui até lá acariciá-la. As unhas de uma de suas patas dianteiras esfolaram minha mão de leve e depois se retraíram. Eu sabia o que aquilo significava: Gemma estava me alertando que quem mandava ali era ela. Se quisesse, ela me arranharia sem nenhum remorso, pois não tinha a consciência pesada. Com total desdém, ela abriu seus lindos olhos claros, encarou-me e fechou-os novamente. Engoli em seco, tentando não me lembrar de outro par de olhos verdes que poderiam causar tamanha inquietude.
Mamãe veio da cozinha com um pacote de muffins, um deles já atravessado pelo antigo garfo de assar. Logo o aroma dos muffins assados preencheu a sala. Me senti levemente mais próxima dela naquela hora, mas com um pouco de frustração. Ela dera pistas dos medos, remorsos e nuvens negras que a oprimiam, mas não me disse o porquê. Parte de mim estava receosa de que aquela depressão fosse genética e de que eu acabasse enxergando o mundo através dos olhos de minha mãe.
No entanto, ela estava certa sobre uma coisa: eu precisava confiar em Merlin e me acalmar com relação a Genevieve. Merlin achava que tínhamos muito em comum e talvez tivesse razão. Mamãe conversava enquanto comíamos, a manteiga quente escorria por nossos queixos e, ao mesmo tempo, eu me perguntava o que teria lhe acontecido no passado para que parasse de viver.
O sonho ainda me perseguia, partes dele eram familiares, outras mudavam. Naquela noite, fui forçada a subir os degraus intermináveis, mas, quando enfim cheguei ao topo, Genevieve não estava lá, e procurei desesperadamente por ela, perguntando-me onde poderia estar se escondendo. Fui me aproximando devagar da penteadeira, e seu rosto estava dentro do espelho, os olhos muito aumentados e assistindo a tudo. Ela chamou por mim, e não pude resistir. Assim que meus dedos tocaram o vidro, ele se liquefez, e formaram-se círculos concêntricos que se multiplicavam, abrindo-se para fora. Eu estava sendo sugada para um fosso profundo e escuro. Gritava, pedindo ajuda a Genevieve, mas ela simplesmente assistia a tudo com uma terrível fascinação. Apenas quando a última bolha deixou a minha boca, ela sorriu.
Autor(a): Fer Linhares
Este autor(a) escreve mais 10 Fanfics, você gostaria de conhecê-las?
+ Fanfics do autor(a)Prévia do próximo capítulo
Resolução número um: Genevieve merecia uma chance, e eu tinha condições de ser generosa. Resolução número dois: eu garantiria que iria manter meu ciúme sob controle. Resolução número três: Merlin era inacreditavelmente especial e nada no mundo estragaria isso. Esses eram meus pensamen ...
Capítulo Anterior | Próximo Capítulo