Fanfic: Felicidade Clandestina (texto reescrito) | Tema: Felicidade Clandestina (texto reescrito)
FELICIDADE CLANDESTINA (Obra reescrita)
Victor Mateus Martins
Ela era inteligente, interessada, amava ler e desvendar os mistérios que os livros traziam. Tinha uma bondade enorme, enquanto nós todas ainda éramos adolescentes comuns, tentando descobrir o porquê de estarmos aqui. Como se não bastasse, andava sempre com a bolsa recheada de antologias, de todos os autores que se pode imaginar. E ainda por cima possuía o que qualquer criança devoradora de histórias- o que não é o nosso caso- gostaria de ter: um pai dono de livraria. Isso a atrapalhava um pouco. Ela era totalmente diferente de nós, não saía, não olhava para os meninos, não ia à festas, vivia em um mundo monótono, apenas ela, e parecia ser bastante satisfeita com isso. Mas que talento tinha para viajar em suas leituras, flutuava como uma pluma a cada história nova que adicionava ao seu repertório. Ela toda era pura fantasia, mergulhada em emoções. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente desinteressadas, queríamos ser apenas nós mesmas, sem se preocupar com tantas regras.
Um dia, a professora de literatura nos passou um trabalho onde deveríamos realizar a leitura de um livro com temática infantojuvenil, e isto deveria ser feito em duplas, as quais foram decididas através de um sorteio executado pela própria professora. Adivinhem com quem eu farei dupla? Exatamente! Com a tão iludida e enganada “Alice”. Aproximei-me dela para ver como e o que faríamos. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, o que me felicitou demasiadamente, pois por mais estranho que pareça ser... era uma das poucas obras que eu sempre quis ler. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria, para que assim, eu ficasse por dentro de tudo, pois ela já o havia lido incontáveis vezes. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar, uma atitude duvidosa vindo dela, já que era sempre tão meiga e amigável. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar. Seria aquela uma vingança a toda essa diferença que apresentávamos em relação a ela? Eu não conseguia acreditar no que estava vivendo. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico.
No outro dia lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo. Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer, já tinha sido consumida pela vontade de ler aquele livro, o único que me interessava em uma vida toda. O pior é que ela sabia disso. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe.
Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você já o leu incansável vezes! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha, ninguém imaginava que ela pudesse ser capaz de tal coisa. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo, sem pestanejar. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada, nem ao menos agradeci. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito, com bastante carinho, como se fosse u filho. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito era só alegria, fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade de ter o único livro que eu sempre quis ler. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... até que chegou o grande dia. O dia de fazer a apresentação acerca do que havíamos compreendido da obra que escolhemos para ler.
Desta vez a vingança era minha, doce e pacífica. Foi maravilhoso poder ver aquela menina má obtendo média zero por não saber o que dizer frente à professora. Alegou que havia se esquecido, e ainda se contrapôs dizendo nunca ter tido lido nada referente ao livro. Sabemos que ela o leu até se estontear, mas seu ódio era tanto que ela preferiu calar-se e seguir sem apresentar nada. Não conseguia, pois o sentimento de ser apenas aquela menina frágil e ignorada lhe tinha voltado, só que agora... por sua pura e unânime culpa.
(Martins, Victor. Felicidade Clandestina- reescrita da obra. In: Felicidade Clandestina- Clarice Lispector. Claudinápolis, 2019)
Autor(a): vy_martins
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