Fanfics Brasil - SATISFAÇÃO OCULTA Letras

Fanfic: Letras | Tema: Trabalho Acadêmico


Capítulo: SATISFAÇÃO OCULTA

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Nena Vieira era uma garota gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto eu Amélia e minhas amigas, Angélica e Cristina ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.


        Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos de um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem de Salvador mesmo, onde morávamos, com seus pontos turísticos mais do que vistos. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “sorte”.


        Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Exclusivamente comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados livros que ela não lia. Até mesmo à Angélica e Cristina ela já tinha aprontado com uma de suas humilhantes armadilhas. Até que chegou a minha vez.


        Inclusive veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.  


        Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.


        Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.


        — Que felicidade! exclamei.


        — Qual motivo para tanta felicidade, Amélia? perguntou Angélica.


        — Finalmente irei ter em minhas mãos o livro As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Nena irá me emprestar amanhã.


        — Como assim?! Amélia, você sabe como essa garota é perversa. Eu e a Cristina já caímos em uma de suas armadilhas. Provavelmente, essa pode ser uma para você.


        — Eu concordo com a Angélica. Não é do feitio da Nena ser tão gentil. acrescentou Cristina.


        — Queridas, fiquem tranquilas. Não há nada demais em emprestar um livro. Não se preocupem comigo.


        No dia seguinte fui à casa de Nena, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me:


        — Emprestei o livro a outra garota. Volte amanhã para buscá-lo.


        Boquiaberta, saí devagar, mas em  breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.


       Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma:


       — O livro ainda não está em meu poder. Volte amanhã.


       Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Me veio a mente o que Angélica e Cristina tinham me dito a respeito de Nena. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.


       Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.


       Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou:


      — Mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!


      E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha:


      — Você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”


      Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Foi a minha maior satisfação oculta.


      Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão, agradecendo a boa mãe daquela garota perversa. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Contei tudo o que aconteceu para a Angélica e a Cristina, elas ficaram muito surpresas. Porém, ambas concordaram que a Nena teve o que merece. E que nunca mais irá repetir isso com nenhuma outra garota.


      Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.


      Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.


      Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


              



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Autor(a): aysha

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