Fanfics Brasil - Clandestino Feliz Clandestino Feliz

Fanfic: Clandestino Feliz | Tema: FELICIDADE CLANDESTINA de Clarice Lispector


Capítulo: Clandestino Feliz

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Pois bem, eu tinha 12 anos, mais de um metro e oitenta, calçava número 46, e pesava menos de 60 quilos, e assim olhava o mundo, literalmente de outra perspectiva, sem ser percebido na maioria das vezes, principalmente por parte daqueles de quem queria ser realidade e não um fantasmão. Para piorar não tinha dinheiro para comprar uma calça ou bermuda jeans, que era chique na época, o dinheiro de engraxar sapatos só dava para uma peça de tergal que minha mãe transformava em roupas, que eram uma bosta, no calor esquentava tanto que parecia que era de plástico, no frio gelada como se estivesse pelado. No pé a maior desgraça que um moleque da minha idade com pezão daquele tamanho poderia ter, um objeto saído do inferno chamado Kichute, vou tentar explicar, é um par de tênis preto, com a sola cheia de travas, imagina uma chuteira misturada com um sapato de escalada, assim que era a sola, e o cadarço, tão comprido que tinha que amarrar na canela, parecendo um gladiador. Agora tenta imaginar o quadro completo, até minha mãe tinha medo de mim, acho que é por isto que ela fez o inesperado para nossa condição, sempre que ela saía me trazia um livrinho de literatura, principalmente brasileira, acho que era pra mim não sair de casa, para não passar vergonha e não assustar ninguém, e assim foi docilizando a fera, meio que um Frankenstein, um monstro devorador de livros.


Acho que foi assim que descobri que era um alienígena, e desenvolvi poderes humanos, sendo que parece que era o único da minha turma, que era preocupado com as crianças da minha idade que ficavam sem presentes no natal, o velhinho na porta do cinema pedindo esmolas morrendo de frio, cheguei até a pedir para minha mãe me ensinar crochê pra fazer cachecóis e luvas para eles. Então logo percebi que não era normal, e iria sofrer muito com estes poderes que neste planeta eram sobrenaturais, o natural aqui é competir, desprezar, sacanear, superar o próximo, aí sim todo mundo te admira, agora ficar aflito pelo outro te torna um trouxa.


Desta maneira, eu pouco aproveitava e era aproveitado. Eu tentava falar sobre isto, mas ninguém queria escutar, então percebi que esta minha humanidade me tornava desumano, e que, portanto, ser humano era coisa de quem não era humano, e mesmo assim meus superpoderes continuaram a se desenvolver, quanto mais lia, via filmes, ouvia músicas, contemplava a natureza, mais identificava estes, do tipo, empatia, solidariedade, envolvimento, compromisso, não sabia controlá-los muito bem, e vivia perdendo o controle, e assim ficava doente com a doença dos outros, as vezes triste, outras solitário e abandonado, as vezes tudo de uma vez só, pensava até que iria morrer.


Porém, talento para sofrer tinha muito, e assim comecei a me afeiçoar aos personagens históricos e da literatura que eu achava que pareciam comigo ou eu parecia com eles, como Dom Quixote, Eurico, o presbítero, depois comecei a entender que quem eram os caras eram os autores, pirei no Sartre, Saramago, Garcia marques, devorava estes escritores dentre outros, mas um dos primeiros que me chamou atenção foi Jesus, o cara amava todo mundo, bandido, prostituta, mendigo, aí fui na igreja procurar quem seguia os pensamentos dele, e tentar encontrar outros alienígenas como eu, ver se não estava sozinho aqui neste ‘asteroide que todos chamam de Terra’ como diria Zé Ramalho, que decepção, todo mundo que estava lá, me pareceu que não conheciam ele, e eram até contra ele, acho até que o matariam de novo se pudessem, fiquei revoltado e convencido de que realmente estava sozinho e de que Jesus também era um ET. 


Então decidido a encontrar respostas abandonei a teologia e fui atrás da ciência, para surpresa minha comecei a encontrar algumas respostas, e também algumas pessoas que já haviam avançado um pouco mais em suas buscas do que eu e me apresentaram alguns pensadores humanos, que a princípio depois de tanto levar porrada fiquei desconfiado, mas como estas pessoas se pareciam comigo e eram de carne e osso e não apenas personagens ou autores distantes resolvi investir nesta alternativa, pois afinal o que tinha a perder, a não ser o risco de mais uma decepção.


Foi aí que descobri que eu não era alienígena, que os outros é que estavam alienados, fui estudando, debatendo, conversando e aprofundando na história da humanidade procurando onde me encaixar, que entendi que as coisas nem sempre foram assim, que aquilo que aprendi que era natural na verdade era artificial, e o que acontecia era que assim como todo mundo, o que eu sempre tentava era encaixar a história da humanidade em mim, ou seja, queria ver a história de onde eu estava, e não onde eu estava através da história. 


Tudo passou a fazer sentido, porque descobri que nada fazia sentido por si só, mas tudo era produzido e reproduzido por nós através do tempo, somos nós que damos sentido para as coisas em determinados momentos e lugares, que em outros lugares e momentos não tem sentido nenhum ou tem sentido oposto, nessa fiquei demasiadamente humano.


Foi num estranho dia onde conheci um cara estranho com nome estranho, chamado Hegel, fiquei sem chão, - e mal sabia eu que ficaria também sem teto, porque mais tarde conheceria o seu discípulo, outro cara mais estranho ainda, Karl Marx - , quando aprendi que todas as coisas estão ligadas, e que por estarem ligadas são uma coisa grande só, sem deixar de serem pequenas coisas que também são formadas por outras coisas menores ainda, que apesar de estarem conectadas com a coisona, não são ela, elas tem identidade, característica própria, e que quando olhadas de longe parecem uma coisa só, e que quando de perto são várias coisas.


Fiquei flutuando, foi como se a cortina que me impedia de ver o cenário todo caísse, como se tivesse saído da caverna ou aprendido a voar e agora conseguisse ver tudo lá de cima, consegui entender como estava preso ao todo, e o todo preso em mim, usei este conhecimento como uma lente, uma ferramenta pra enxergar por trás do que eu era, e por trás de onde eu estava.


Virei rato de biblioteca, devorava livros, ainda meio desnorteado, mas já sabendo mais ou menos o que procurar, em quais fontes beber, passava horas investigando, tomando o máximo de cuidado, pois, não queria perder mais tempo, e fui saltando de um autor para o outro, visto que encontrava algum assunto que nunca tinha tido contato em determinado texto que estava lendo, partia em busca de esclarecimentos as vezes voltava para a leitura em que estava, as vezes me perdia naquela nova aventura que ia me levando até ficar esgotado, porque o assunto além de não esgotar, se eu não tomasse cuidado poderia me levar por caminhos sedutores como levou Odisseu e ficar 30 anos navegando por mundos e mares  desconhecidos e voltou para o mesmo lugar de onde saiu, porém ele estava diferente e o lugar também, ou pior como Moisés e ficar perdido 40 anos na aridez, num deserto infértil, com vontade de voltar para o Egito onde eram um escravo.


Fiquei nesta condição por muito tempo, numa condição que ia para além da escola, num tempo que ia para além do lugar onde estava, a gravidade já não podia impedir meu movimento, levava comigo por onde quer que fosse uma fome quase desesperada e deseperadora de compartilhamento, dos outros para comigo e pior meu para com os outros, onde quer que estivesse era tempo de discutir, em casa, na igreja, no bar, na rua ou no churrasco, fiquei insuportável para aqueles que dividiam o tempo e o lugar comigo, meio que inconsciente, digo meio porquê de certa maneira eu sentia que gerava um desconforto geral, este desconforto, que como diria Paulo de Tarso era como um espinho na minha carne que depois seria meu companheiro consciente de todas as horas, já me acompanhava por toda a vida, só que muito educadamente mas doloridamente interferia de maneira sutil na minha caminhada, sutil sim, mas intenso, agora entendia que aquela dorzinha me dava um certo prazer, compreendia que sem ela eu não era eu, e não teria meus superpoderes, minha melancolia era como que o sol amarelo para o Super-Homem, sabia que mais cedo ou mais tarde teria que encarar melhor esta fonte de poder. Será que se o Super-Homem voasse em direção aquilo que lhe dava poder ele ficaria mais forte a ponto de virar um deus ou descobrir que já era um deus, ou seria destruído e, portanto, sempre deveria manter uma certa distância daquilo?


Claro que a situação foi se agravando, e pessoas próximas começaram a se afastar, pois ficavam irritadas com o fato de eu sempre ter uma crítica, a novela que estava passando, ao pregador que estava dando uma mensagem, a música que estávamos ouvindo, ao acontecimento político-econômico então nem se fala, sobre educação pelamordedeus, enfim, tudo, cinema, arte, esporte, etc. Não perdia nada, e se não soubesse sobre o assunto ia correndo descobrir. De esquisito virei uma espécie de ovelha negra da família, até que foi bom, porque apenas o que mudou foi as pessoas assumirem que eu era diferente mesmo, porque eu sempre soube, só restaram os que por falta de opção, como os parentes mais próximos, não tinham como me evitar, e estes passaram a se policiar perto de mim, ou alguns a me provocar, fiquei visto como que uma força da natureza engraçada as vezes e terrível outras. 


Depois, de acordo como fui amadurecendo tanto intelectual como fisicamente, comecei a fazer uma retrospectiva, um ensaio lúcido, daquele momento insano e daquela cegueira sem ensaio, e fiquei pensando quanto sofrimento devo ter gerado, acreditando que devia desconstruir tudo, desmanchar tudo que era sólido, num ataque de fúria sobre a ilusão da aparência, revelar o que estava por trás, por dentro e por fora, possibilitar a superação dos limites percebendo os limites, arregaçar com tudo, hoje isto me arregaça, pois algumas das pessoas que foram atingidas neste desvario lúcido, não estão mais aqui, e assim, não puderam participar da construção, mas somente da destruição, morreram ou foram embora sem verem o por vir, saíram de cena num cenário de ruínas, como isto me pesa, e este peso se tornou uma coluna importante que me ajuda a suportar o peso da eterna construção.


Engraçado como falar sobre estas coisas hoje não me apavoram mais, mas sinto uma serenidade perturbada, um nervosismo tranquilo, é como se fosse um lago espelhado, mas só para enganar, para atrair o que está refletindo, e trair tudo o que está ao seu entorno, engolindo o que precisa para as suas profundezas, seus abismos cheios de ondas, correntes e seres que se alimentam desta atmosfera e destas coisas.


Chegando aqui, e olhando para o lago estranho que já era e que cada vez mais fico, tenho um susto, vou apreciando algumas partes, saboreando agora o fato de saber que é uma parte somente, que apesar de não poder me devorar todo por que o todo que eu sou está além de mim, em vez de me entristecer me engrandece, pois sempre poderei estar me devorando sem me preocupar com o fim, pois, sei que não sou de maneira nenhuma estranho, pois, sou estranho como todo mundo o é, e sendo todos estranhos é normal ser estranho, portanto, ser igual é ser diferente, me tornei um clandestino feliz.


Não sou mais um menino com seus segredos, mas um homem com seus amores.



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Autor(a): dinizflavia

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).




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