Fanfics Brasil - Felicidade Clandestina Felicidade Clandestina

Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Felicidade Clandestina - Clarice Lispector


Capítulo: Felicidade Clandestina

209 visualizações Denunciar


                                     FELICIDADE CLANDESTINA


Ela era alta, excessivamente magra, de cabelos curtíssimos e aparelho nos dentes. Ainda era achatada, enquanto nós todas possuíamos busto. Como se não bastasse, usava óculos, não por necessidade, eram lentes transparentes como vidro, sem grau algum. Mas possuía o que qualquer criança, qualquer mesmo, gostaria de ter: um pai dono de locadora.


Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário em vez de pelo menos um joguinho barato, nos dava um CD, dos mais antigos, na maioria das vezes de musica clássica, daquelas que nem nossas avós gostavam. Atrás ainda escrevia, com uma letra lindíssima, palavras como “aproveite” e “felicidades”.


Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias e de cabelos compridos. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de jogar, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os jogos que ela não queria.


Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía God of War do PS4.


Era um jogo incrível, meu Deus, era um jogo para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.


Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.


No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num apartamento como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o jogo a um garoto, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Salvador. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do jogo, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.


Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da locadora era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o jogo ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.


E assim continuou, por vários dias, todos os dias, no mesmo horário, estava eu na porta daquela casa. Ela sentia prazer em meu sofrimento, me escolheu para me ver sofrer.  Me escolheu para usar toda a sua maldade, toda sua astucia.


Às vezes ela dizia: pois o jogo esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.


Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a minha aparição diária à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão de palavras pouco elucidativas. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este jogo nunca saiu daqui de casa e você nem quis jogar!


Ela devia estar horrorizada ao descobrir a filha que tinha. Então imediatamente disse: “Você dará o jogo a ela agora mesmo”. E para mim: “Você pode levar o jogo que quiser”.


Entendem? Valia mais do que me dar o jogo: “pode levar o que quiser” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.


Como contar o que se seguiu? Assim que recebi os jogos em mãos, sai andando devagar, era impossível correr com as pernas tão tremulas. Segurava-os apertados contra meu corpo, imaginava que poderia estar sonhando e me beliscava para ter certeza.


Cheguei em casa e fingi que não os tinha, andava pela casa fingindo esquecer e achava-os surpresa. Depois joguei por minutos, o suficiente para completar uma fase. Comi pão com manteiga, andei pelo pequeno corredor, fingi que não sabia onde havia guardado. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia.


Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.  Às vezes sentava-me na sala, com os controles no colo, sem joga-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um jogo: era uma mulher com o seu amante.



Compartilhe este capítulo:

Autor(a): gabrielacortijo

Esta é a unica Fanfic escrita por este autor(a).




Loading...

Autor(a) ainda não publicou o próximo capítulo



Comentários do Capítulo:

Comentários da Fanfic 0



Para comentar, você deve estar logado no site.


- Links Patrocinados -

Nossas redes sociais