Fanfic: Laços de Felicidade | Tema: Clarice Lispector
Não era mais uma menina e seu livro. Era uma mulher e seu amante.
Sim, era exatamente assim que eu me sentia quando estava com aquele livro nas mãos e toda hora passava pela minha mente o que a mãe da minha estúpida colega Daniela dissera “Fique com ele o tempo que quizer”. Isso significava mais que uma vida inteira se eu quisesse.
Aquela tarde de março era quente, mas as últimas chuvas de verão já começavam a cair. Sentada na rede da varanda da casa da vovó eu sentia o aroma da chuva molhando a terra e o gosto do chá de hortelã que minha mãe havia me trazido. No meu colo, Reinações de Narizinho era como o tesouro mais importante que algum pirata já havia encontrado, era como a coroa da rainha Elizabet ou como o pote de ouro no final do arco-íris... Eu me sentia a menina mais rica do mundo, apenas por ter aquele livro.
Mas a felicidade é coisa clandestina e enquanto me sentia no próprio céu da felicidade, veio o medo e a preocupação. Daniela era o tipo que não aceitava ser contrariada e ter sido obrigada pela mãe a me entregar o livro enquanto o que alimentava seu prazer era ver-me sofrer, com certeza a fez me odiar completamente. Apavorada com a ideia do que ela poderia desejar fazer comigo comecei a sentir náuseas e a tontear.
Enquanto minha imaginação voava longe e imaginava minha colega me jogando ao chão e esbofeteando-me, nem percebi que a chuva havia aumentado e minha mãe me chamava para jantar. Obviamente que apenas brinquei com a couve-flor colocada em meu prato. Sentia-me indisposta e um turbilhão de coisas passava por minha mente. Na inocência de criança pensava em como seria feito meu velório e o discurso fúnebre.
Retirei-me da mesa e subi para o quarto. Papai ainda não tinha chegado da olaria e eu sentia que só ele conseguiria me ajudar. Adormeci deitada na cama esperando que ele chegasse, mas naquela noite ele não voltou para casa.
O sol ainda não havia nascido quando mamãe me chamou pela manhã. Seus olhos estavam inchados e ela ainda vestia o mesmo pijama da noite anterior. Eu não entendia o que estava acontecendo até que ela me explicou com mais clareza. Enquanto eu dormia, com meu precioso livro nos braços, meu pai trabalhava como sempre. No entanto, naquela noite uma pilha de tijolos mal colocados, havia despencado por cima dele e só o acharam quando já era tarde demais para ser socorrido.
Naquela manhã o meu mundo acabou. Meu pai, que havia me ensinado amar os livros, já não fazia mais parte do mundo dos vivos. Eu o havia perdido.
Depois da notícia, teve uma sucessão de acontecimentos os quais não me recordo muito bem. O velório, o discurso fúnebre, o enterro, a volta para casa, não, nada disso está claro na minha mente até hoje. Mas me lembro da outra semana. Quando finalmente voltei para casa, minha mãe me avisou que eu poderia ficar uns dias sem ir à escola e então me lembrei do meu resquício de felicidade, escondido embaixo do travesseiro: Reinações de Narizinho. Subi para meu quarto e li meu livro como se essa fosse à única coisa que pudesse me trazer paz e de fato, era. Naquela tarde, o sol do Recife estava lindo de se ver, nenhuma nuvem se fazia presente e de tanto ler, adormeci na minha cama.
Acordei em um grande susto, quando percebi que havia alguns minutos que minha mãe me chamava. Ela adentrou o quarto e pediu que eu me arrumasse. Iria receber visitas. Eu já não queria sair do quarto, mas quando minha mãe me disse quem era a visita, foi ai que pensei que deveria me esconder embaixo da cama! Era minha professora e os colegas da escola, nesse exato momento pensei em Daniela sentada no sofá da minha sala, me encarando furtivamente ou me pedindo o livro outra vez. Mas não tive saída. Minha mãe me fez descer.
Vesti um vestido de domingo, os sapatos de ir à igreja e arrumei os cabelos com um laço preto, que papai me dera de aniversário no ano anterior.
Quando desci, todos me esperavam na sala e vieram me abraçar, dar suas condolências e dizer que sentiam muito. A professora proferiu palavras bonitas para eu e para minha mãe, depois, as duas foram juntas a cozinha nos preparar sanduíches. Foi nessa hora que pensei que minha alma sairia do meu corpo; Daniela veio aos poucos se aproximando de mim e sentou-se ao meu lado.
Quando pensei que seria meu fim, ela apenas me entregou um bilhete e disse para que eu lesse depois.
Em seguida, os sanduiches foram servidos, as crianças comeram e todos foram embora. Pedi licença para mamãe e vovó e subi até meu quarto.
Um misto de medo e impaciência percorria todo meu ser. Queria ler o bilhete e ao mesmo tempo queria rasgá-lo. Mas a curiosidade é sempre maior que o medo. Abri-o e o li do inicio ao fim.
Aquele bilhete devolvera-me a alegria de viver. O livro era meu. Para sempre. Um presente para mim, como sendo o consolo que Daniela conseguia demonstrar. Reinações de Narizinho sempre seria meu.
Na outra semana a vida foi aos poucos voltando à normalidade. Retornei a escola, ao dia a dia. Daniela ainda fazia de mim e das outras meninas seus motivos de deboche. Nossos presentes ainda eram cartões postais das pontes e praias do Recife. Mamãe ainda fazia couve-flor e vovó ainda chorava um pouco todos os dias. De saudades do marido falecido e agora, do filho.
E eu, eu ainda vivia meu romance escondido com Reinações de Narizinho. E conforme cresci, outras histórias foram ganhando meu coração... A hora da Estrela, A Paixão segundo GH , Dom Casmurro, Senhora... Os clássicos fizeram parte da minha adolescência, da minha vida.
Agora, que não sou mais uma criança, Reinações de Narizinho ainda me acompanha todas as noites, quando antes de dormir, leio suas histórias para minhas filhas: Clarice e Rachel.
O tempo passou, mas meu amor por esse livro, nunca vai acabar.
Ah! E antes que eu me esqueça: Daniela virou a dona da Livraria. Em meus aniversários, sempre me manda um cartão postal. Mas a filha dela leva livros para as minhas meninas. São todas colegas na mesma escola onde estudamos.
Autor(a): srta.sabrina_
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