Fanfic: Felicidade Clandestina | Tema: Trabalho Acadêmico

Ela era uma menina com traços e gênio fortes. Andava com altivez. Olhava-nos dos pés a cabeça enquanto fazia enormes bolas com o seu chiclete barulhento. Nós ainda éramos meninas inocentes e tímidas. Como se não bastasse o fato de ser uma menina forte e destemida, pasmem, ainda tinha um pai dono de uma livraria. Eu e outras meninas amávamos as viagens que só a leitura poderia possibilitar.

De nada adiantava o fato de ter em sua casa um amante e conhecedor de livros, pois não usufruía deste bem precioso. Nós sempre aguardávamos nosso aniversário com uma certa ansiedade, esperando que ela nos entregasse um livro de presente, mas não, ela exercia seu poder com mais crueldade, nos presenteando apenas com marcadores de livros, que continham fotos e frases dos maiores clássicos vendidos na livraria de seu pai. Só aumentava nosso anseio pelos livros que ela não lia.

A ânsia de poder navegar nas páginas dos mais diversos livros da livraria de seu pai, não me fazia perceber o quanto ela dominava a habilidade da humilhação. Desempenhava com êxito a arte da maldade. Certo dia, olhou em meus olhos e falou vagarosamente que possuía o livro comer, rezar e amar, da escritora Elizabeth Gilbert. Confesso que neste momento meus olhos brilharam ao imaginar o deleite dela com as páginas deste livro maravilhoso. Este continha uma lista de locais e pessoas incríveis que a autora pôde conhecer na sua inesquecível viagem. Sim, eu queria aquele livro mais do que tudo. Para minha grande surpresa, a menina que tanto me humilhava, oferece o livro emprestado. Sim, ela disse com todas as letras que eu poderia passar na sua casa e pega-lo, no dia seguinte.

Claro que não dormi direito. Fiquei pensando por quase a noite toda naquelas páginas e mais páginas de pura aventura.  No dia seguinte fui a sua casa, com passos largos e coração trêmulo. Ao chegar no endereço, percebo que ela não mora em uma casa como eu e sim em um apartamento, no terceiro andar. Entrei e corri meus olhos em busca do elevador e para minha surpresa, não havia. Sim, eu ainda teria que esperar longos três andares de escadas para enfim, abraçar o tão sonhado livro. Subi com passos largos. Chegando diante de sua porta, respirei fundo e toquei a campainha. Imediatamente estava diante de mim aquela que por tanto tempo exerceu pura crueldade comigo. Ela nem mesmo me convidou para entrar e mais do que depressa informou que havia emprestado o livro para outra menina,  me pedindo para retornar no dia seguinte.

Ah, como descrever tamanha dor. Eu havia ficado a noite toda esperando por este momento. Agora teria que ficar esperando por mais um dia e uma noite. Voltei para casa, desta vez com passos curtos e arrastados, cabeça baixa e olhar entristecido. Depois de um tempo, andando pelas ruas da minha linda cidade, Concórdia, voltei a ter esperanças e mudei meu semblante como num rompante de alegria que surgia ao pensar que, amanhã teria o tão sonhado livro em meus braços.

Mal sabia eu que a menina estava adorando o fato de criar em mim expectativas e dissipa-las em seguida, como uma folha que cai de uma arvore ao toque do vento. Foram dias e dias de angústia. Todas as tardes eu passava em seu endereço e sempre ouvia a mesma coisa: passe amanhã! Explicações eram as mais diversas. Parecia que ela possuía um arsenal de boas desculpas para me fazer voltar para casa de mãos vazias, sem constrangimento nenhum. Pura maldade.

Certo dia, após a subida de três andares, ofegante, ouço novamente aquela desculpa. Desta vez ela havia dito que estava com o livro de manhã e eu estava em sua porta somente à tarde. Baixei minha cabeça, respirei fundo e sai, sem falar mais nada. Quando iniciei a descida das escadas, ouço uma voz de mulher me perguntando o que tanto fazia no seu endereço. Imediatamente voltei e tentei explicar, com voz trêmula o ocorrido. Naquele momento a mulher, que agora descubro, era mãe da menina que tanto me enrolava, suspira fundo com ar de tristeza. Sim, ela estava muito decepcionada, com certeza o motivo era descobrir a filha que tinha. Aquela boa senhora disse que o livro jamais saíra de sua casa, muito pelo contrário, estava pegando pó na sua estante, pois sua filha não tinha dado o gosto de folhear aquele que havia sido um presente de seu pai. Mais do que depressa ela pegou o livro e entregou em minhas mãos dizendo que eu poderia ficar com o livro, sim, isso mesmo, ficar com o livro para sempre! Este seria possivelmente o castigo para sua filha aprender a valorizar o que possui.

Vocês conseguem imaginar o que senti? Não teria que devolver o livro. Poderia navegar em suas páginas para sempre! Cada segundo de espera havia valido a pena. Chegando em casa, ainda em estado de êxtase, não me permiti abrir as páginas do livro, não sem antes admira-lo por um pouco de tempo. Deixei-o em várias partes da casa. Passava por ele e suspirava pela alegria de agora poder tê-lo para sempre.  Algumas horas depois, não conseguindo me conter mais de tanta ansiedade, me entreguei em suas páginas. Li com entusiasmo cada palavra. Lia e relia frases. Imaginava o cenário sem pressa para acabar. Dormia com o livro. Acordava e percebia que ele estava ali, pronto para ser lido. Pronto para ser devorado.

Agora não era mais a menina com o sonho de ter o livro Comer, Rezar e amar, mas sim, a menina que “comeu as páginas”, orou em silêncio e amou cada segundo em sua companhia.